blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

(muito) pequeno

fostes à gruta ver um homem pequeno
fostes à gruta ver um homem de fraldas
fostes à gruta ver um homem e dois bichos
fostes à gruta ver um homem e os pais
fostes à gruta ver um homem pobre, sem nada
fostes à gruta ver um homem sem casa
fostes à gruta ver um homem quase sem ninguém
fostes à gruta ver um homem como podiam ser todos

fostes à gruta ver um Deus
fostes à gruta ver Deus
fostes à gruta ver a idiotice de um Deus que se faz homem
            numa gruta
fostes à gruta ver o Salvador do Mundo
           o vosso, o nosso Salvador

domingo, 22 de dezembro de 2013

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

tus cadenas

quiseste prender um homem com um cão
porque és burra

os homens prendem-se com olhares
e beijos e abraços
e risos e o tom da tua voz

alguns prendem-se com mamas
e outras coisas que não vêm ao caso

fotocópia

a sua fotografia no cemitério, avô
assusta-me e dói

não devia ser tão parecido
com alguém que vi tão pouco

agora tenho saudades
das conversas que não tivemos

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

como uma aparição de mim a mim

olhei a loucura nos olhos
parecia estar ao espelho
a ver-me por dentro
por baixo da razão
perto do lugar da ternura
e do amor

na loucura nasce a ternura

afagava a boneca e dizia «doutora, veja como sou carinhoso com a minha filha morta». já não chorava à noite com saudades da filha perdida num incêndio, desde que lhe arranjaram aquele brinquedo de longos cabelos loiros. «tão linda, a minha filha morta. tão calma que dorme nos meus braços. pegue-lhe, doutora, veja, quer-lhe pegar?» «não quero. sente-se melhor? estava a pensar reduzir-lhe a medicação. toma demasiados comprimidos, já não se justifica». «que bom, doutora. sim, agora sinto-me melhor, tenho de volta a minha filha morta. quer-lhe pegar, doutora?» «não quero». a doutora foi embora e pôs no bolso dois comprimidos. não queria pegar na boneca-filha-morta do louco porque lhe fazia lembrar o filho que nunca teve e sempre desejou. doem muito os filhos inexistentes, não se curam nem com mil comprimidos.

chorei cavalos

quando partiste chorei cavalos
não por ti
por um nós que já não é
que acho que nunca foi

era capaz de chorar mais pelos meus livros
talvez ame demais os meus livros
talvez os ame mais do que te amei a ti

devia fazer como o homem
que casou com a sua almofada
e pôr um anel em volta do Cântico dos Cânticos

os meus livros não partem
os meus livros não desistem
os meus livros não fogem
os meus livros não me deixam a sofrer sozinho
(se sofro é com eles)

hei-de amar o teu cajado

apaixonei-me por ele mal o vi
de cajado na mão e botins
as pessoas diziam-me «é louco»
mas para mim é lindo e falou-me
desviando o olhar das pedras da calçada
com que costuma falar
sei que é louco
mas lá dentro vejo um homem
além disso deve haver um amor também para os loucos
uma espécie de misericórdia e salvação
as pessoas diziam-me «é louco»
mas é meu
o meu príncipe desencantado

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

caminhos-de-ferro

se o pão e o queijo
que se comem em bancos de jardim
falassem
talvez dissessem do belo que é
ver passar comboios

hoje encontra-se mais romantismo
na observação de máquinas voadoras

ninguém quer saber dos velhos
que ainda esperam uma automotora
na estação em ruínas
para os lembrar do dia
em que ele se encantou
pela boneca de porcelana de olhos que brilham
que voltava carregada da feira
e ele não podia deixar partir

haverá sempre um amor que se prende ao chão
como ao chão estão presos os carris

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

carro voador

os inventores do mundo deviam criar um carro voador. um carro que me levasse onde quero, a quem quero. um carro que me tirasse dos engarrafamentos e dos condutores lentos que vão à minha frente. deviam criar um carro que fosse só meu, porque não deve haver congestionamentos de tráfego no céu e, apesar de tudo, talvez tenha direito a alguma coisa só minha. até me tenho portado bem.

profeta gago

a literatura bíblica está cheia de gente que não sabe falar
eu seria só mais um
também não sei o que dizer e tenho medo

talvez saiba escrever
porque as letras no papel ganham uma vida
já não são minhas
são do papel que as recebe
e de quem as lê

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

casas comigo?

certos dias espero o dia em que, engravatado, estarei à espera que entres com o teu vestido branco igreja acima ao som de um órgão de tubos. certos dias espero o dia em que passeamos pela praia de mão dada enquanto falamos do brilho especial dos teus olhos cor de avelã quando te ris. certos dias espero o dia de ir ao hospital buscar-te a ti e ao nosso filho. certos dias espero o dia em que existas, acho que podes não existir, acho que o amor, essa forma de amor, me pode ter medo. a maior parte dos dias não espero nada. a solidão é uma filha de chronos que também vai devorando os seus filhos.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

recordar uma casa

volto hoje a uma casa onde já vivi
percorro-a sozinho talvez à minha procura
do que eu era do que eu sou e serei

nas salas da casa só há móveis
cadeiras armários quadros antigos
não resta nada do que eu fui

percorro a casa e não me encontro
queria ter o meu nome gravado
em todas as paredes

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

da minha gratidão

Feliz aquele que beija o ícone
em total piedade
sem nada pedir
José Tolentino Mendonça

tenho muito mais a agradecer
do que a pedir

agradeço o frio do dia em que olho moinhos
e o calor do dia em que contemplo o mar

handicap

devia haver um recolher obrigatório para os deficientes, uma hora a partir da qual não pudessem entrar nos centros comerciais nem nos teatros nem nos cinemas nem nos bares das pessoas normais. em alternativa devia haver centros comerciais e teatros e cinemas e bares só para deficientes. não devia ser preciso que nos cruzássemos com eles nos nossos caminhos, para não termos de nos lembrar que a vida é frágil e pobre e que não estamos tão longe de ser assim. ninguém está tão longe de ser assim. é fraca a linha que separa o génio da loucura.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

pharmacia

há um momento a partir do qual ninguém sabe mais se está a viajar ou simplesmente a fugir
José Tolentino Mendonça

depois de me acusarem de querer fugir
fui à farmácia procurar comprimidos
que curem o meu problema

entre tanta coisa para os ossos
para os dentes para o intestino
para a diabetes para a depressão
para a impotência para a disfunção eréctil
para o vaginismo para os efeitos da tpm
não tinham o que eu queria

não há
e disseram que não prevêem produzir
medicamentos para curar doentes de amor

se eu fujo é do amor

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

coprolalia

as mãos que fazem jarras,
pratos em forma de couve,
lagartos e sapateiras,
velhos em bancos de jardim,
einsteins e saramagos e mários soares,
estudantes, futebolistas,
são as mesmas que esculpem caralhos.
se elas falassem cuspiam asneiras
como à noite a boca do oleiro
cospe escarras verdes.

