blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

sicómoro apodrecido

que nunca cortem a esperança
como cortaram o sicómoro
que havia ao pé da minha casa

agora não me divirto a brincar
com as suas folhas pequenas
que caíam como helicópteros

tenho brincado muito pouco
é essa a conclusão
tenho muito para mudar

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

éter

detesto este cheiro dos hospitais que parece que é injectado na porcaria de todos os corredores, mesmo os que dão acesso a este bar estranho cheio de estetoscópios e batas brancas e azuis e com um micro-ondas a fazer de instalação artística e uma mulher com os lábios todos rebentados da herpes sem haver quem mostre interesse em tratá-la. a mulher do bar do hospital parece daquelas que levou uma injecção de simpatia exagerada, como é comum hoje em dia numa série de serviços, como livrarias e call-centers e lojas de roupa e outros trabalhos em que se ganha uma miséria mas ao primeiro erro se leva um chuto no cu e ala para casa. detesto que nos hospitais ainda haja tantas raparigas bonitas, nas escolas já não há. trabalho numa escola, parece que sim, dá bom dinheiro limpar escolas, disseram-me uma vez, mas tem de se sorrir muitas vezes às senhoras professoras. não gosto nada de andar sempre a caminhar para aqui, é o pai mal-disposto e marcar análises de rotina e ver os amigos operados a pernas e postos a andar num instante, aqui só dá despesa ao estado, vá para casa, e os amigos com uma espécie de avc a arriscarem-se a perder uma vista, não sei se arrancada numa operação cirúrgica feita com a observação de duas estagiárias bonitas como já não há nas escolas. diabo de sítio este que me põe a espirrar e com uma sensação de uma constipação qualquer ou gripe, no autocarro para o imaginário duas velhas discutiam se era ou não a mesma coisa, detesto este cheiro, os hospitais deviam cheirar a flor de laranjeira ou a outra coisa qualquer que nos lembrasse lugares saudáveis e não a isto, a este produto para lavar as mãos quando se tem gripes estranhas com nomes de números e letras.

domingo, 14 de dezembro de 2014

makas antigas

os meus olhos à distância
lêem-te ainda melhor
como se eu à distância
te conhecesse melhor
te sentisse mais
te tivesse mais perto
(este paradoxo que é
sempre o primeiro
dos lugares-comuns)

o meu coração à distância
tem muitas saudades tuas
quase como a água
constantemente
a lembrar-se da fonte
isso é outro lugar-comum
mas não deixa de ser verdade

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

sol espelhado na água

desmontar uma cana de pesca
é como desmontar uma casa.
as várias peças dispersas
por sacos e caixinhas
como as vidas dos que partem
e linhas e anzóis na boca
um gosto estranho que fica
a sangue e ao que vivemos ali

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

do nono livro das questões

que raio é um poeta?
o cão que rói restos de uma mesa
à sombra das árvores
ou o vento que fica
após a partida do metropolitano
um homem em busca
do que nunca encontra
e que perde todo o tempo possível
a calar-se
há pouco poema nos jogos de palavras
a poesia joga-se no que fica por dizer

um outro príncipe, maior

gostava do principezinho, livro de saint-exupéry, quando era algo mais que um manancial de frases de auto-ajuda para as redes sociais. gostava do principezinho quando as pessoas ainda eram capazes de perceber que um livro que começa por dizer que é um livro para crianças porque os adultos não são capazes de o entender é, na verdade, um livro para adultos (os livros para crianças não precisam de avisos à porta). gostava do principezinho quando ele era companheiro de caminho das amizades que se fazem e também das que se destroem, não quando é guia e farol que ilumina amizades a construir. gostava do principezinho quando ainda dava para entender que a queda do rapaz na areia do deserto, «como caem as árvores», é uma metáfora da morte e a morte não cabe em frases bonitas nem em coisas que se dediquem a quem se ama - «que caias como as árvores, um dia, e que morras na areia para doer menos», dirá ela ao seu amado. gostava do principezinho quando era só um livro sobre as coisas que permanecem e sobre as coisas que vão, quando era só a história de um rapaz não-histórico e do seu planeta e da sua busca, quando, enfim, era só um livro. não gosto de filmes sobre livros. não vou gostar deste filme. gosto de livros. não gosto do principezinho de que as pessoas gostam, gosto do meu principezinho às escondidas, lido nas páginas que a minha madrinha me deu pouco antes de cair como caem as árvores, mas não na areia.

ginja de óbidos, fáchavôr

no domingo vou
almoçar com ela
a santana
frango assado
às onze da manhã

café aquário

descobre entre cafés
bolos e água fresca
a beleza esquecida
dos rituais de acasalamento
das aves

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

never easy

os desamores dão sempre jeito
a quem escreve melancolia
dizia uma frase escondida
no fundo de um velho baú
de quem nunca teve estratégias
para encontrar paixões novas
e ignorava os conselhos dos amigos
e dos manuais de cavalheirismo
preferia sempre os caminhos solitários
que estão cheios de erros
e se descobrem inúteis
a não ser para encontrar a melancolia
e a angústia, sempre a angústia

sábado, 6 de dezembro de 2014

rusga na rua da amargura

é grande o aparato policial
na rua da amargura
grupo de operações especiais
carros a apitar
metralhadoras nas mãos dos polícias
e os velhos à porta da taberna
de mãos na parede enquanto são revistados
um velho que pensa na vergonha de estar assim
cu voltado para um polícia
e a revista que começa
com coisas perigosas a saltar dos bolsos
carteiras de couro ruças
navalhas canivetes corta-unhas
trocos para copos de vinho
boletins do euromilhões
uma cautela da lotaria
papéis suados
um lenço de papel
e a fotografia de uma mulher que já morreu
enrolada em papel de parede com florzinhas
que tem lá escrita a palavra amor
esse homem acompanhou os agentes à esquadra
porque o amor é a pior das drogas

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

quarta oração da noite

Às vezes luto com Deus,
às vezes danço.
Uns dias discuto com Deus,
noutros descanso.

Não me canso
de olhar para o Céu
e em Deus buscar respostas
ao que a vida deixar por dizer
e às vezes é tanto.
Um silêncio vale mais que mil palavras,
disso poucos se conseguem lembrar.

c. r. & f. no populus

uma verdade escondida:
os poetas pertencem ao povo
e à terra remexida por arados
mais do que às palavras,
tanto quanto as palavras
são da terra por lavrar.
os poetas são lavradores
de enxada na mão
e suor no rosto e no peito
a escavar fundo no silêncio
procurando tesouros escondidos.

as letras dos nomes: v.

teria saudades dos teus olhos grandes e do teu riso envergonhado se não me lembrasse deles tantas vezes, nos dias em que recordo as coisas que nos pagámos e a vez em que me deste a mão e me levaste a dançar. também não sinto falta das vezes, muitas, em que te fiz rir porque me rio muitas vezes eu a pensar nisso. devia ter saudades daquilo que não dissemos de nós, do íntimo de nós, um ao outro. podia ser que isso nos tivesse aberto caminhos que ainda agora estaríamos a percorrer. não abriu. não sei se o lamento. é que não sinto saudades tuas, ainda estás demasiado presente em mim.

as letras dos nomes: i.

um dia engoli um livro de auto-ajuda e dei por mim a cuspir frases parvas como aquela que diz que a gente só se desilude quando se deixa iludir. iludiste-me demasiado tempo, engano possível quando se tem olhos falantes e mãos pequeninas e um corpo de mulher que baralha a maioria dos homens. anos e anos passados a considerar amizades e eventualmente algo mais e a contar coisas que não falei a mais ninguém e a ouvir tretas alegadamente íntimas mas na realidade inventadas, vindas de um lugar qualquer de consolo e companhia e insegurança. chegou o dia em que me cansei de te defender do perigo do desconhecido que sempre são os outros, infelizmente o mesmo em que abracei a minha solidão. é por isso que hoje isto é solidões pelas esquinas, um calendário no placard do quarto antigo em que vou descontando, como todos os condenados, os dias que faltam para ter férias outra vez e finalmente reencontrar amigos que não me procuram só para lhes fazer companhia quando a saída é com pessoas que eles não sabem quem são. uma vez escrevi-te numa toalha de mesa que o que mais procuro é um sentido para a morte. ontem escrevi essa frase logo abaixo do meu calendário porque ainda é isso que me vai valendo.

as letras dos nomes: c.

talvez, ao longe, ainda gostes de mim. ao longe continuo a não conseguir gostar de ti, não dessa forma, mesmo nos dias em que me esforço por isso. deve ser falta de química, física, fisico-química, coisas que exigem batas e presenças prolongadas frente a bancadas forradas de azulejo branco e cuidados laboratoriais. sinto falta daquela sensação esquisita na barriga que dá quando o sol se põe ou quando nasce ou, apenas, quando se esconde e ao mesmo tempo se mostra por trás das nuvens junto à praia. acredito que saibas isso tanto quanto que não sei ler os teus sinais, nunca soube, por muito que faças por deixá-los bem visíveis pelas ruas. o amor, ou isso a que chamam amor, não se escolhe, por muito que o queiramos. há nisto tanto de cliché como de verdade. entretanto liga-nos uma certa compaixão que vai criando laços entre as pessoas sós.

obliteração

um poema para Miguel Araújo Jorge e António Zambujo

pelo amor é que vamos sempre
diz o lugar comum
e a rapariga sentada no eléctrico
de bilhete na mão a desfazer-se
com o poder que o suor nervoso
sempre transporta
é o pica que não chega
para fazer um furinho no papel
com um alicatezinho esquisito
ou uma caneta que não já não escreve
mas faz imenso jeito
quando a maquineta de furar
fica perdida num bolso
três bancos depois o pica passa
boa tarde um furo obrigado e boa viagem
e ela obrigada obrigada risos
e a cara a avermelhar-se
não é hoje ainda que te levo a passear
no jardim do bairro
não é hoje ainda que brinco
com a tua maquineta de fazer furos em papéis
e com as tuas mãos bonitas

sono (às vinte e três e cinquenta e nove)

muitas vezes quando me dá o sono não sei o que hei-de fazer. custa muito estar sozinho por estas esquinas e ligar-me ao mundo apenas por meio de pilhas de livros por ler, que separo meticulosamente das de livros lidos, e por miríades de aparelhos electrónicos que teimam em dar sinais de vida só com avisos de porcarias por pagar e de porcarias que posso pagar se aproveitar a maravilhosa promoção de não-sei-quantos por cento que inventaram especialmente a pensar em mim, caro consumidor. está um frio da gaita que me dá particularmente nas mãos quando as ponho fora do edredon, vindo da infância, à procura de qualquer coisa, talvez uma lanterna, que nunca encontro, e na cabeça que não consigo pôr por baixo dos lençóis porque isso me asfixia e me assusta. pensar que não estás cá outra vez, que na verdade, bem vistas as coisas, nunca quiseste estar aqui comigo, só faz crescer esse frio do catano, como se o frio me comesse por dentro em forma congelada e depois ultrademolhada, como o bacalhau. o frio ia entrando e congelando os olhos e a língua e a ponta dos dedos das mãos e o fígado e o estômago e os rins, por esta ordem exacta ou por outra ordem qualquer, e depois alguém sádico como tu, que não estás cá nem nunca quiseste estar, ia demolhar os meus órgãos raquíticos e comê-los cozidos e temperados com azeite e sal. uma vez li numa revista de actualidades e coisas sentimentais que o frio se mata com calor de aquecedores a óleo ou de fogueiras mas comigo isso nunca deu porque me chego sempre perto demais da fonte do calor, sempre gostei de chegar perto das fontes, e isso dá-me cores vermelhas nas pernas e nas bochechas e depois dizem-me que andei outra vez a beber de mais. hoje voltei a não beber nada que me faça mal segundo as normas morais das pessoas certas que dormem com este e aquele para subir no emprego e isso aumenta-me o frio. muitas vezes dá-me o sono e entretenho-me a escrever, é a minha forma de contar carneiros, nunca percebi suficientemente de pecuária para os distinguir das ovelhas só pela forma como saltam cercas nos sonhos. hoje foi desses dias, porque olhei para o lado e tu não estás, na verdade nunca quiseste estar aqui.