sábado, 23 de novembro de 2013

esperança média de vida

Para o Rui

ainda espero que a vida traga
aquele melhor poema
(o que ainda está por escrever)

por isso vou errando muitas vezes
errar bonito é o princípio da poesia
errar feio às vezes também

«Esperança média de vida é o tempo em que as crianças, adultos e idosos morrem ao longo de um ano civil»

a solidão não me assusta

a solidão não me dói
quando percorro a casa em ruínas

os pratos ainda na mesa
a cama de casal desfeita
o papel de parede do quarto das crianças
isso é que me dói

aquela vida podia ter sido a nossa

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

sintetizador

neste mundo tantos pedidos complicados
malas de mão caríssimas
um príncipe encantado
automóveis topo de gama
uma casa com vista para o mar
menos vento nas frestas das portas
alguém para amar

o encanto do teu desejo simples
e a minha resposta rápida
não morro sem te levar a um baile

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

resumo breve de uma vida deprimente

à falta de uma mulher
que te mude a vida

dorme com dois livros de poemas

homem invisível

num saco preto do lixo
cortado às postas
o homem passeia pela cidade
sem que o vejam

já ninguém o via
quando se sentava nos bancos de jardim
a ver os carros passar
e a cravar tabaco

a cidade está cheia de gente que ninguém vê

terça-feira, 19 de novembro de 2013

ecce tu pulchra oculi tui columbarum

Como são lindos os teus olhos de pomba
Ct 1, 15

como são lindos os teus olhos de pomba
quase fazem belos também os meus

como é lindo o teu andar de gazela
quase faz belo o meu passo de touro doente

como é lindo o teu coração de carne
quase dá vida ao meu coração de pedra

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

génesis 4, 1-16

se me perguntarem pela família
ou por um amigo mais ou menos íntimo
salta-me a pergunta de Caim a Deus
«Sou eu porventura o guarda do meu irmão?»

perguntem-me antes pelos milhafres
que repousam no cimo dos postes
ou pelos ratos que brincam nas linhas do metro
sempre me poupam do desterro e de uma marca na cabeça

vento norte frio leva a áugó rio

velhas em camionetas da carreira
falam em aldeias enterradas em água
e em séries de tv que mudam nomes a terras
eu rio-me deste meu mundo tão só meu
deste sotaque tão gritado
tão variável de concelho para concelho
que nos faz mais ocultos que todos
os alentejanos os algarvios os beirões os durienses
se gritássemos menos a falar
talvez houvesse lugar para um mundo menos meu
assim só há provérbios populares
«a oeste nada de novo»

domingo, 17 de novembro de 2013

missing things

as saudades que tenho
dos beijos que não vamos dar
dos passeios de mão dada que não vão acontecer
dos tempos parvos a olhar para o teu riso e os teus olhos
que nunca vão chegar

são as mesmas das salve reginas que já cantei
e das horas da liturgia
e dos retiros de silêncio

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

não voltemos aqui

«dão tanto gosto a fazer e tanto trabalho a criar», dizia, enquanto pegava ao colo num dos sete filhos, que se tinha ido enfiar num molho de silvas, e o levava para a mesa. «mulher, traz o comer, tenho direito ao meu terço de carapau cozido e a duas batatas», berrava o marido a cheirar a dois litros de vinho e de rosto gasto pelo sol. saíra de manhã cedo para a fazenda alugada, onde passou o dia a cavar e alimentado a pão, vinho, terra, pó e sol. era por isso que se sentia no direito de exigir comida na mesa, filhos obedientes e uma mulher sempre disposta a deitar-se com ele na cama. «não há carapaus, só pão duro com água de cozer o toucinho de domingo e pêros ainda verdes. o augusto ainda não é padre e as raparigas ainda são novas para criadas de servir», lamentava-se a mulher. o homem limitou-se a suspirar porque era agosto e, assim, nem umas batatas doces havia para a sobremesa.

[este texto foi escrito ao som de Bailarico Saloio, na voz de Gisela João]

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

rabeta

sem o teu casaquinho pelas costas
o teu cachecol engravatado
os teus sapatos castanhos de engraxar
as tuas calças de cantor sertanejo de goiânia
a camisola de alças justa
e o bigode mal nascido às vezes
com a barba impecavelmente feita
eras só um rapaz normal da bulgária
chamavas-te lazar rabeta
e passeavas no parque com a tua namorada ekaterina
em vez de andares na baixa com o teu alfredo
e a tua pochete louis vuitton

pária

brâmanes
cxátrias
vaixias
sudras
eu sou um pária
não tenho nada
não mando em nada
não sou nada
podia bem nem existir
valho menos que uma vaca
e um deus com cabeça de elefante

terça-feira, 12 de novembro de 2013

tanta coisa para limpar

preciso de tirar o teu sorriso do meu coração esses passos que se aproximam como que a procurar um abraço que te proteja do frio que faz à noite nesta terra com vento os teus olhos que entram pelos meus adentro os lábios que me fazem lembrar uma actriz de novelas a actriz de novelas a cantora de fado que não sei porquê me lembram de ti porque és linda tão bonita e eu indigno de ti sou o esterco do mundo e a escória do universo preciso de me limpar de mim tanta coisa para limpar em tão pouco tempo de vida passado em caminhos que me consomem

os pretos são todos parecidos

à noite as luzes amarelas
são sinal da tua fuga
nem as luzes brancas no interior das casas
te valem
já não queres cá estar

amanhã nasce o sol em bizâncio
e o que queres
para te iluminar o coração
é contemplar as maravilhas do mundo
em cidades declaradas perdidas