sábado, 29 de novembro de 2014

rotinas e rotas

ano após ano
tudo se repete
os dias
e as festas
e os erros
e as alegrias
e as tristezas
os amores
e desamores
e as esperas

na rotina
faz caminhos novos
bate os pés com mais força
e caminha sobre chão seguro

advenire

esperar é uma arte
que se constrói com os dedos
e muitas vezes
com a própria vida

esperar é a certeza
do Redentor que vem
e te liberta
da tua pequenez

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

versos para manuel alegre

as velhas correm para a foz
como os rios que não sei nomear
e onde não se pescam robalos à linha
(nem nas lagoas de água salgada)
esses só há no mar
como o vento forte
e o meu amor
princesa sem encantos
que arde sobre as ondas
escondendo-se à minha espera

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

pavilhões do parque

não deixes de te erguer
mesmo nos dias
em que a cidade cai
as coisas mais bonitas
às vezes estão em ruínas

encanta-te sempre
com a beleza que surge

a odisseia

uma das melhores histórias
alguma vez criadas
aprendeste a vê-la
nos olhos de um poeta cego
nunca te canses
do olhar de homero

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

relógio na parede azul

estava há duas horas em pé com a chave do carro na mão. cumprimenta as pessoas «boa tarde, está tudo bem de saúde, é a minha esposa a vomitar e mal dos intestinos». a esposa há hora e meia num cubículo com três velhos e cinco sofás laranja, «espere aqui minha senhora, tem a pulseira amarela e vão já chamar» e entretanto um homem, vinte e quatro centímetros de ferro de seis pé acima, a mulher «amor, queres uma sandes?», enquanto o montavam numa cadeira de rodas, «não, isto ia era uma bifana e uma média super bock». a esposa demorava e as pernas começavam a bater num ritmo nervoso e certo, «que diabo de espelunca, nem há uma revista do correio da manhã». eram os bombeiros a não precisar de ajuda para acartar macas e os ciganos a fumar ali ao pé enquanto levam soro nas veias, ele nem sabia aquela piada da seringa das farturas nem do esporão intra-venoso. «olhe, olhe, aí vem a sua esposa!» e ele «por uma caixa de comprimidos e uns géis para a barriga tinha-te feito um chá e não gramávamos isto». é o fecho centralizado do carro que não trabalha e os rodapés das notícias por ler.

perguntas ao nascer da aurora

quando acordas de manhã
põe-te as perguntas necessárias

diante de que Senhor
dobras o teu joelho?

será que as nuvens
se queimam
ao aproximar-se do sol?

haverá ainda um amor
algures à tua espera?

e tu, quem és?

naqueles poemas
que falam da vida
sou sempre
a pessoa comum
que olha o mundo
sentada num banco
de jardim

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

o teu escárnio

sabes bem que não atendo privados
mas insistes em deixar mensagem
na minha caixa postal
para dizer que me amas
e me vais oferecer flores
um bouquet de treze rosas
e um jantar à beira-mar
eu não consigo responder
insisto, não atendo privados
deixa-te disso

«escarneces do meu amor
no teu atendedor»

até já e qualquer coisa assim

os meus primeiros quatro anos como professor passei-os aí. foi convosco, na partilha, no diálogo, na análise das virtudes e erros, no bem e no mal, que aprendi a ser professor. é por vossa causa que nos dois meses e uns trocos que levo de desemprego (Deus queira que não se prolonguem muito mais) continuo a dizer que sou professor, posso dizer que sou professor, sinto-me professor. nem este texto nem nada do que eu tenha dito ou venha a dizer nos próximos tempos é propriamente uma despedida (não morri, não emigrei para longe, simplesmente vou ter de arranjar trabalho noutro lado), fiz amigos por aí (ainda há no mundo muita gente que se deixa enganar) e a amizade não depende da partilha de emprego nem de proximidades geográficas. para onde for sempre hei-de levar-vos a todos, cada um à sua maneira, no meu coração. para onde for ensinar sempre hei-de ser professor sempre à maneira de cada um de vocês. agradeço de dentro de mim estes quatro anos. se Deus quiser havemos de nos voltar a encontrar no mesmo local de trabalho (o futuro entrego-o nas mãos do meu Senhor). até sempre. até já.

sumol legio omnia vincit

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

relatório minoritário

saíram hoje mais dez relatórios
para seres escravo à força:

não estudes
não exijas um salário digno
não reclames
não te mexas
não fales
não grites
não sussurres
não levantes a mão
não percas a oportunidade de ser corrido daqui
não penses diferente

não penses, não sejas, não nada. não.

come uma vez por dia
pão com pão
e compra carros alemães

cachimbo e perna traçada

«isto precisa assim mais de uns saraus de poemas, exposições do miró, música vanguardista, 'tá a ver?», e batia com a mão no braço do programador. «a malta precisa de ouvir falar mais no rimbauld [eu nunca li rimbauld mas é citado muitas vezes pelos colunistas], de ver concertos sentados... de boa música, boa música, percebe? música clássica contemporânea». «vamo-nos sentar». traça a perna, saca o cachimbo do bolso do blazer, começa a brincar com o isqueiro e, com a outra mão, a afagar o último livro de um poeta russo, ainda imaculado. «olhe, há um músico mesmo bom para trazer cá mas é caro. isto não é lisboa nem o porto... mas isso não é problema, ou é?». «pois... olhe, pagam mais mas vale a pena. é menos uma pulseira para a esposa». «é isso, é isso. e afastamos aquela gente que faz barulho... por falar nisso, que raio de ideia foi esta de vender cerveja na esplanada? já viu a gente que isto atrai?», e roía-se de inveja dos caracóis do bar em frente. «sabe, aquilo não é explorado por mim. mas vamos lá ver, e para quando um sarau de poesia?». «olhe, a gente junta aqui um grupinho todas as noites, ouvimos um jazzezinho, falamos dos poetas [há anos que tenho dois livros de poemas na mesa de cabeceira, foi a minha criada que mos deu pelo aniversário]. não precisamos de muito mais. uma apresentação de um livro talvez. há aí um rapaz a escrever uma coisas com piada, e dá na rádio. olhe, traga esse!». «então... então... mas doutor, isso vai trazer imensa gente! onde é que a gente os mete? no grande auditório?», e o programador espumava, desesperava. «também precisamos de lhes dar alguma coisa», disse condescendente. «e adeus, professor, agora vou a lisboa ao morrissey. os meus primos todos vão. vai ser giro. aproveitamos para jantar na churrasqueira do campo grande». «boas músicas tem o morrissey, doutor». «pois tem, pois tem! [quem é o morrissey? e a ver se proíbo a minha filha de falar com este gajo. ainda acaba a estudar filosofia. tem é de ser engenheira como a mãe]».

pó dos livros

a biblioteca em que choro sempre
é aquela cujas estantes
foram carregadas pelos meus ombros

o povo tem nojo da cultura

não é só a chanceler alemã que não gosta de licenciados. o povo tem horror à cultura. há dias um homem fez um quilómetro a correr para encontrar uma casa de banho. tinha um centro cultural logo ao lado. inquirido sobre não ter ido aos lavabos logo ali respondeu: «nunca ali entrei» (aquele tipo de «nunca ali entrei» que quer dizer «não entrei, não entrarei, não quero entrar, detesto quem lá entra»). é comum que, em certas regiões, quem decide estudar seja olhado com desdém, que devia era ter feito como os seus primos e ir para as obras ou uma padaria. certamente já tinha mulher e filhos, um monovolume e uma vivenda com um alpendre. o conhecimento assusta muito, não é uma coisa que se veja, como um monovolume ou uma vivenda com um alpendre (é por isso que os velhos são despejados para longe ou deixados sozinhos, com o argumento de que a vida custa e exige tempo e não podemos cuidar deles). o que não se vê assusta. até porque a sabedoria é uma coisa, que à partida, parece que não dá para vender (a menos que a mascaremos de know how com muitos inputs e outros anglicismos próprios do empreendedorismo que, ensinam-nos na televisão, é uma coisa que vale a pena). tenho pena de tudo isto. comiseração, mesmo. o grave problema é que o povo não sabe a ternura com que os poetas olham para o trabalho dos agricultores.

oração da manhã

Ensina-me, Senhor,
a encontrar uma caixa
onde possa guardar
a angústia que me consome.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

quase um credo

não acredites
em tudo o que lês

não acredites
só no que vês

subversão possível

um cigarro à chuva.
correr debaixo de aguaceiros.
ser criança perdida ainda
quando o fisco te exige
uma adultez qualquer.

rua dos bares

estava um poeta a beber outra cerveja
na esplanada ao pé da praia
e o pintor passeava de mão dada
com a sua amada de sempre
dando os bons dias ao desenhador de rua
que corria pelo areal
e olhava para as fadistas deitadas
a tomar banhos de sol
«que lindas são. que falta faz um fotógrafo aqui.»
o seu amigo que tirava fotografias
ia a caminho da serra com a família

sentado num banco um homem comum
não gostava do que via
os artistas afinal são pessoas
capazes de ter dores nos pés

tremor

a canção que procuras
para dar luz ao teu coração
é a que te faz tremer por dentro
sempre que a ouves

fruta da época

quando o castanheiro grande
se começa a deitar
é sinal que vai secar
e apodrecer por dentro
morrer

foi à sombra dessa árvore
ainda alta e firme
que aprendi a temer a noite

domingo, 2 de novembro de 2014

palerma

os gestos que lembras
são sempre os mais inesperados
os mais arriscados
na vida tão te canses de arriscar
perder o chão
voar
atravessar um oceano
com um barco feito
pelas tuas mãos

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

as canas

quantas casas cabem
no centro do teu coração?
e quantas flores?
onde puseres o teu amor
o teu maior tesouro
aí estará o teu coração
vai vende tudo
e compra o tesouro escondido

rir

rir é o melhor remédio
mesmo quando é isso que nos denuncia
e as pessoas correm à varanda do primeiro andar
com saudades de nós

rir é o melhor remédio
na conversa animada em redor da mesa
e dos sofás da sala
e dos copos nunca vazios

rir é o melhor remédio
porque não resta muito mais

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

a escuta

precisamos de ter o tempo dos velhos
para aprender a ler notícias de jornal
mata-se uma pessoa como dantes
se matava uma galinha
sem a sabedoria que a idade dá
nunca hás-de chegar ao poema

café central

na praça com calçada nova
testam barracas novas
com alumínio que faz doer os olhos
e toldos de todas as cores

ou é do estado da minha alma
ou isto pede uma fotografia
a preto e branco.

os enfermos

ligo o televisor
e falam de ébola
e gripes de todas as letras
e males de todas as cores
que nos comem por dentro invisíveis
desliguei a televisão

o maior mal do mundo
é a falta de amor
e para isso não há solução

terça-feira, 28 de outubro de 2014

naperon

o naperon sobre a televisão
antiga da sala velha
em que já ninguém entra
lembra-te um passado
a que não queres voltar
e um futuro que não augura
nada de bom
tempos virão
em que a tua vida se cobrirá de pó
e vais ficar amarelo
como o pano rendado
que cobre o televisor

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

trying to sleep

ela queria continuar a falar
sobre o que vai dentro de um coração
e ele interrompia desinteressado
«era bom que dormíssemos sobre o assunto»
enquanto ela insistia que as coisas que sentimos
devem ser esclarecidas e postas cá para fora
«os homens não querem saber disso
que o amor constrói-se mais do que se diz»
foi o que sempre lhe disseram os velhos
que aguentavam juntos períodos longos
que hoje achamos quase eternos
«era bom que dormíssemos»
repetia ele quase para si
«amanhã teremos mais forças
para nos construirmos como um»

a luz que nunca se apaga

haverá esperança sempre
e ainda outra vez
enquanto souberes com o coração
que o Homem se ergueu do túmulo
na manhã do terceiro dia
os milagres acontecem
quando já não os esperas
esperar contra a esperança
é o truque que a vida te ensina
aprende a ver ao fundo
uma luz que teima em não se apagar
às vezes ténue às vezes ofuscante
aprende a vê-la com o teu olhar interior

tokio

preocupa-te mais com a cor da lua
e o brilho das estrelas
do que com a casa que cai
e era onde habitavas

um homem sem casa
vale mais do que outro
que nunca se deixa espantar

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

sobre a perfeição

eu sou
a incoerência
e abraço-me
todos os dias

«vamos morrer inacabados»
dizia uma frase
gravada numa parede
de uma cidade qualquer

quis vender tudo
e comprar aquela casa

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

tamanho querer

na tua vida tudo foi feito
sem crer
a mudança que ainda está para vir
pode estar toda
no verbo acreditar

queres crer?

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

alguidar

se há cheiro que ainda me traz
lágrimas pela infância que não volta
é o da massa a fermentar
antes de a avó levar o pão ao forno
e de o guardar numa arca forrada
a papel de parede com cornucópias
crescer não nos devia levar essas coisas
fornos antigos e alguidares de barro

sarau

inclui citação de Ap 7, 13b-17

a cidade estava debaixo de bombas
e num dos bunkers fazia-se uma noite de poesia.
um mais velho cofiava a barba
e lia versos de rimbaud
e hafez ibrahim
enquanto os mais novos se encolhiam
e tapavam os ouvidos com as mãos.
o zumbido mortal das bombas
sobrepunha-se à voz cantada do velho.
de que serve a poesia num mundo que cai?
perguntava o miúdo de cinco anos.
para quê a arte com fome e sem pão e sem vida?
para quê o poema sob o zumbir das bombas?
para quê as perguntas se não vem um Deus que nos salve?
para quê isto tudo se teimamos em nos destruir?
o mais velho seguia imune às perguntas
e entrava pela obra de um tal de joão:
«"Estes, que estão vestidos de túnicas brancas,
quem são e donde vieram?"
Eu respondi-lhe: "Meu senhor, tu é que sabes."
Ele disse-me: "Estes são os que vêm da grande tribulação;
lavaram as suas túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro.
Por isso, estão diante do trono de Deus
e servem-no, noite e dia, no seu santuário,
e o que está sentado no trono abrigá-los-á na sua tenda.
Nunca mais passarão fome nem sede;
nem o sol nem o calor ardente cairão sobre eles,
porque o Cordeiro que está no meio do trono
os apascentará e conduzirá às fontes de água viva;
e Deus enxugará todas as lágrimas dos seus olhos."»

terça-feira, 21 de outubro de 2014

palavrão

com quantas asneiras se escreve
a merda da tua vida?
um apurado estudo
de uma universidade norte-americana
aponta para as trinta e três
número que bem poderiam enfiar no cu
pensas seriamente
porque não és um objecto de estudo
és uma pessoa
uma substância individual de natureza racional
dizia um filósofo
membro dessa raça de quem ninguém quer saber
no fundo boécio é como tu

sábado, 18 de outubro de 2014

paulus princeps

cativar é uma treta
ó príncipe do planeta solitário
fechaste a tua rosa numa redoma
para morrer de falta de ar
correste atrás de uma raposa
por desertos sem ninguém
porque não te avisaram
que o bicho é matreiro
e com falinhas mansas
te convenceu que a amizade não morre
morreste no deserto
caíste morto como as folhas no outono
e poucos dão por isso
no livro que fala de ti
não quero morrer no deserto da solidão
deixado por raposas bonitas
que me tentam enganar
de ti príncipe do teu planeta
quero aprender a não morrer

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

gratidão xxviii

que onde as palavras não chegam
(e as palavras nunca chegam)
possa a vida responder
por muito que ela seja pouco

cacifo

não quero ter um cacifo
na sala grande do emprego
a ideia de permanência
é mais pobre
que a de peregrinação

não sou daqui
sou de outro lado

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

a falta

há sempre uma palavra
que falta ao teu poema
não te canses demasiado
enquanto a esperas
não deixes de a procurar

os pés de vinha
sempre pegaram bem nas figueiras
isso às vezes já é surpresa que baste

travessa do desespero

tenho tido dias cheios de mensagens desesperadas.
a espera cansa muito a maioria das pessoas.
eu vou tentando fazer dela um modo de ser,
uma força inversamente proporcional
ao ritmo decrescente da minha conta bancária.
tenho um amigo prestes a desistir disto tudo,
a entrar em total falência racional
que deve corresponder à falência da conta do banco
e à falência deste país que não nos quer
mas em que, teimosos, ainda cremos.
mais do que a ausência de soluções,
horários visíveis numa plataforma informática
a que possamos concorrer,
dói a ausência de respostas e sinais.
em mim ecoa a mesma pergunta
que foi feita a caim:
«que é feito do teu irmão?»
de mim há muito quem não queira saber.

borboletas

no primeiro andar da casa antiga
já não se ouvem passos
dantes sonoros no chão de madeira
a secretária está abandonada
resta um caderno preto
e uma antologia de poetas chilenos
que vai ganhando pó e bichos
há um guarda-fatos aberto no quarto
com camisolas de lã todas iguais
cobertas de borbotos
que o seu dono se entreteria a tirar
enquanto esperava a vez na fila das finanças
ao longe o sino da igreja ainda dá as meias-horas
aqui já não há ninguém para o ouvir
as larvas não se incomodam
com o passar do tempo

domingo, 12 de outubro de 2014

ser uma pergunta

Perguntei-te outra vez:
«E tu, amas-me?»
Respondeste:
«Só há um português na Divina Comédia.
Sabes quem é?»

Perguntei de novo:
«E tu, amas-me?»
Disseste:
«Só há uma maneira de descer silenciosamente o canal.
Explica-me qual é.»

Tornei a dizer:
«E tu, amas-me?»
E tu:
«Tu és uma pergunta difícil.
Não te sei responder.»

desacordar

cai a noite sobre o mundo
e é hora de desacordar
não estar de acordo
dormir
buscar a verdade das coisas
que só o silêncio revela
calar
deixar o Outro falar em ti

inerte

não aprendas da vida
em redes sociais
nem em manuais gastos
de auto-ajuda

a dor é parte da vida
uma parte que não devemos procurar
mas de que não devemos fugir
morrer com dor não é um mal
viver com dor é inevitável

sobre isto os media sempre te mentirão

sábado, 11 de outubro de 2014

felix porta

quantas vezes paraste
ontem na sala à noite
para pensar intimamente
por que nunca perguntaste
aos teus três gatos
se se sentem felizes

«tareco, és feliz?»
e a questão ecoa pelo longo salão

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

céu escandinavo

é feliz o país em que o rei pode dançar
não há guerras com que se preocupar
nem súbditos a passar fome
há um nível de vida acima da média
e suícidios por excesso de esperança
com isso o rei não se preocupa

David dançava feliz
à frente da Arca da Aliança
porque cumpria a vontade de Deus
e não tinha suicidas
entre os pobres do seu povo

disso gustavo não queria saber

sábado, 4 de outubro de 2014

cântico das irmãs

Quando me deito à espera do irmão sono
chega a irmã solidão
que não me quer deixar
É a esta hora que a irmã morte
vem buscar pessoas que dormem
A mim não, devo ter algo ainda
para construir por aqui
O meu Pai ainda me pede
que construa a Sua paz

o povo é sereno

rebentam petardos pela cidade
e os governantes acalmam as gentes
temos brandos costumes
tudo passará rapidamente
ao som anestesiante da sua voz
eles desistem de criar ondas
afinal o nosso destino será o mesmo
já escrevia qohelet há muitos anos atrás

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

como perder-se na serra?

sai sempre de casa de mochila às costas
e com incerteza no coração
leva calçado confortável
deixa as chaves de casa à tua mãe
e sobe silencioso o caminho
que se faz entre as árvores até ao cimo
quando te faltarem as forças
olha para o que está feito
não para o que falta fazer
o futuro não existe
quando encontrares bifucarções
escolhe o que não queres
ou te parece mais difícil
são as dores que nos constroem
mesmo as que não escolhemos
mata a sede nas nascentes
e guarda água num cantil
para te servires à noite
quando te abrigares nas antigas grutas dos pastores
chega ao cume e contempla a terra toda
o caminho que deixaste para trás
depois descalça-te e continua a subir

window

a minha janela é uma porta para o mundo
que não me canso de abrir

gosto de sentir o mundo todo entrar
por ela adentro
e o meu mundo sair por ela fora

sento-me num banquinho
a vê-lo ir por carreiros de terra batida
que vão dar ao cume do monte
onde ainda sonho perder-me um dia

albarran

o que a mim custa horrores
a ti não custa nada

e isso causa-me horrores

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

sardanisca

tudo é caminho, assim o queiras
tudo é descanso, assim o queiras
tudo é movimento, mesmo que não queiras
diziam filósofos antigos
de civilizações entretanto perdidas.