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

sou um monge sem mosteiro

todos os dias me deparo com pessoas que acho que mais ninguém vê. hoje vi um homem com uma placa ao peito a dizer que dezassete anos de honestidade já lhe chegam e que está farto. hoje vi um velho de muletas a cravar tabaco. hoje vi vários sem-abrigo de barbas sujas. todos os dias vejo gente desta. outro dia estava a conversar com uma amiga quando um louco parou para me desejar boa tarde. talvez ela fosse demasiado linda para ele se lhe dirigir. talvez eu lhe seja demasiado igual para ele se me dirigir. talvez ele só se tenha dirigido a mim porque se calhar só eu os vejo. sou um monge branco no mosteiro do mundo e a minha missão é rezar por estes que só eu vejo, por estes que ninguém vê.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

porta da escola

sozinho no meu carro
espero o sinal sonoro
para levar os meus sonhos no banco de trás

(esqueço-me que os sonhos não são meus)

útero

o bisturi é perigoso
porque me pode fechar a porta
da obra criadora de Deus

que eu possa ser mais
ao trazer mais gente ao mundo

pretório de pilatos

ao sair da casa de banho
lavo sempre as minhas mãos
para me descartar
de responsabilidades sobre o meu corpo

nanismo

«de ti, ó meu Deus, preciso como de pão»
Rainer Maria Rilke

somos como anões aos ombros de gigantes
mas já não há gigantes

somos como filhos ao colo da mãe
mas crescemos demais
para que nos peguem ao colo

somos um grão de mostarda
no tempo do ketchup

somos peregrinos sem bordão
que não sabem para onde ir

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

love of my life

às vezes penso que a vida é demasiado comprida para se ter só um amor. às vezes penso que ela deve ser demasiado curta para se ter só um amor. às vezes penso em que raio de amor estarão, afinal, a falar. o do primeiro mandamento? o amor por uma mulher que me faça estremecer por dentro? talvez ainda não saiba porque ainda não encontrei alguém para amar, como na canção d'os golpes. talvez ainda não saiba porque preciso de roubar as palavras dos outros para dizer que ainda espero o amor, um amor que grite como um cordeiro abraçado à minha canção.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

inês

os teus olhos de cordeiro pelo retrovisor
Agnus Dei qui tollis peccata mundi

os teus olhos a olhar para mim numa mesa de café
Agnus Dei, miserere nobis

os teus olhos a brilhar (o milagre do amor)
Agnus Dei, dona nobis pacem

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

welcome to the desert of my soul

bem-vinda ao deserto da minha alma
bem-vinda à aridez da minha alma
bem-vinda à miséria da minha alma

se ainda lá quiseres entrar
há muito espaço para ti

[este texto foi escrito ao som de wp, de Matisyahu]

um por todos

gosto tanto de estar contigo
gosto tanto de ti
papa pepe pipi popo pupu
que era capaz de te amar
se o meu coração tivesse lugar para uma pessoa só

era capaz de amar um clone teu
aos vinte e tal anos de idade
(alguém devia pensar nisso)
assim é difícil entrar tanto na tua vida

é-me difícil entrar tanto na vida de alguém
e não ser de todos

«o pepe papou o papá no popó da mamã»

[este texto foi escrito ao som de Manuel Fúria & os Náufragos, Canção para casar contigo]

terça-feira, 29 de outubro de 2013

há sempre gatos vadios

hoje escrevi um poema de amor
e o meu coração agitou-se

rita pereira vai de férias

a rita pereira, recuperada de lesão, vai de férias sem se preocupar com a violência doméstica em casa do manuel maria e da bárbara. não quer saber das bebedeiras da bárbara nem das violações que fazem manchete nas revistas e jornais nem em se foram chapadas ou socos ou vassouradas ou agressões com um chinelo. a rita pereira vai de férias sem se ralar com os cães e gatos e pulgas e baratas que pode ter no seu apartamento porque só tem um cão (com pulgas?) que já foi capa de revista porque a rita pereira passear o cão (cadela? sei lá) é um acontecimento nacional. a rita pereira talvez vá de férias sem se ralar com o governo que sem programas de ajuda talvez estivesse sem dinheiro para mês e meio de salários, que com programas de ajuda carrega o povo e não descarrega em si, que com programas de ajuda deixa gente na miséria sem casa e sem pão e sem paz e sem povo e sem liberdade. isto é que me preocupa. deixem lá a rita em paz e a bárbara e o manuel maria e os cães, os gatos e os piriquitos e as moscas e parem um bocadinho para pensar no essencial, que é invisível aos olhos. pensar [ainda] não é estar doente dos olhos.

um poema em vez de coração

«No lugar do coração colocar um poema»
Valter Hugo Mãe

o meu coração já foi demasiado grande
para o meu corpo

hoje é pequenino
para o amor que te tenho

tenho um osso saliente
por causa do meu coração grande demais

ainda espero
que me venhas fazer crescer a vida

espero por ti

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

prince of persia

está atenta:
o teu príncipe pode aparecer a pé
e comprar-te um bilhete de camioneta
se não lhe puderes dar boleia

já não há príncipes em cavalos brancos
não estão a deixar de usar animais no circo?

ao teu filho inexistente

«Ouvem-se, em Ramá, lamentações
e amargos gemidos. 
É Raquel que chora, inconsolável,
os seus filhos que já não existem.»
(Jr 31, 15)

às vezes apetece-me dar-te a mão e dizer-te ao ouvido que quero ser o pai do filho que ainda queres ter às vezes queria ser só o pai espiritual do teu filho para ele me escrever um tratado sobre a oração incessante do coração outras vezes não quero dizer-te nada só olhar para ti porque és tão bonita muitas vezes quero só estar sozinho porque não me apetece fazer nada apetece-me ser nada não fosse haver um Deus que dança e na verdade não era mesmo nada

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

dropbox

tenho os meus livros
dentro de caixotes
à espera de uma estante
para os arrumar

tenho a minha vida
dentro de caixotes
à espera de quem a queira
desampacotar

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

puer

corres pela praia até seres parado pelas dores
e sentas-te no chão que agarras com todas as forças
como se encher uns punhados de terra
fizesse de ti o dono do mundo

levas areia à boca e comes
porque comer areia nos faz mais rijos
e imunes às doenças
e tu queres crescer e ser um homem

pensas: um dia vou ser grande e experimentar
a solidão
a angústia
a dor

mas sobretudo
a amizade
a festa
e o brilho nos olhos de uma mulher

[este texto foi pensado em dois autocarros e durante um almoço com uma mulher de olhos que brilham e escrito ao som de Menina, de Márcia com Samuel Úria]

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

coisas que não acho sexy numa mulher

aqui deixo, para o caso de interessar a alguém, uma lista de coisas que não acho sexy numa mulher - que é o que interessa (traduzo para português: coisas que me fazem deixar de sentir/baixar drasticamente o nível de atracção por alguém que até me agrada numa primeira análise):

- escrever segundo o aborto ortográfico de 90.
- dar erros ortográficos, em geral, e não saber onde e quando se põem hífenes nas palavras, em particular.
- bocejar sem pôr a mão à frente.
- gostar de paula fernandes, luan santana, anselmo ralph e cantores românticos da lusofonia em geral (a menos que completemente este gosto com alguma coisa que valha mesmo a pena. abaixo do joão só não conta).
- gostar de autoajuda, signos, tarô, estupidez em geral.
- ter as mãos desproporcionalmente grandes em relação ao corpo.
- ter toques pirosos no telemóvel (grilos, abelhinhas, toques pré-definidos, salsa, house music).
- preferir a foz ao baleal.
- preferir o norte ao sul.
- preferir o sotaque do norte aos sotaques do sul.
- ficar muito ofendida por ouvir alguém dizer asneiras.
- não dizer asneiras.
- não rir alto.
- ter vergonha de estar com os meus outros amigos.

(lista para ir completando - não necessariamente aqui - ao longo de uma vida. por factores sentimentais esta lista pode ser sujeita a diversas alterações)

sábado, 19 de outubro de 2013

rio de janeiro. outubro de mil novecentos e treze

a festa vai ser feita
de samba e bossa
e alegria e melancolia
e saudade
e amor
e mulheres muitas mulheres
e amigos e vinho e álcool
e praia
e homens que sabem o que escrever

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

no alto da montanha

uma história antiga falava nos velhos que eram levados pelos familiares mais novos para o cimo de um monte onde aguardavam a morte sem estar à vista daqueles que ainda tinham muito que viver e não se queriam confrontar com essa realidade tão última e marcante. as encruzilhadas dos caminhos dos homens, depois de um momento em que a morte foi aceite como parte da peregrinação humana, e que como tal não deve ser escondida, trazem-nos a um momento em que os papéis quase se invertem. hoje são os velhos que vêem os seus filhos e netos em situações péssimas. hoje são os velhos que devem estar a começar a preparar a bagagem para levar os filhos e os netos ao alto do monte, já que cá em baixo não temos mais nada, não encontramos emprego, não encontramos sentido. alguém que mude isto, por favor, meu Deus, muda isto, sou demasiado novo para ir subir a um monte e esperar por morrer.

cidade dos homens grandes (i)

percebes que já cresceste o suficiente quando consegues dizer «tenho um livro para te emprestar» em vez de «isto é o que deves ler ao teu filho inexistente».

as primeiras chuvas em mim

quando chove apetece-me sempre ir para a rua correr. correr até ficar todo molhado, até chegar ao ponto em que não faz diferença estar vestido ou nu, até chegar ao ponto em que a minha avó me ia ameaçar com uma vide porque estava em risco de pneumonia. a chuva lembra-me os tempos felizes de uma certa adolescência em que não interessavam os guarda-chuvas dos adultos, aquela adolescência perdida a que importa voltar, a das primeiras erecções e da descoberta de si próprio, a do tempo em que todos os amores eram platónicos e por isso era tão fácil ter desejo por mulheres, a do tempo em que a vergonha era tanta que a única coisa que interessava para além de mim era mesmo a chuva. hoje já sou grande e as pessoas grandes não fazem o que lhes apetece, não vão correr para a chuva, limitam-se a ficar à janela a vê-la cair enquanto se lembram de uma certa ideia de adolescência perdida que nunca foi. as pessoas grandes ficam à janela a ver a chuva a pensar no que poderiam ter sido e nunca virão a ser.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

carros japoneses

para me tirar do sheol que venha a princesa morena com asas de anjo. que venha a princesa com a sua coroa que se transforma em arma de guerra para destruir os que estão do lado do mal. que venha a princesa com a coragem que não tenho para a luta, com a arte de defender o bem. que venha a princesa com a capacidade de me espantar com a beleza, com os gestos delicados que a fazem mulher, com o brilho nos olhos que me fascina. que venha a princesa sem perfeição. que venha a princesa de coração aberto ao amor e sem medo de ouvir «és tão linda». que venha a princesa sem castelo nem palácio nem sequer carro próprio: vamos bem os dois a pé, peregrinos que somos. que venha a navegante da lua de quem já nem recordo o nome.

muro de pedra

a palavra tem dois grandes defeitos. 
o primeiro é fazer-se carne, elemento palpável, audível, sensível. a palavra quer fazer-se objecto autónomo do seu autor, elemento que vale por si enquanto algo que quer ser de quem o ouve, de quem o lê. isto torna-a fonte de mal-entendidos, fonte de pedidos de desculpas, fonte de confusões - por muito que seja tantas vezes fonte de beleza, fonte de amor, fonte de salvação.
o segundo é revelar-se, tantas vezes, em meios que não estão preparados para a receber. meios em que vêem dela o que querem ver, meios em que ainda não se sabe separá-la do seu autor, meios em que se acha que tudo é autobiográfico - quando, na verdade, sabemos que tudo é e não é autobiográfico ao mesmo tempo, no sentido em que o autor escreve, fala, a partir do mundo que conhece mas é livre de criar mundos, conversas, vidas. resumindo, a palavra ainda não se consegue isolar do que a escreve ou diz, pelo menos tanto quanto era preciso.
mas é apesar destes defeitos que gosto de a trabalhar, contribuindo para o muro de pedra que ficará à vista de todos os homens que passam.