no caminho que escolhes
a vida é sempre longe
e longe é um lugar
onde não sabes se te vais perder

quando escolhes caminhar
escolhes a indecisão

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

r., nome de mulher

bastasse-me sempre como hoje
o teu sorriso e os teus olhos grandes

gosto muito de olhos castanhos grandes, sabias?
e de morenas com olhos azuis naturais

tarzan taborda

todos te pedem que sejas forte
mas os teus cento e vinte quilos
não servem de nada
quando noite após noite
estás sozinho outra vez

quem és tu para aconselhar?

não passes demasiado à mesma porta
para que não desconfiem de ti
e te denunciem às autoridades

amores não assumidos não servem
a quem é acusado
de perseguição

terceiro livro dos perdões

no fundo ainda espero que me perdoes
quero ser perdoado pela verdade que disse
também pela verdade que não disse
pelas mentiras que possa ter dito
e pelas mentiras que não quis dizer
por todo o mal que fiz e faço
e pelo bem que em algum momento aconteceu
e pode estar para acontecer
um dia serei perdoado
pelo presente o futuro e o passado
(olha, isto rimou)
e por outras coisas que não existem

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

a natureza contra-ataca

as tempestades chegam sempre
para afectar mais as aldeias que as cidades
dizem nas notícias que hoje um raio caiu
sobre duas casas já desabitadas
feliz e infelizmente
e sobre uma árvore centenária
que ficará ali partida ao meio
como sinal de uma força
com que não podemos brincar
somos ensinados de pequenos
a ter medo respeito por estas coisas
porque ocorrem muitas vezes
nas cidades as pessoas não sabem nada disto
não têm árvores abertas a meio por raios
os serviços municipais não querem vestígios
de noites assustadoras assim
a tarde cai na taberna da aldeia
e os velhos não querem saber
há vinho tinto a sujar o balcão de pedra
e um som de fundo no televisor
como que a dizer sempre para dizer
que a provincia é uma melancolia qualquer
que teima em não ir embora

domingo, 21 de setembro de 2014

livro de caras (e outras imagens fáceis e secas)

não leves demasiado o intelecto
ao mundo fechado das redes sociais
a inteligência não casa bem
com cãezinhos, gatos, vídeos de gente a cair,
manifestos contra os touros e a favor da morte
das pessoas na guerra ou das que ficaram por nascer

o poema guardo-o em casa a sete chaves
ninguém vai dar por ele
não é uma canção moderna
a puxar à emoção
e ninguém precisa de puxar o lustro aos poetas
como àquele amigo a quem não dizemos nada há meses
mas a quem fica sempre bem fazer um like
(se isso é um amigo eu sou o sandokan
um tigre da malásia ou da malasia.
senhores passageiros com destino às antas,
zambujal, malasia e imaginário
é o autocarro à saída da garagem do lado direito)

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

estação arqueológica

à porta dos canais que levavam ao fórum
o guia turístico gostava de chocar as pessoas
«neste cidade os túneis sempre se construíram
à custa do sangue de escravos e prisioneiros»
depois seguia feliz e contente contando anedotas
e histórias divertidas sobre a língua latina
o menino dava a mão à mãe e seguia encostado
às pedras onde escorria uma aguadilha cor de barro
tinha medo que caísse a primeira pedra
e tudo de repente se desmoronasse
o que constrói com sangue com sangue se destruirá

quê

para quê escrever poemas que ninguém lê?
para quê amar se não tens a quem?
para quê o amor se não sabes como?
para quê o futuro se é sempre incerto?
para quê fazer perguntas se não há resposta resposta?
para quê buscar em tudo o sentido
se não há nisto tudo sentido nenhum?
para quê porquê para quê?

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

revolver

a espera às vezes dá esperança
às vezes mata

escolhe o lado certo do revólver
em que queres ficar

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

questão de querer

és tu quem eu quero
quando a noite traz
a mesma solidão de sempre
e me apercebo que não te posso ter
ponho na lista do pc
ou escolho no mp3
a mesma canção de sempre
«quero quem não posso ter
e isso deixa-me louco»
a sorte é que os loucos
são os preferidos de Deus
dizia São Paulo numa missiva
digirida aos cristãos de Corinto
gente que não era boa da cabeça

senta-te comigo

senta-te comigo, lídia,
à beira de um rio que não há
imaginemos juntos a água que houve aqui
ou poderia ter havido
imaginemos juntos um amor que houve
ou poderia ter havido entre nós

não chores demasiado, lídia,
com amores inexistentes
quem nem se chegam a perder

regato

é demasiado o esforço
dos que sobem o canal
contra a corrente
em solidão

terça-feira, 16 de setembro de 2014

outra estrada

à entrada do sinuoso caminho
que vai por entre árvores que se adensam
um aviso à navegação:
«não vás demasiado fundo
por estradas que desconheces»

uma questão de sentido

continua a perder-se o sentido dos teus textos
com frases demasiado longas

continua a perder-se o sentido da tua vida
com escolhas demasiado longas

se há coisas longas que ainda fazem sentido
são as tuas consecutivas esperas

primeiro livro das listas

nestes tempos pós-modernos
questões metafísicas que me invadem:

será que ainda há quem use listas telefónicas?
haverá quem as fabrique?
rezo todos os dias para obter uma resposta

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

reino rural

é mais fácil um sapo
subir um portão de zinco
do que um rico entrar
no reino dos Céus

coriscos

nascemos impreparados para a trovoada
por isso te escondes debaixo da cama
em posição fetal e tremes
à espera que os raios e os trovões passem.

nascemos impreparados para os vendavais
por isso te sentas no sofá antigo da sala
tapado com um cobertor velho
à espera que o vento vá.

tudo o que queremos é poder sair à rua
como se fôssemos felizes.

uma questão de amor

tenho muita estima
pela palavra amigo.

a palavra amor
temo que ela me tema.

a questão do amor
é uma questão de temor.

domingo, 14 de setembro de 2014

o que podes esperar de um poeta

do poeta esperas sempre frases certeiras
saídas sem erros e no momento certo
queres dele poemas a cada som que sai da boca
uma beleza gratuita que já lhe encontraste muitas vezes
aquela palavra que remoeu três dias e três noites
na tua cabeça que de repente se desocupou
é uma palavra dessas que no fundo lhe pedes sempre
como numa oração qualquer que nunca soubeste formular
não saber rezar parece um drama que passa ao lado dos poetas
não te passa a ti por isso vives este drama
como pedir ao poeta que diga agora uma frase qualquer
uma palavra que remoa noite e dia na minha cabeça
que mande embora estes pensamentos parvos
que sempre me ocupam as ideias
e para os quais procuro sempre resposta
em manuais de auto-ajuda escritos por farmacêuticos
ou homens irritantes de pêra esbranquiçada
não sei é isso não sei pedir ao poeta
não sei é isso não sei rezar nunca soube
ou então há poetas que são parvos
também pode ser só isso haver pessoas que são parvas
quase tão parvas quanto eu certos dias

sábado, 13 de setembro de 2014

um outro lugar

sempre o mesmo banco onde te sentas
sempre as mesmas nuvens negras
por cima de ti
sempre a mesma espera

um dia vão desaparecer as nuvens
tu sabes
o sol vai brilhar para ti
esperas contra toda a esperança

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

trinta moedas

na escura solidão da noite
que me vai consumindo todos os dias
aguardo boas notícias de caronte

todos os dias o espero
com um ramo de rosas na mão
para que ele me seja agradável

não há moedas que cheguem
no caso de ele descobrir
que a minha vida sempre foi uma mentira

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

guias para uma viagem pelo bosque

(levemente inspirado num texto dramático de José Tolentino Mendonça)

à entrada do bosque havia dois guias diferentes
com uma característica comum, a falta de visão.
john wolf esperava pacientemente por gente perdida
a quem o caminho sinuoso do bosque ensinava
a enfrentar o sempre sinuoso caminho interior.
jorge borges aguardava inquieto que chegassem
outros cegos para que se pudessem perder juntos
pelos trilhos que nunca ninguém percorreu.
john wolf saía todos os dias do seu abrigo
com grandes grupos de gente cheia de peso às costas
que no bosque acabava sempre por se encontrar.
jorge borges continua sentado numa cabana
a cantar fados e tangos com letras que falam de amor.
nenhum cego quer ser guiado por outro cego.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

versos para o céu aberto

descobri noutro dia durante uma conversa
que houve um português das ilhas
que aproveitou uma viagem ao continente
para fotografar o céu sem nuvens
coisa que nunca tinha visto na sua terra.
os portugueses continentais, nós,
somos uns privilegiados.
temos tanto sol.
paramos pouco para agradecer
o dom de dias sem nuvens
que não há naquela ilha.
podíamos fazê-lo nos mesmos dias
em que nos queixamos da chuva.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

novas oportunidades

é mais um dia de calor
e o suor escorre-te em barda
como sempre nestes tempos

não sabes bem se é do calor
se dos nervos que vêm
com as decisões difíceis

sentas-te à procura da calma
a tentar escolher a banda sonora certa
para um momento como este

a verdade é que isto não pede sons felizes
nem todos os tempos querem
que se escutem canções de amor

terça-feira, 2 de setembro de 2014

restos de nada

quando a noite cai
e ouves vozes ao fundo
descobres-te sozinho outra vez

talvez tenhas, como sempre,
a companhia da angústia
e de um sentimento de inutilidade
que não passa

domingo, 31 de agosto de 2014

mil frases feitas

como se a vida se extraísse
de um livro de auto-ajuda
escrito por autores que
escrevem sempre mal
mas gostam de ganhar
dinheiro e fama
ela cuspia frases feias
todos os dias
e ia-se tornando
uma pessoa feia
todos os dias

na auto-ajuda não há lugar
para preguiças falhas
paciências virtudes cristãs
e imperfeições humanas
é o que me é dado perceber
nas frases que ela cospe
para cima de mim

a auto-ajuda não tem espaço
para mim
nem para pessoa nenhuma
na verdade
que queira ser pessoa
e não um bicho que gosta de festas
e que lhe digam o que gosta de ouvir

sábado, 30 de agosto de 2014

tu és a fonte

quando o sol brilhar de novo
não te percas à sombra das árvores
em que escreves repetidamente
o teu nome com facas afiadas
com um disco de uma máquina
de rolamentos que roubaste
na fábrica abandonada e escura
(já não é o nome dela que escreves)

quando o sol nascer aqui
sai para o meio da praça
para que todos te possam ver
que eles vejam o que é um homem
em estado puro
solidão temor e obsessões
(o banco de jardim estava todo riscado
o que estava escrito ninguém o entendeu)

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

versos roubados

mais importantes que as flores na janela
são as flores que guardas no coração

cuidado:
que as flores que lá pões
não o façam deixar de bater
e encantar-se com um amor

domingo, 24 de agosto de 2014

os buscadores

a noite é o lugar
dos que caminham
à procura

no percurso solitário
dos buscadores
pior do que a incerteza
do que falta fazer
são as saudades
dos passos já dados

sax alto

muito ao longe o som de um saxofone
e de vozes em melodias românticas
lembram-me de um amor que há-de chegar
e sei que ainda me espera
por muito que tarde em surgir

(há luzes visíveis ao longe
e outros sinais de festa)

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

dois - substituído

ainda te custa dizer o nome
do jardim em ruínas
deixaste tanta vida
no baloiço apodrecido
na relva que entretanto cresceu
(há lá cobras e lacraus, sabias?
bichos que sempre temeste)
na caixa de areia
agora suja dos gatos
na árvore caída onde
juraste que havias
de construir a tua
morada
(gravado com um canivete
o nome dela e o teu.
não sabes o que lhe aconteceu
talvez continue linda)

da pedra angular

Sobre que pedras vivas, ó Deus,
edificarás a Tua Igreja?