melancholia

a melancolia
não é bem tristeza

é o estado dos que vivem na noite
sem ninguém que os acompanhe de perto

é o estado dos que sabem que vão morrer
por muito que a vida seja alegre

é o estado dos que olham a beleza do mar
e a vêem fugir

é o estado dos que olham para o céu azul
até que venha a nuvem negra

é o estado dos que riem à chuva
antes que venham os espirros

[este texto foi escrito ao som do álbum Almost Visible Orchestra, de noiserv]

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

sol na montanha

sento-me ao vento junto das antenas e contemplo o mundo. daqui vê-se o tejo e o atlântico que nos leva para longe e as lezírias e as várzeas e os pomares. daqui vê-se a alma dos homens que recebem notícias que saem destas antenas. as antenas transformam o monte em mundo, as antenas cumprem o desejo de Jesus e fazem o monte mexer-se para dentro dos camiões e dos carros e das casas. daqui vê-se aquelas casinhas onde pessoas têm máquinas que mostram onde andam os aparelhos que o meu avô via quando olhava para o céu e dizia serem os aviões da tropa. aqui passeiam os espíritos dos monges brancos e negros que permanecem entre as ruínas do antigo retiro do mundo. aqui se lembram os carros de bois e os burros albardadados que levavam gelo aos reis. aqui se lembram as vitórias solitárias dos que vencem o monte em cima de duas rodas incentivados por mensagens escritas a cal. aqui me lembro que te devia trazer cá para comigo veres o mundo, não para to oferecer, como o diabo, mas para te lembrares sempre que há uma beleza que salva e que podemos fazer parte disso. aqui estou eu, só eu, o vento - sempre o vento - e, hoje, o sol a brilhar.

domingo, 6 de outubro de 2013

sanguis

durante o banho
corre do peito do apaixonado
um fio de sangue
que apareceu sem avisar

é aí que o poema
se faz carne
e se realiza o que dizem ser
o milagre do amor

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

notas soltas sobre poesia

o poema é:
o lugar da alegria
do espanto com a beleza
da presença escondida
     do Deus que passeia pela brisa da tarde
     e dança

também é:
a arte onde ainda cabem a angústia
a melancolia
a tristeza
o desencanto
(tudo o que a autoajuda tirou
do mundo dos homens)

nada em meu nome

não há nada que eu diga
que seja meu

ninguém que diga
tu és meu

terça-feira, 1 de outubro de 2013

sinal d'O que está

a mim cabe-me apenas estar.
estar para o que é
estar para o que poderá ser de bom
estar para o que poderá ser de mau
apenas estar
(e já não é pouco)

a arte do encontro

na mente um texto de Antoine de Saint-Exupéry

vou andando devagarinho
para criar em ti
a dor boa da espera

poucas pessoas me merecem a chuva

quando ando à chuva
até molhar os ossos
é que percebo como sou feliz

nem todos me merecem a chuva
é esse caminho do risco
que te faz especial

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

ao Deus que dança

O Deus dançarino de Niestche
é Aquele em que acredito
(O Deus morto por Niestche
o que não ressuscita ao terceiro dia
não é o meu Deus)

O meu Deus é o que caminha
nas estradas de Emaús da história dos Homens
que por eles morre e que os faz viver
que deixa o túmulo vazio e
que me põe a dançar,
como David,
em frente à Arca da Aliança

sábado, 28 de setembro de 2013

conversas hipotéticas (i)

ias-me dizer que é estranho que eu goste de ti e queira estar contigo mesmo sabendo que nunca vais querer ter nada comigo. ias-me dizer que o melhor é que nos afastemos e que não devemos falar mais e que tens namorado e que ele pode ter ciúmes. eu ia-te dizer que a coisa mais perigosa que te posso fazer é citar o cântico dos cânticos «raparigas de jerusalém se virdes o meu amado dizei-lhe que estou doente de amor» e que ele não tem que ter ciúmes porque nem deve saber o que raio é o cântico dos cânticos. noventa por cento das pessoas que conheces não sabem o que é o cântico dos cânticos. tu ias-me dizer que não queres que te cite o cântico dos cânticos e eu ia-me embora e pensava «porquê?» se a única coisa que é verdade é que estou doente de amor e quanto a isso não posso fazer nada, quer tenhas namorado quer não.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

onde é a estrada?

há caminhos que escolhemos
e caminhos que nos escolhem

estes são os caminhos do Amor
de todos os amores possíveis

querer escutar

para saber o que sentes
juntei o meu ouvido ao teu coração
(é onde a tradição põe os sentimentos)
só ouvi batidas
e nem sei se eram mais fortes

então trouxe à memória
todos os manuais de psicologia
e encostei o meu ouvido à tua cabeça
(porque, dizem eles, se sente com o cérebro)
não ouvi nada

por muito que esse silêncio falasse tanto
percebi que
tu és um mundo em que não consigo entrar

sábado, 21 de setembro de 2013

non sum dignus

és linda demais
para noventa e nove por cento dos homens
(por fora
e por dentro, onde as coisas são)

ainda mais para mim
que não sou nada de mais
nem onde as coisas são
nem onde deixam de ser

aviso zero um

a auto-ajuda pode matar.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

a inominável

deixei de dizer o teu nome
para tentar esquecer-me de ti

mas ele surgia-me imprevisível nas praças
nos nomes das ruas e das lojas
em combinações improváveis
em mensagens de telemóvel
nas cartas do correio

então aprendi que isso não resulta
e fiquei diante do milagre indizível do Amor

scala coeli

no início da escada que sobe ao Céu
uma inscrição:
«tira a mochila das costas
e começa a subir»

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

acreditas na vida antes da morte?

Revi hoje uma foto
do mural que diz
«será que há vida antes da morte?»

e pus-me a pensar que faço pouco essa pergunta
e que a devo fazer mais vezes
não é isso, também, a vida eterna?

a gaveta

quando perguntei ao poeta pelos livros que publicou e ele me respondeu que só tem um na gaveta eu quis pensar por breves momentos que ele guardava um livro na gaveta como recordação do que fez no passado afinal eu é que sou burro e o homem está-se a pôr a jeito para meter mais um livro no mundo .na verdade são três. se eu acreditasse no aborto dizia-lhe para não o trazer a este mundo pois vai ter muito que sofrer nas gavetas sofre-se mais com o pó mas sofre-se menos de amor

meditação da insónia

é difícil que quem escreve não seja aquilo que lê

o regresso

da incerteza dos verões
que se vai tornando,
ano após ano,
a certeza dos adeus não desejados
(que eles nunca cheguem)
vem mais um discurso de regresso

"eu, fulano de tal, de volta mais uma vez"     [volvitur orbis]

os Benvindos bem-vindos
e os que acolhem
não sei bem porquê
e os que não aparecem a dizer
"devias era ir morrer longe"
e me deixam a pensar
que a unanimidade é uma doença
que cresce e faz crescer a angústia
em mim

o caminho do regresso faz-se de
alcatrão
e terra
e pedras
e borracha
e assentos forrados de pele
e assentos forrados de napa
e assentos forrados de um pano de que não sei o nome
e assentos de plástico forrado de um pano de que não sei o nome
e música
e cartões
e dinheiro na mão
e pés
e nervos
e desejo de reencontros normais
e desejos de reencontros com que não se sabe lidar
e de sono que não há e devia haver
e de vergonha

o caminho de regresso faço-o eu,
como Córdula,
na solidão do meu coração
porque é lá que vos encontro

domingo, 15 de setembro de 2013

examinemos um homem no chão

Examinemos um homem no chão.
Testemos a transformação de um homem por terra
A sua natureza tão diferente da lava, a sua maneira mineral
De adormecer.
O que mais interessa é ver o seu lugar rodando para perceber o eixo
Que o move no mundo
Ou como pode a sua posição orientar as aves e os astros.

Interessa também a pedra que ele agarra como alimento
Ou que mão escolhe par lhe servir de funda
─ se é que não usa a própria boca para lançar o grito.

Examinemos a sua semelhança com um meteoro que cai
Uma fisionomia sem vocação para subir ao céu
O peso do seu corpo quando o nosso olhar o levanta.
Interessa perceber o íman que cria para nós um lugar junto dele
Um lugar dentro dele. Há um olhar que nos desloca -
A placa giratória do amor?

Interessa também o coração que ele agarra como fruto que colhe

Ou que veia abre no corpo para beber
─ se não é que é a pedra o que ele bebe com as mãos.

Examinemo-lo como quem sai de casa e vê o seu irmão
Examinemo-lo voltado, em viagem, a orientação discreta
De quem cava no peito a bússola.
Interessa reparar como tropeça no mistério
E se levanta a pedra para compreender.

Daniel Faria in Poesia, Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2003

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

ilusão/desilusão

todos os livros de auto-ajuda, aqueles que mandam viver atrás dos sonhos e que mandam que nos aceitemos a nós mesmos independentemente e contra os outros, deviam trazer no prefácio a informação de que quem se ilude é que está mais susceptível a desiludir-se.

viajante nocturno

pelo solitário caminho nocturno do bosque
é que vou
à procura do sentido da vida

ao fundo uma luz
terna, suave,
ilumina os estreitos carreiros
para me provar que não vou sozinho
e tenho para onde ir

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

o antigo conhecimento perdido ocidental

arrepende-te muitas vezes
pede perdão muitas vezes
chora muitas vezes

mas nunca apagues nada
não deixes para trás nada
do que a vida te trouxe

Oh me! Oh life!

O ME! O life!... of the questions of these recurring;
Of the endless trains of the faithless—of cities fill’d with the foolish;
Of myself forever reproaching myself, (for who more foolish than I, and who more faithless?)
Of eyes that vainly crave the light—of the objects mean—of the struggle ever renew’d;
Of the poor results of all—of the plodding and sordid crowds I see around me; 5
Of the empty and useless years of the rest—with the rest me intertwined;
The question, O me! so sad, recurring—What good amid these, O me, O life?

Answer.
That you are here—that life exists, and identity;
That the powerful play goes on, and you will contribute a verse.

Walt Whitman

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

luz ao fundo

depois de me ter enganado no caminho
e de voltar a trilhar pela pequena estrada
que me leva não sei onde
doem-me os pés

e a luz que vejo ao fundo da estrada
- gosto de caminhar de noite, quando já se vê o sol -
vai fugindo de mim
para me ensinar que o caminho não acaba

terça-feira, 27 de agosto de 2013

pensamentos moralistas (i)

Hoje, depois de um comentário de um amigo a um texto meu no facebook (trata-se de uma pessoa que, sem o saber, me vai ajudando a manter a esperança na classe a que pertence e com a qual estou cada vez mais desencantado), veio-me à ideia que aquele pensamento segundo o qual «o amor está onde menos se espera» é tão mais verdade quanto mais atribuírmos à palavra amor um sentido menos restrito que o do amor erótico ou do amor romântico. É uma pobreza franciscana que a palavra amor sirva apenas para designar o acto genital e o sentimento que une, pelo desejo sexual - aqui já num sentido mais lato, um homem e uma mulher (ou dois homens e duas mulheres, como o politicamente correcto obriga a dizer agora).

inútil

sentados os dois a uma mesa de café naquelas nossas conversas intermináveis em que ambos devíamos e ambos não queríamos ir embora aquele dia em que começaste a chorar porque não sabias o que ia ser da tua vida e eu percebi que sou inútil e não podia fazer nada para te consolar. não sei fazer nada para consolar ninguém. dar uma mão, fazer uma festa na cara, limpar lágrimas, ter um lenço de papel para oferecer. nada. agora sou eu que não sei o que vai ser da minha vida, no mês em que perdi um amigo aos vinte e sete anos de idade, e nem sequer consigo chorar. a provar que sou mesmo inútil.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

cordeiro silencioso

no Deus que se cala
construo a minha vida

no Deus do mundo injusto
que me fala onde não o percebo

no Deus que se cala
quando precisava de o ouvir

no Deus que me faz cair de joelhos
e me faz andar mesmo quando não sei para onde ir

no Deus que me conduz
por caminhos desconhecidos

domingo, 25 de agosto de 2013

tomorrow in the sky

para o Pedro José


Eu sei que o meu redentor vive
e prevalecerá, por fim, sobre o pó da terra 
(Jb 19, 25)

que na cadeira onde te sentas agora
a olhar para Deus
te lembres de mim

que Deus se possa rir contigo
como nos rimos os dois

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

autoajudo-me

vinte e seis anos,
tanta fotografia em tanto lado
e nem uma acompanhada pela frase
«quando a gente gosta de verdade
o mundo nos sustenta»

tenho várias sem texto a acompanhar
mas que poderiam bem ter escrito
a letras de sangue
«uma gaivota que passa,
e a minha ternura é maior», de Álvaro de Campos
«Nas pálpebras da noite chorei
cadências que me ensinaram
que o Amor ama-se
Assim teus
Olhos.», de Daniel Faria

e
«Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
"a que distância deixaste o coração?"», de Tolentino Mendonça