Toma as minhas mãos.

passeio de bicicleta

Na verdade vós sois um Deus escondido,
o Deus de Israel, o salvador.
Is 45, 15

se ainda há sentido
em escrever poesia
num mundo que se desmorona
ele está em desvelar a beleza
escondida do Deus que dança

vento da tarde

Depois do fogo, ouviu-se o murmúrio de uma brisa suave. 
Ao ouvi-lo, Elias cobriu o rosto com um manto, 
saiu e pôs-se à entrada da caverna. 
Disse-lhe, então, uma voz: «Que fazes aqui, Elias?»
1 Rs 19, 12b-13

quando o vento te incomoda
e já faz frio apesar do sol
é a hora de pensar que o sagrado
às vezes mora na brisa da tarde
que nem sempre te agrada

cinco e meia

é sempre a ti que procuro
quando ouço os sinos
dobrar ao longe

terceiro livro dos silêncios

o silêncio, tal como o som,
é uma arte que exige treino.
escolhe sempre bem o sítio
onde te possas calar.

entrada do mosteiro

quantos silêncios cabem
na oração da tarde?
e quantos versos de poetas?

first fight

nos dias em que me levanto tarde
queria ser como a flor que nasce
mesmo por cima da minha janela
e para a qual lanço o olhar
quando salto da cama.
a minha flor não discute
nem se chateia com ninguém
é bonita, só, e dá-me os bons dias
ou as boas tardes muitas vezes
quando salto da cama.
eu, às vezes, queria só ser assim
bonito, só, e dar os bons dias.
muitas vezes somos adultos
só para termos de nos chatear com alguém.
devíamos pensar mais em ser
crianças ou flores (ou as duas ao mesmo tempo).

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

o monstro

às vezes acho que é por medo
que te perdes tanto em justificações
quando estamos só nós
(às vezes acho que é por medo
que toda a gente se perde em justificações
quando está a sós comigo)

não sou esse monstro feio
que me parece que vêem em mim
(do bem e do mal que me conheço
sei que na verdade não sou)

perdesses o medo que tens
e entregava-te o coração

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

137

Sôbolos rios que vão por Babilónia, sentados
chorámos as lembranças de Sião,
e nos salgueiros pendurámos as harpas contra o vento
Sl 137, 1-2 [mudado para português por Herberto Helder]

a cada passeio solitário
quando ainda há sol
ou quando a noite teima em cair
sinto esta terra mais minha
como se de alguma forma
sempre o tivesse sido

na verdade sinto isso
com vários lugares
e várias pessoas
(geografias assim tão distintas)
talvez por não ter a que me agarrar
um lugar que seja meu
talvez por não ser daqui

terça-feira, 19 de agosto de 2014

o verbo assustar

ao entrar na sala vazia
ao mesmo tempo escura
um susto de vida
isso mesmo
um susto de vida
era a caixa antiga
com os objectos da infância

uma vida que volta
nessas pequenas coisas

a mesa de pedra

as tardes de sol são boas
para os putos saírem de bicicleta
(há um que leva a bicicleta às costas)
também são boas para falar de amor
se aparecer quem nos queira ouvir
(hoje não passou aqui ninguém
enquanto escrevia estas coisas
e lia jorge luis borges)

fotografia por revelar

Na taberna da aldeia,
a que agora chamam café,
há um homem que fala sozinho
e nunca responde às nossas perguntas.
Esbraceja sem fim e ri-se
e não se importa se ninguém o ouve.
Partilha receitas de coelho guisado,
vinho branco, cebola cortadinha, colorau,
tomate, alho, mais vinho branco,
e lembra-se do nome dos irmãos
que são cinco, com o que já morreu.
Diz que tem quarenta e oito
ou sessenta anos, uma idade aí pelo meio,
e que sabe assinar se vir o nome escrito.
Gosta de cópias em letra de imprensa
e não é adepto de ditados.
Carrega o dinheiro todo no bolso
para não ser roubado pela irmã
e a ver se vai comprando
copos de vinho e cervejas.
«Sou o mais parvo dos meus irmãos
mas, às vezes, faço-me mais parvo
do que aquilo que sou».
Ouvi poucas autobiografias tão boas.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

terra quente

ainda pedes para voltar
àquele dia da tua infância
em que te esqueceste
como se sobem as árvores
e todos apontaram para ti

nesse momento sentiste mais
as moscas que te mordem as pernas

A morte de Pedro Páramo

Transporto sempre uma faca no bolso
para trazer presente à memória
que não fui eu quem matou Pedro Páramo
na noite quente de Buenos Aires
por entre o som de tangos nos bares
e a sujidade das ruas escuras.
Naquela noite saí para beber rum
e tentar-me esquecer de uma mulher
antes de partir no próximo avião para Caracas.

palavras batidas

o espaço que se constrói
entre as palavras que se dizem
e as que ficam por dizer
é o lugar do poema de Deus

domingo, 17 de agosto de 2014

quinto livro das explicações

Como num ritual antigo
sentávamo-nos em redor da mesa
para ouvir a mãe explicar
o Cântico dos Cânticos.
As mulheres é que entendem
estes assuntos de cariz divino
que fazem parte das virtudes teologais,
não são rudes e básicas como os homens
que quase nunca sabem sentir.

(O Cântico dos Cânticos foi
admitido no cânone da Bíblia hebraica
no fim do século I e a sua autoria
é atribuída por alguns ao rei Salomão.
Quase todos os biblistas admitem
que foi escrito por homens)

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

vento na janela

o vento é uma máquina previsível
que serve para criar lugares-comuns
e talvez quinze frases de auto-ajuda

se ao menos por um dia alguém
se pusesse mesmo ao sabor do vento
até ficar com os olhos a chorar

falo de um vento mesmo forte
como o que se ouve hoje lá fora
não de brisas suaves que podem trazer Deus

se um dia alguém se pusesse
corajosamente diante desse vento
acabavam-se as frases parvas

os escritos reconfortantes para donzelas
e as imagens recorrentes de janelas
e portas e coisas com aduelas que podem bater

quando se sente o vento que hoje faz aqui
real e com força nas trombas até fazer chorar
descobre-se que ele é viril como nenhum homem

terça-feira, 12 de agosto de 2014

noites alegres

o moinho velho ainda trabalha
fazendo um ruído grande à noite

ao fundo crianças falam alto
porque os pais não os repreendem
como se fazia dantes
em que ainda lhes ensinavam
que falar alto à noite era má educação
e um perigo dos grandes

chove de uma maneira esquisita
e percorro, como sempre,
as ruas da aldeia em completa solidão.
acontece-me cruzar-me com pessoas
três jovens dois carros uma velha
a carrinha azul da série de televisão
mas já ninguém acena nem diz boa noite
muita coisa que havia noutros tempos se perdeu
nem todas as coisas eram más
a fome o medo a falta de conversas à noite sim

domingo, 10 de agosto de 2014

travessa das fontes

gostava mais da função original das fontes
a água que corre sem cessar
e é usada para matar a sede
e para lavar os corpos sujos do trabalho da terra

os bancos quase nunca vazios
ocupados por raparigas sonhadoras
à espera de um amor de almude ao ombro
um rapaz que dê beijos
e ajude a pôr a bilha pesada à cabeça

hoje as fontes são sítios escuros
com muitas torneiras fechadas
paredes verdes de abandono
e rapazes a enrolar marijuana

olhar lateral

sentado na mesa do café
com um caderno à frente
o homem não consegue
desviar os olhos
da rapariga do lugar ao lado
há qualquer coisa que encanta
naquele olhar castanho e grande
e ele não sabe explicar
nem pôr por escrito

ela sorri porque sem saber a causa
gosta de ser vista assim
sempre pensou que os homens
não passam mais de dois minutos
sem voltar o olhar para si mesmos

a água está na sede

perdes-te à tarde
a contemplar o som do riacho
que ainda teima em correr
apesar de todos os esforços
que têm feito para o secar
tentas ouvir só o som do riacho
e olhar a água que bate
com força nas pedras
mas hoje não dá
há sempre um amor que falta
e é para ele que lanças o olhar

livro das recomendações

não busques demasiado a lua
em noites de muito calor
procura antes um forma de adormecer
num lugar onde corra o vento
e os bichos barulhentos não cheguem

não procures nunca o sol
em sítios onde se ouçam cães
ou a melodia dos pássaros
vai à procura do silêncio absoluto
por estradas que já ninguém usa

sábado, 9 de agosto de 2014

apenas um lugar

o lugar que há
entre o que morre
e o que nasce
é aquele em que
desejamos habitar

sub silentio

a gestão dos silêncios
custa sempre mais
que a gestão dos sons
a excepção deve ser
o momento solitário
passado à sombra das árvores

luz de presença pós-moderna

há uma calma que me vem
de saber que tenho o teu número
nos meus contactos telefónicos
e que há uma fotografiazinha tua
na minha lista de amigos de facebook

sei que nunca me irias atender
nem ler os meus apelos
que deixo por todo o lado
quando dão as três da manhã
mas sei que me acalmo
por saber que estás aqui
desta forma virtual

(às vezes mexo no telemóvel
como se te estivesse a dar a mão)

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

canto dos corvos

aquele poeta a quem hoje
queria agradecer o bem
que me tem andado a fazer
já morreu

foi-se embora cedo demais
para onde as palavras
já não interessam
só o olhar

montes urais

Alexandre o Grande está morto
agora que preciso dele
para lhe pedir um favor

sem montar um elefante
(um unicórnio, talvez, um cavalo
branco de príncipe encantado)
não dá para tanspor os montes
em que escondeste o coração

contagem

quantas pedras cabem
na casa que havemos de habitar
a que tem um damasqueiro no quintal
e um ramo de rosas brancas
em cima da mesa do jantar

com quantas pedras se constrói essa casa
(com dois corações que se multiplicam)
era o que eu queria dizer

Fiódor

ainda não percebo o porquê
de deixar o verão para ir a um lugar tão frio
cheio de prédios antigos e solenes
e gente anónima a circular pelas ruas
quase sempre sem sorrir

naquele dia pus-me por uma viela escura
para conseguir encontrar
na sala do palácio antigo
esse quadro belo e perturbador
(o que faria o teu rosto
naquela tela pintada a óleo
por um artista de São Petersburgo?)

caruma

percorro solitário o carreiro
aberto por entre árvores altas
à procura de vestígios da presença humana
frases gravadas à faca em cascas de eucalipto
lenços de papel e pacotes de bolachas
que acabo sempre por não encontrar

olho para o relógio
para ver que já passaram duas horas
e não encontrei nada
nem a voz dos corvos ao longe

decido parar sentado à sombra de uma árvore
para te dizer outra vez
que se estivesses aqui
te entregava o coração

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

vien ici

as matrículas estrangeiras
dos automóveis dos emigrantes
aparecem em agosto
para dar vida à aldeia
para abrir as janelas das casas
para fazer as vidas mais reais
mas a realidade não é essa
a realidade é uma coisa
que se esconde e guarda
por dentro dos teus olhos doces

terça-feira, 5 de agosto de 2014

plátano solitário

tenho saudades de andar descalço
pelo alcatrão junto à praia
quando ainda levava a mão ao bolso
à procura de rebuçados
e fugia a correr da sombra
das nuvens com forma humana

ensinaram-me que esses tempos
podiam voltar se aprendesse
a gerir as respirações e a
acreditar com todas as forças
que o alcatrão não aleija os pés

devo ser muito burro pensei depois
de dois vidros e um prego na sola
do pé direito

vento japonês

rosas e silvas
partilham espinhos
e cheiros doces no verão

rua agitada

parado no café a olhar
para a mulher de mão estendida
que me pedia um poema
não queria moedas nem pão
queria palavras que pudesse levar
para sempre no bolso ou junto ao peito
às vezes as palavras não chegam
estão em falta dentro de mim
escrevi antes de arrancar a folha

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

terceiro livro das peregrinações

ao longo do caminho
o que causa mais bolhas nos pés
contrariamente ao que te dizem
não são as subidas íngremes
mas as rectas infindáveis
(uma recta é um conjunto
infinito de pontos,
linearmente ordenados,
sem primeiro nem último,
sem pontos consecutivos.
também pode ser
um lanço rectilíneo
de estrada).

ficar sentado no sofá
a ver nem sei bem o quê
na televisão estatal
não causa bolhas nos pés.

a estrada é sempre mais fácil
para os que não se fazem ao caminho.
o que é que isso não vale a pena.
conjunto infinito de pontos, linearmente ordenados, sem primeiro nem último, sem pontos consecutivos

recta In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-04].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/recta>.
conjunto infinito de pontos, linearmente ordenados, sem primeiro nem último, sem pontos consecutivos

recta In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-04].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/recta>.
conjunto infinito de pontos, linearmente ordenados, sem primeiro nem último, sem pontos consecutivos

recta In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-04].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/recta>.
conjunto infinito de pontos, linearmente ordenados, sem primeiro nem último, sem pontos consecutivos

recta In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-04].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/recta>.
conjunto infinito de pontos, linearmente ordenados, sem primeiro nem último, sem pontos consecutivos

recta In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-04].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/recta>.
conjunto infinito de pontos, linearmente ordenados, sem primeiro nem último, sem pontos consecutivos

recta In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-04].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/recta>.

domingo, 3 de agosto de 2014

insónias (mil duzentos e trinta e dois)

era como se a verdade
certos dias ao acaso
surgisse em frases
de revistas cor-de-rosa
não escolho quando tu entras
nem escolho quando tu sais

a vida às vezes é uma parede
feita de pequenos escolhos
há-que saber saltá-los
ou habitar com paciência
o lugar onde se sentam
os gatos do vizinho
só para te irritar

quinta-feira, 31 de julho de 2014

nariz apurado

o grande medo
que tenho à noite
quando chega a hora
de irmos dormir
é que rejeites
o meu cheiro
como os ratos
detestam o odor
da pele humana
nas pastilhas cor-de-rosa
que usamos
para os exterminar

canção das criaturas

i

saí para te procurar
à noite
às escuras

ii

que não seja longa
a nossa espera
à porta do céu

quarta-feira, 30 de julho de 2014

wait (not for tom)

todos os dias
espero por ti
todos os dias
não chegas
à mesma hora

amanhã vou
cansar-me
de esperar

há tanto tempo
está um país
azul e verde
à minha espera

despertar (um ponto zero)

por volta das oito da manhã
acordas com barulho
de martelos e berbequins.
«devem ser obras»
mas decides não espreitar
e pensar que é antes
o anúncio
de que é hoje que o amor
vai passar à tua porta
assim, com avisos estriónicos.

gestão solitária das saudades

o percurso a pé pela aldeia
é todos os dias o mesmo
descer à fonte
subir ao moinho
caminhar em solidão
a aldeia é um espaço sem gente
talvez para me lembrar mais de ti
e que posso ter errado
ao mandar-te embora de mim
a estrada antiga
que leva à casa do moleiro
é boa para inventar poemas
a estrada, como o poema,
exige que andemos no risco

domingo, 27 de julho de 2014

olhar para cima

nunca sei distinguir
entre o esquerdo
e o direito
na hora de tocar
à campainha
como não vens à janela
para dar dois gritos e acenar
faço só figura de parvo
no meio da rua
a olhar para o céu
(ainda há quem olhe para o céu?)

stat crux

Na solidão da minha cela
ó Deus, bastas-me Tu
todo este espaço
tão vazio de coisas
como devo ser eu
quer ser habitado por Ti
que o Teu som de Amor
que o Teu grande Amor
ocupe o silêncio estranho
do meu pequeno oratório

cavalos de pau

no largo antigo da aldeia
ao som do sino da igreja
ainda se brinca
com cavalos de pau
com peões com caricas
e com pedras
ainda há esse lugar
onde parece que
o tempo parou
pára todos os dias
porque à porta da taberna
depois de três copos
bem aviados
ainda há homens
que escarram para o chão

sábado, 26 de julho de 2014

goodbye and hi

o que me causa mais dores
no meio disto tudo
seja lá o que isto for
é que nunca houve verdade
o que sempre tomei como gratuito
afinal era para trocar por qualquer coisa
assim não sei viver
(«quem não vive para servir
não serve para viver»)

sexta-feira, 25 de julho de 2014

cem palavras

nunca te dirigi
nem uma palavra
mas sinto-me seguro
quando estás por perto
nos chats da internet
(tenho um encanto
secreto pelas tuas mamas
e pela tua voz)
fico a lamentar-me
porque as mulheres bonitas
vêm sem manual de instruções
por sorte os malucos como eu
também

quinta-feira, 24 de julho de 2014

lágrimas escondidas

na taberna da aldeia
para cada um há
uma cerveja fresquinha
um copo de vinho
um cálice de aguardente
na televisão da tasca
passa a novela da noite

os homens de barba rija
têm corações moles

terça-feira, 22 de julho de 2014

things i'd like

gostava tanto
de me enganar menos

o engano é uma prevenção eficaz
contra corações que sangram

quinto bloco de notas

quando vejo algumas fotos antigas
consigo-me aperceber
que há coisas de que me arrependo
tantas vezes
e em que afinal
sempre estive coberto de razão

domingo, 20 de julho de 2014

transporte

às vezes à noite
quando saio do trabalho
ponho-me a olhar
para os calos das minhas mãos
deixa marcas
o trabalho do campo
sobretudo quando começa
tão cedo
tinha oito anos só oito anos
a primeira vez que larguei sementes
e passei o dia a cheirar pó da terra
quando olho os calos das minhas mãos
espreito também as outras marcas
que ficaram por trabalhar desde tão cedo
os meus filhos é que sofrem com isso
«cada acto meu como pai
transporta a minha infância»

as coisas que importam

obriga-te a ouvir pessoas chatas
nunca ligues a conselhos de auto-ajuda
percorre descalço longas distâncias
nunca te auto-consoles
não te dês demasiada razão
não te leves demasiado a sério
não sejas demasiado sério
nunca digas nunca
a menos que seja a hora de o dizer
não busques nos poemas
conselhos de amigo
para uma vida
frases de conforto
para o que querias ouvir
(uma raiz de beleza
visível no fundo de um buraco
escavado à mão
com suor e silêncio
é isso que eles são)

manhã de verão

as memórias de amores
que se acabam
são como nódoas
de ameixas amarelas
(sabem a doce
e não se notam)

sexta-feira, 18 de julho de 2014

deviam ser estilhaços

entre mim e ti há um vidro
uma qualquer coisa invisível
que nos separa para sempre
(na leprosaria havia um vidro
esburacado a separar os pais
dos seus próprios filhos
que lhes eram tirados à nascença
para não haver contaminações.
as mães nunca chegavam a tocar
naqueles que pariram
mal lhes conseguiam sentir
a respiração ofegante
própria dos que amam)

na verdade nunca te fiz festas
foi-me sempre impossível
partir a placa grande de acrílico
que nos separava
limitava-me a esfregar o vidro
como se do outro lado tu sentisses
alguma coisa
hoje percebo finalmente
que nunca sentiste nada
és orgulhosa o suficiente
para nem me acenares
não dizeres um adeus
do lado de lá deste sítio
onde vegetam os que vão morrendo

quinta-feira, 17 de julho de 2014

publicidade enganosa

como passei o dia em casa
abri várias vezes a conta de e-mail
recebi dezoito mensagens
de gente a querer vender-me produtos
variados (igualmente inúteis)
não andava à procura de cursos de inglês
nem de champôs milagrosos
dispenso férias baratas em punta cana
queria uma mensagem
curta que fosse
do amor da minha vida
a dizer estou aqui
só essa é que não me chegou

sur la violence

um pau pode ser uma máquina
de fazer marcas permanentes
no corpo de um homem
quando lhe acerta vinte vezes
a maior parte delas sem razão

enquanto caem bombas
por todo o país
em todas as cidades
ainda há quem pense
nas virtudes pedagógicas
de um pau de marmeleiro

(as mulheres é que sabem sentir
encolhida ao fundo da cozinha velha
a mãe implorava ao marido
«não é preciso dar porrada
no filho único»)

quinta-feira, 10 de julho de 2014

loiro pintado

se algum dia fosse capaz de te amar
ia doer-me a tua tatuagem pequena
debaixo de uma das orelhas
as letras que lá aparecem
podiam ser mais minhas

não são

warm

as noites de calor
pedem guitarras portuguesas
e trazem bichos estranhos
que fazem comichão

as noites de calor
pedem abraços teus
mas não estás
não sei se algum dia vais estar

tabuaço

chegará o dia
em que hás-de construir uma casa
com a porta aberta ao silêncio
e vista para escarpas longas
onde o mistério da vida
sempre se esconde.