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

lanterna em tempo de escombros

nos dias de combate
quando tudo está contra nós

- os empregos,
as pessoas,
a lógica do mundo -

há sempre algo que resta
e faz cair de joelhos
um sorriso
uma mão
uma conversa
uma lanterna que aponta o caminho
aos viandantes que não sabem para onde ir

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

falling for you

no dia em que cair por ti
não me levanto mais

e continuo a cair
para dentro de mim (de nós)

[este texto foi escrito ao som de Wanessa - Falling for U]

lucidez


segue a tua vida na senda de uma palavra:
fé.

segue a tua vida na senda de uma palavra:
esperança.

segue a tua vida na senda de uma palavra:
amor.

previsão vs. ignorância

O dia em que "reli" o meu perfil de facebook e percebi que no dia 14 de Junho já previa que o cataclismo que aconteceu aos professores de EMRC era uma possibilidade real porque, cito, «com o governo que Portugal tem neste momento não há certezas absolutas» não é, decerto, um dia feliz. Esse dia foi hoje e fiquei a pensar que preferia ser ignorante, desinteressado e pouco inteligente para não ver coisas destas. Preferia não ver demasiado e não ver coisas perigosas... Já que há tanta gente com experiência nisso (em não ver nada e em não conseguir prever minimamente o futuro usando, apenas, a inteligência) pode ser que me ajudem. Sinceramente que gostaria de viver assim por uns tempos. Ia sofrer muito menos.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

o verdadeiro amor

o verdadeiro amor está perdido
no bolso de umas calças velhas
que já não te lembras onde deixaste

um dia alguém há-de encontrá-las
e pô-las a secar com os bolsos para fora
penduradas numa corda de sisal

nesse dia o amor fugirá
para poder correr o mundo
e soarão músicas pirosas

 [este texto foi escrito ao som de Lady Gaga - Alejandro]

quarta-feira, 24 de julho de 2013

romeiro

nas encruzilhadas dos caminhos
já não é ao olhar para a terra que encontro respostas
já não são estes homens que me conduzem
já não vejo homens que me pudessem conduzir

mas sei que o homem é o animal que anda de pé
e olha em frente e olha o céu
que me conduzas Tu, do Céu
e que conduzas os homens que nos guiam
e não sabem para onde vão

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Onde vamos estar daqui a vinte anos?

Hoje, dia de greve geral, enquanto percorria, a pé, o caminho que liga o Marquês de Pombal ao interface do Campo Grande pus-me a pensar num texto que li, de manhã, no site da Agência Ecclesia, sobre a posição da Igreja em relação à greve e também sobre algumas opiniões contrárias à greve que ouvi ou li não só hoje como nos últimos tempos.
Por um lado, pensava na qualidade que o meu professor de Teologia Moral Social, padre José Manuel Pereira de Almeida, tem para me ter conseguido incutir uma consciência da Doutrina Social da Igreja que me faz reflectir sobre os problemas com que me confronto neste âmbito sentindo e pensando o que a Igreja sente e pensa (desde o início da greve dos professores que o que defendo é o mesmo que se encontra neste artigo da Ecclesia). Por outro lado, pensava na importância da noção, fundamental na DSI, de bem comum e em como deve ser ela a guiar as nossas decisões em momentos como este.
E é precisamente pelo bem comum que vou para relacionar esse meu primeiro pensamento com a reflexão que fiz sobre as tais críticas à greve. Se é verdade que os grevistas, ao decidir avançar para esse passo extremo, devem ter em conta a influência da sua acção no bem da polis - devem medir até que ponto a sua greve tem em vista a construção de uma cidade mais justa, mais verdadeira, mais igual - também é verdade que as críticas à greve se deviam referir a isso - se a greve prejudicou o bem comum, ou se a greve tem em vista apenas o bem imediato em vez de um bem maior no futuro.
Isto para dizer que vejo muita gente a criticar a greve apenas pelo seu prejuízo individual - "não consegui chegar a horas ao emprego", "não tive transportes", "o meu filho não fez exame", "ainda não saíram as minhas notas". Acho isso bastante pobre. Essa falta de uma visão comum, essa falta de uma capacidade de pensar no futuro, e num futuro comum, essa incapacidade de pensar que uma greve pode ter como causa o desejo de que os empregos, os transportes, a educação, possam continuar a estar ao alcance das pessoas (também sei que isto pode ser responsabilidade dos próprios grevistas, que partem para a sua "luta" pensando no seu emprego, no seu salário, no seu direito a usar transportes públicos, na sua educação e na dos seus filhos - o que quero criticar é a lógica individualista e emocional e não quem está contra ou a favor das greves, tanto que, dependendo das circunstâncias, lá está, por causa do meu interesse pelo bem comum, já estive dos dois lados da barricada).
Em suma, e como indica o título deste texto, o que gostava é que pudéssemos pôr a questão "Onde vamos estar daqui a vinte anos?" mais do que aquela outra "Onde vou estar daqui a vinte anos?" (se pensarmos bem, são perguntas bem diferentes, uma procurando o bem comum e uma visão integrada do futuro e a outra egoísta e mais pequenina em termos de consciência ética e moral). Façamos, então, a começar por mim, essa pergunta.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

a árvore da vida

não quero um deus que se manifeste nas flores
nem que faça magia
nem que me faça sentir bem

quero o Deus que se faz Homem
que, por amor, morre na Cruz
e a transforma em Árvore da Vida
ressuscitando ao terceiro dia

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Meditações do campo de batalha