um dia construirás uma habitação
onde o amor crescerá como flores
regadas por brisas suaves
e fortes trovoadas.

vais construir uma casa
com as tuas próprias mãos
essa casa és tu
podemos ser nós

medieval

quando comia coelhos
esfolados à mão
e assados na chama
depois de empalar
trincava sempre
as pontas dos dedos

quando o teu corpo
tem a cor e o gosto
do esterco
tudo é difícil
de distinguir

questões para todos os dias

que todos os dias te perguntem
pelas merdas em que te foste meter
mesmo que nunca saibas bem
que diabo de porcarias são

sexta-feira, 4 de julho de 2014

teeth against the glass

Os dentes também servem para morder
de uma crónica do público

no mundo há muita falta
de compaixão.
as profissões empreendedoras
não se compadecem
de amores nem de paixões
(nem de salários dignos
mas isso agora não vem ao caso).
os dentes do bebé
quando nascem
quatro de uma vez
não respeitam
as oito horas de sono
dos progenitores.
eu também não devia
compadecer-me de ti
(já dei para esse peditório
vezes de mais)
mas não sei não perdoar.
o perdão é um modo de ser

quinta-feira, 3 de julho de 2014

meu bem querer

era contigo
que ia construir um jardim
de estrelícias e frésias
e outras flores com cheiro de chá

secaste-me as rosas que havia
em volta do meu coração

já não há espinhos
que o protejam

lírios pretos

todas as lojas de chineses
têm um alguidar
com flores de plástico
são sempre as mais bonitas

naquele dia um ramo
de lírios pretos com apliques
rosa e amarelo fluorescente
o que é estranho chama
sempre a atenção
nem sempre
quase nunca
por ser o mais bonito

a dádiva

o segredo para participar
do mistério da redenção
do género humano:
àquela que sabes que te mente
com todos os dentes que tem
que não te dá nada em troca
(nunca deu, mesmo que te jure
a pés juntos que sim)
quando sempre te lhe ofereceste
perdoa sempre e uma vez mais.

traições

talvez visses ruir a tua vida
inteira por dentro
se soubesses
que quase sempre te mentiam
um grande amigo
dormiu com a mulher que amas
ou amaste ou coisa assim
pode não ser fácil
às vezes não tem de ser

aracnídeo

um aranhiço desce
o portão da minha garagem
não sei se feliz

hoje deve estar uma boa noite
para ler a república de platão
aguenta-se bem na rua
de calções e t-shirt

quarta-feira, 2 de julho de 2014

segundo bloco de notas

a alegria
tantas vezes
serve só
para disfarçar
a angústia

dedos podres

foi encontrado morto
no pomar às sete da manhã.
deviam-no ter impedido
de andar com um canivete no bolso
mas na aldeia isso é normal
e um símbolo de ser homem.
os cortes mais profundos
estavam nas mãos
dois lenhos que expunham os ossos.
haviam deixado de funcionar
as mãos.
um homem sem mãos
que deitem o trigo à terra
não presta
não vale a pena.
do contrário
nunca ninguém o convenceu.
era tão simples
salvar um homem.

finis terrae

tudo é como um buraco negro
escavado com as próprias mãos
até que se acabem as forças.
tudo é um esforço enorme
grande demais para mim
coisa sem sentido.
tudo é um nada
ou quase nada.
no fim de tudo
apenas a angústia

coordenadas

como um frigorífico velho
tapado com um cobertor
viaja sobre um carro
assim o meu amor

a mesa no restaurante
vazia à nossa espera
não te decides
e eu não me canso de esperar

devia haver relógios
que cronometrassem estas coisas
por ti perdi um torneio
de futebol de sete de infantis


eleison

porque buscais no oriente
o ocidente que perdemos?

não há mantras que atinjam
as profundezas do ser
como as litanias antigas.

«Senhor, vinde iluminar
a miséria da minha alma»

sexta-feira, 27 de junho de 2014

água ardente

o saco de plástico
cheio de água
ao fundo das escadas
é tão inútil
quanto eu
e aquele auto-conselho
que me dei num banco de jardim
numa noite quente
«nunca te deixes apaixonar
por mulheres casadas»

quarta-feira, 25 de junho de 2014

das nuvens

a vida é um mistério
que vem sem manual
(a palavra mistério
não implica necessariamente
algo escondido.
pode referir-se
a uma coisa que se desvela
como quando a mulher
se despe para ti)
o amor é, dizem,
a chave do mistério
o amor é um lugar
onde se pode chorar
esse segredo
nunca o contes
a ninguém

segunda-feira, 16 de junho de 2014

regrettings

quando olho para trás
não me lamento do dia
em que te aconselhei
a pôr a auto-ajuda no cu

acho que às vezes
ainda me vou lembrar de ti
como da arca velha em casa da avó
mas nada mais do que isso

edifício nós

está uma noite
estranhamente quente
enquanto no pátio
quatro oliveiras jovens
dançam efusivas
é uma graça poder olhá-las
não ter uma casa
é um milagre
que às vezes acontece

holon

o cansaço que vem de dentro
custa mais a resolver
os comprimidos que se usam
para aliviar as dores
de duas voltas a pé
pela capital
deviam minorar também
os efeitos da angústia

quarta-feira, 11 de junho de 2014

renovação

Depois de uma tarde a tratar do jardim
a nossa vida
importa menos
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

era o mesmo jardim
todos os dias
os mesmos gestos repetidos
as mesmas alfaias
para cortar plantas
e sulcar a terra

ao mesmo tempo
um mundo sempre novo
que vem de dentro
das covas abertas
a flor nova que brota
transforma todas as coisas

segunda-feira, 9 de junho de 2014

rejeitados

estes os que resistem
à cura preciosa do tempo
foram anos e anos
de um longo caminho
percorrido a pé
com um destino
nem sempre bem traçado
estes os que ninguém quer
talvez se queiram a si mesmos
é esse o primeiro passo
para que sejam
parte de um mundo de homens

dezanove e vinte e três

na carruagem azul
trocava mensagens de ódio
com o seu amor

hoje não sabia mais nada dele
nem o nome
sabia que o odiava
com todas as forças

é linda demais
para ser assim trocada por outro

bendito o dia em que escreveu
nos contactos do telemóvel
amor e um coração
é tudo o que agora precisa de saber

a sombra

debaixo da escada
escondido
um lírio em flor

sumol

há uma coordenação mecânica
que se exige aos homens
que pisam uvas nos lagares

é esse gosto musical
que passa para os seus vinhos
e se perde nos outros
que são triturados em máquinas

the man with a bag on his back

a via do amor é estreita
e cheia de pedras e silvados
caminhos longos
que se fazem de mala às costas
com muitos mantimentos
agasalhos e um saco-cama

quando cair o frio da noite
abriga-te
debaixo das folhas dos pinheiros

quando o sol se levantar
faz-te de novo ao caminho
com as tuas botas calçadas
umas botas cheias de pó

calçada de carriche

a vida é feita
de escolhas e imperfeições
sobe àquele monte
onde se vê o mundo

quando atingires o cume
continua a subir

terça-feira, 3 de junho de 2014

vinte e um ciprestes

não és o lugar da esperança
és o sítio onde se espera
um sinal

das cores (roxo)

em todos os meus sonhos
o mesmo pé de jacarandá

todos os meus sonhos
cheios de flores roxas
que colam os pés

todos os meus sonhos
o teu vestido roxo
no meio da pista
na festa do liceu

somos todos um bocado doutores

já não há lágrimas
quando à noite a casa vazia
a solidão é um estado
que não se escolhe
mas se aprende a aceitar
é como as profissões
como tudo enfim
neste tempo de escombros

junto ao rio escolho pedras
que estejam gastas pela água
com elas hei-de fazer uma casa
que ponha fim às nossas solidões

o onomá

não te falte o tempo
para dizer os nomes dos rios
nem dos barcos que lá navegam

ontem esqueceste as palavras
que se usam para dizer o amor
e outros sentimentos
que fazem doer

só sabes os nomes dos rios
e outras coisas inúteis

nós

a idade das árvores
calcula-se contando
os nós do seu tronco

a idade dos homens
calcula-se contando
os nós na garganta

segunda-feira, 2 de junho de 2014

uma canção para pavlov

eram três da manhã no quarto escuro
e gemias com medo da escuridão
vinhas ter comigo como se isso
de alguma forma te defendesse
acho que não defendeu
não sou forte o suficiente
para defender quem quer que seja
antes de me acordares em sobressalto
sonhava com a forma de te fazer brilhar os olhos
sem ter de pôr músicas de dança
(talvez te fizessem falta
umas horas de televisão
deitada sem sapatos num sofá
que não é só teu)

quarta-feira, 28 de maio de 2014

prestissimo

Para o Nuno

quando as luzes se apagam
há ainda um último som
de um órgão de tubos antigo
era nesse som pujante
que se escondia a tua fragilidade
(por baixo dela um homem forte
que nunca pensa em desistir)

hoje é um dia bom
para ouvir tocar
órgãos no céu

construir primaveras

Para o Paulo

as cervejas na mesa
ainda frescas
e nós a conversar
como se fôssemos felizes

na verdade a vida é uma ruína
que talvez ainda consigamos
voltar a erguer

segunda-feira, 26 de maio de 2014

strange day

o dia amanhece esquisito
e em todas as torneiras
corre água com gás
decides sair de casa
e ir pela divisão da alegria
vais à procura da salvação
de todo o género humano
pensas encontrá-la numa canção
gravada ainda em vinil
ou num livro perdido
no alfarrabista da esquina

quinta-feira, 22 de maio de 2014

love kills

não se cansavam de dizer
que o amor mata
e faz doer muitas vezes

não sabiam o segredo
que uma árvore
me contou um dia

o amor dói mesmo
mas não há outra forma
de encontrarmos a vida

calor em bizâncio

istambul é a cidade certa
para visitar quando se procura
o sol

um dia fui a uma agência de viagens
perguntar qual a melhor cidade
para encontrar o amor
mas um amor verdadeiro
a cidade de deus
dizia a empregada
a cidade de deus
do santo agostinho
que está publicada
em três volumes
na fundação gulbenkian

terça-feira, 20 de maio de 2014

a casa amarela

se eu fosse por dentro
dos teus olhos de menina
descobriria segredos
nunca antes revelados
a casa amarela
de onde fugias
com um vestido azul
em busca do som das árvores
do cheiro do regato que havia
ao fundo da estrada

se fosses por dentro
dos meus olhos tristes
encontravas o amor

o brilho da esperança
é a sala escura ao fundo
onde nunca pudeste entrar

lacrimarum valle

a chuva é uma máquina
de despertar poemas

dizes que sou um raio de sol
sou um poeta para dias chuvosos

as gotas caem e penso
num antigo refrão esquecido
«não tenhas medo de chorar
por um grande amor»

rua castilho

nas encruzilhadas dos caminhos
dúvidas e indecisões

nas pedras da calçada
escrita uma mensagem
«constrói a tua cidade
sobre rochas que não se quebrem»

pluvial

o objecto litúrgico
para os que gostam de andar à chuva
é a angústia

há-que saber vesti-la
enfiá-la pela cabeça
e garantir que não chega aos pés
diz a mulher com nome de furacão
numa tarde de trovoada

segunda-feira, 19 de maio de 2014

código de roupa

os poetas deviam
vestir fato-de-macaco
usar capacete de mineiro

é um grande esforço
escavar o sentido
procurar a beleza

taurus

vinha nas notícias
a morte de um homem
com uma cornada no coração

não cabem nos noticiários
milhares de homens
que morrem de amor

omnibus

os autocarros e os táxis
como as carruagens
dos comboios e metropolitanos
são lugares demasiado sujos
também demasiado breves
para lá se encontrar o amor

o amor não se presta
a tempos que fogem

mãos dadas

no meu sonho surgias
levantada do chão
no meio de um jardim florido
como num milagre criado
especialmente para mim

a verdade é que sou doente
não me lembro do que sonho
nem sei os nomes das flores

la folie est une fête

não se deve ficar mais de uma semana
a contactar com loucos
é exigido um dia de descanso
um período de fuga

é que a loucura é um estado
que se aprende a amar
um caminho sem retorno
desenhado com linhas ténues
de uma tinta chamada sanidade

quinta-feira, 15 de maio de 2014

sleeping

há um fascínio estranho
que os homens têm
com a posição em que
as mulheres dormem
em sítios públicos
ou lugares privados
uma daquelas coisas
que não queremos assumir

(nunca me apaixonei por ti
porque nunca te vi dormir)

quarta-feira, 14 de maio de 2014

outra madrugada

O teu casulo
é a minha casa
MÁRCIA (?)

o que nos ensina o homem
que lê tudo o que encontra:

o verso perfeito está perdido
num papel que esvoaça
(era um talão do multibanco
um guardanapo de papel
uma factura do supermercado)

os meus melhores versos
já outros os escreveram

terça-feira, 13 de maio de 2014

mil imagens

às minhas palavras
respondes sempre
com imagens
sinal que sabes
como eu devia saber
que palavras são
fonte de mal-entendidos
devíamos guardá-las numa caixa
para ocasiões mesmo especiais
mas não, teimamos em usá-las
teimamos em procurar
coisas que não se encontrarão

(há uma rosa à espera no meio do deserto.
um farol que se acende de novo todas as noites)

oração dos felizes

tudo o que tenho a pedir:
a solidão acompanhada
do monge.

três tiros

matei um homem
sem disparar
matei um homem

não pode ser outra coisa
descobrir que o amor é um barco
que vai mais vezes do que vem

o amor que eu quero
é todo o que não tenho

empty room, empty soul

quando vais embora
deixando a sala vazia
já não sinto a tua falta
nem aquela coisa saudade
que não se consegue exprimir
não faço mais juras de amor
não gosto muito de ninguém
tenho a alma vazia

quinta-feira, 8 de maio de 2014

moinhos

os burros sobem a encosta
com as albardas cheias de trigo
vão fortes alimentados de caniços
e outras pragas dos campos
conduzidos por um dono fraco
alimentado a bagaço pela manhã
(talvez haja pão e toucinho para almoçar)

na taberna que há no sopé do monte
os homens só mais uma lágrima
e uma rodada de copos de três
enquanto os outros olham os burros
«animal trabalhador, os burros»
um homem olha o céu e vê um avião
voando com destino a nova iorque
«antigamente é que era bom
andávamos descalços mas havia respeito»

o jardim

o grande defeito do êxodo rural
é já não se saber o nome das flores
nem distinguir as árvores de fruto

naquele dia subi uma figueira
para que tu me visses do alto
como sempre passaste a tarde
a olhar para a árvore errada

quarta-feira, 7 de maio de 2014

rosa do deserto

no egipto há cabras
que comem papel
outras que comem pedras

na aridez da minha vida
quase nada com que me alimentar

terça-feira, 6 de maio de 2014

queimar

em pequeno achavas que era o fogo
a coisa mais forte e protectora
sonhavas um dia abraçares-te ao lume
imaginavas o dia em que ele não te queimasse
um dia inaugural novo diferente
dia de uma chama nova que chama
que te levasse a um dia novo
com uma luz intextinguível
uma vela gigante que não se apaga
um sol que brota da terra

naquele dia saíste nu
em busca da fogueira no meio da serra
aquela fogueira no meio da serra
foram tarde demais os homens com os cães
já não evitaram o teu encontro com o fogo
último dia aquele último dia aquele
o dia em que agarraste o fogo
«finalmente te abraço meu protector»
e ele abraçou-se a ti
o fogo que protege também mata
matou naquele dia estúpido
como tu foste estúpido
a querer provar que o fogo queima
e que escondida nele pode estar
a felicidade e um amor qualquer
não há. no abraço do fogo a morte ri.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

verbo estender

a vida nem sempre
a aprendes
em poemas que se estendem

há tanto mundo
a dizer-se no silêncio

considerações sobre a falta

se às vezes me faltasse o fogo
como a ti às vezes falta o ar

talvez caísse um sinal do céu
ou se erguesse um sinal da terra

para dizer que estamos bem é juntos
ontem hoje sempre para sempre

não há sinais. resta-te ele.
a mim resta-me a solidão

sunset

o que me intriga
é que o homem não venha
com um aparelho para medir
quantos dias cabem
na noite escura

quarta-feira, 30 de abril de 2014

the key

tenho as mãos manchadas de sangue
de um crime que não é meu
queria uma chave para o teu coração
não ma quiseste dar
(talvez um dia queiras)
encontrei uma chave para escolas
assim coberta de sangue
do sangue de um povo inteiro

segunda-feira, 28 de abril de 2014

sozinha

sozinha na estrada de chão
lamentas-te porque vives
sozinha num apartamento
na cidade grande e quase
nunca recebes visitas

agradeces estas saídas
gostas de ver gente e estar
com pessoas o homem
bêbado tem umas teorias
estúpidas que eu condeno
e tu perdoas pareces sempre
pronta a perdoar

sozinha na estrada de chão
sorris com a boca e os teus
olhos verdes tens uma voz
que sabe sorrir como que a
dizer-me também és sozinho
talvez haja esperança para ti
(para nós)

path

é hoje o grande dia
dia de juntar pedras
com que fazer de novo
uma via romana

somos uma legião
precisada de ter
estradas novas
por onde caminhar

sismo

o dia chegou e as pedras
tremeram. o altar do
templo antigo partiu-se
outra vez. das pedras
saíram homens já
não urbanizados selvagens
perdidos no meio da
selva comunidade
dos abalados peregrinos
de um destino que não
houve se queres destino
destapa as pedras
que ainda restam
faz com elas um
caminho põe-te a andar

perscrutação

quando vires chegar
a angústia na voz
de alguém reserva-te
ao silêncio. é o melhor
conselho que te cabe dar.

não entres em casa com
os sofrimentos dos
outros. sacode o pó
das sandálias. a
ti basta-te a
tua solidão.

arrumação

no poema há espaço para tanta coisa
talvez também para
sacas de cal carregadas com os dentes
cagalhoças de burro a arder
fogueiras de apoio feitas na rua
uma estima que não dá para entender
o sorriso de uma mulher
que depois de veres
descobres que escreve
e escreve bem

fricção

às vezes tudo surge
com um verso

às vezes um verso
devia bastar

poucas vezes basta
e as palavras ficam
para nos dividir

quinta-feira, 24 de abril de 2014

celeste dos cravos

(dos nomes com funções)

é a véspera do aniversário
da revolução
na praça procuro
a celeste dos cravos
quero usar um na lapela
ou na ponta de uma caneta
[a palavra é uma arma
mais cortante que uma faca
de dois gumes]
revoltas é
com a mulher dos tremoços
dizia-me o zé das couves
mãos sujas como as caixas
que lhe servem de banca
tudo coisas de tempos
que já lá vão
[que não voltem
não demos democracias
por garantidas
diz a mãe a um camara man]
a mulher dos tremoços
hoje não veio
já não lhe compro pinhoadas
vou procurar
a fátima dos bicos
celebrar a revolução
pode ser dar uso
a coisas que não mudam
com mudanças de regime

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Lv 11, 13

 não te alimentes de aves
imundas abomináveis
xofrangos e esmerilhões

mastiga antes o livro
um livro de poemas
que nunca ninguém abriu

um coelho a tocar mozart

o sol caía e era a tarde
havia ainda um longo caminho
a percorrer

a estrada é longa
não lhe vejo o fim

não queria caminhar à noite
há muitos perigos
sombras salteadores a solidão

mãos nos bolsos
um passo rápido mais rápido
um pensamento repetitivo
chamemos-lhe litania
«somos coelhos a tocar violino»

terça-feira, 22 de abril de 2014

de amore (a)

Os que amam são os que mais sabem de Deus; 
a eles deve o teólogo dar ouvidos.
HANS URS VON BALTHASAR

e o amor é esse
som primordial
que sai pelos campos
à tua procura

treina os teus ouvidos
para o encontro

festas

os teus beijos
vêm sempre acompanhados
de festas na cara
cócegas na barba
risos e festa e alegria
e lembranças que houve
e não serviram de nada
não servem de nada
não quero que te lembres de mim
se não mo dizes

domingo, 20 de abril de 2014

Pesach

Na manhã de Domingo
o sepulcro aberto
(já se havia partido
o altar do Templo
sinal de que os verdadeiros adoradores
sê-lo-ão em espírito e verdade)
de onde Tu sais
para mostrar que há sempre caminho
para os que amam sem fim
(no fim dos tempos permanecerá
o amor)

domingo, 13 de abril de 2014

não estás

na televisão um programa de entrevistas
com nuvens em fundo no cenário
e eu reclinado no sofá
choro com saudades tuas

por cima da minha cabeça
o meu gato dorme
e é feliz
os animais têm a sorte
de não sofrer por amor

duas nódoas (babete)

na camisa branca
duas nódoas
vinho e suor
e eu a pensar
nos lírios do campo
que andam nus
são tão lindos
os lírios do campo
não se preocupam
com a sujidade que fica
depois do almoço
(talvez seja isso
que lhes dá a beleza)

passagem inferior

a minha preocupação:

o sabor do lume
quando à noite
a despensa vazia

o sabor da solidão
quando à noite
a casa vazia

cavaleiro andante

perdi o meu cavalo numa aposta
na taberna escura ontem à noite
tenho de ir para a guerra a pé
perdi uma aposta
como me perdi nos teus ardis
nas ciladas que me montas
sem cavalo vou morrer na guerra
sei que vou morrer na guerra
como morreria por ti
sei que vou morrer por ti
(o meu Senhor morreu por mim
no madeiro da cruz
sou só um servo
não sou maior do que Ele)