Às vezes, no combate (prefiro a expressão de Paulo de Tarso a outras, mais em voga, conotadas com outras tradições) pelo que achamos ser justo e verdadeiro - como no combate pela Justiça e pela Verdade, que para mim é o combate da Fé - a linha que separa a rectidão dessa busca da loucura, da estupidez e do desrespeito é demasiado ténue - quinze dias de trabalho na Casa de Saúde do Telhal foram-me mais do que suficientes para perceber isso. Estou, neste momento, envolvido num desses combates e, embora não tenha desistido dele, porque o continuo a achar justo, já percebi que há muito em mim para corrigir. Há muito de tacto, de respeito pela diferença, de escolher quando falar e quando calar que ainda me faz falta. Que aqueles a quem vou ofendendo pelo caminho, em todos os combates, tenham tanto quanto eu o desejo de buscar caminhos de encontro e não de divisão.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

lilia agri (ii)

contemplo os lírios
enquanto passeio pelo campo
e me arranho nas silvas
olho o sol e sinto o vento
contemplo os lírios
para me lembrar
que as razões para a alegria
são mais que para a tristeza

segunda-feira, 17 de junho de 2013

às escuras

as pancadas na mesa
às escuras
no velho escritório

irritam mais
que as pancadinhas de Molière

terça-feira, 11 de junho de 2013

quinta-feira, 23 de maio de 2013

O elo mais fraco

Saiu hoje nova legislação a regulamentar a disciplina de EMRC. Sobre o assunto tenho a transmitir três notas principais.
1. Há que assumi-lo, esta está entre as leis mais criminosas que já se aplicaram nos últimos tempos na área da educação. E, há que dizê-lo, ninguém está minimamente preocupado com isso. 
A Conferência Episcopal, que saiu claramente derrotada das negociações com o ministério, mantém-se em silêncio (um silêncio a que já nos tem habituado sempre que devia marcar posição, desde a lei do aborto à do casamento entre pessoas do mesmo sexo e seus derivados). 
Os sindicatos preocupam-se mais em defender os que já se reformaram do ensino ou os que estão em vias de o fazer do que a nós que ainda cá estamos (é a prova provada de que os sindicatos na educação querem defender os professores comunas e não os professores). 
Os outros professores, pelo menos a sua grande maioria, nem sequer deram por nada e quando derem até vão concordar com a decisão - o grosso do corpo docente das escolas é anti-religioso por natureza, tem um entendimento negativo da lei de liberdade religiosa (como o próprio estado, mas sobre isso falarei adiante), acha que EMRC não serve para nada e, muitas vezes ostensivamente, desconhece que a nossa disciplina tenha um programa desconhecendo também, logicamente, o seu conteúdo.
Os próprios fiéis da Igreja estão-se a marimbar para este tipo de assunto. A maior parte das pessoas já se põe sob a capa da Igreja apenas por uma questão de superstição e medo da morte e os outros estão mais preocupados ou com a forma de se celebrar Missa ou com a conformação da Igreja ao sistema axiológico da sociedade civil.
Nós próprios, professores de EMRC, salvo honrosas excepções, estamos pouco preocupados com isto. Ainda nos vamos entretendo com o discurso da esperança enquanto estragam o que falta da nossa disciplina. Devemos ter esperança, sim, mas não perder de vista que estamos em luta. Fomo-nos esquecendo que um professor de EMRC é um cordeiro no meio de lobos e o resultado vai ser a razia de horários que vai acontecer para o ano, vai ser a sujeição à boa vontade e simpatia dos directores que vai acontecer para o ano, vai ser o fim do trabalho de continuidade que, apesar de tudo, a legislação actual sobre as colocações dos professores de EMRC ia permitindo. Precisamos de voltar a lembrar-nos de que estamos num meio adverso para que o possamos tornar num meio dócil, para que possamos, no verdadeiro sentido da palavra, evangelizar a escola.
2. Esta lei vem provar que vivemos num país de merda, num país governado por cobardes - repito, num país governado por cobardes, repito, num país governado por cobardes. Depois de terem, no ano lectivo anterior, decretado, através de um decreto-lei do mesmo género, o início do fim do ensino artístico com a extinção da EVT, agora decretam o início do fim do ensino religioso nas escolas públicas. Podiam, ao menos, ter a coragem de acabar com as coisas de uma vez sem andar a sujeitar professores e alunos - que, espanto dos espantos, são SERES HUMANOS, PESSOAS - a estas merdas sem jeito nenhum.
Vivemos num país de parolos e anormais. Não sentem complexos por deixar de ser o único país da Europa que tinha no seu sistema de ensino um entendimento positivo da laicidade do estado e da liberdade religiosa (entendia-se que todos têm direito a estar presentes na escola) - esta legislação nova de EMRC é o caminho para o fim do ensino religioso nas escolas, atrás do qual virá a redução da dimensão religiosa à esfera privada e atrás do qual virão, quando já não se der por isso porque se ficou entretido a aplaudir o definhar da religião, outras reduções à esfera privada de outras coisas, como é próprio de qualquer totalitarismo, como este para o qual caminhamos sem querer ver. Preferem medir a modernidade pelo alinhamento com os outros: temos de ser como os países do centro e norte da Europa onde os maricas se casam como se o que é diferente fosse igual, onde se assassinam vidas intra-uterinas e onde os velhos pedem para morrer e alguém lá vai fazer o serviço com um sorriso (não percebem que a matriz cultural desses países não é igual à nossa e que isso há-de ter alguma influência, mas isso aprende-se em EMRC por isso não deve interessar para nada). Eu, maluco que sou, prefiro medir a modernidade pela irreverência de se ser único em alguma coisa, sobretudo se essa coisa beneficia as pessoas.
Vivemos num país de gente desatenta. Já aconteceu com EVT, agora acontece com EMRC, ponham-se a jeito antes que seja com a vossa.
3. Os únicos que estão verdadeiramente do nosso lado são os alunos. Como sempre, os fracos com os fracos. Como sempre, uma lei para lixar os mais fracos (como já tinha acontecido com o EVT, apesar da falange de apoio que os professores da disciplina conseguiam reunir no meio escolar e que nós, de Moral, claramente não conseguimos). Os professores mais fracos e os alunos, fracos, para quem, garantidamente, o governo se está a cagar. Esta gente anda a arruinar este país. Não querem que se fale da Constituição (olha, em EMRC também se fala da Constituição, várias vezes, em vários anos! Deve ser por isso que não interessa para nada) porque estão a fazer tudo para que ela, nos serviços públicos, deixe de se cumprir. Sublinho, nos serviços públicos. Para se ser um português com os direitos reconhecidos pela lei fundamental vai ser preciso recorrer aos privados: se quer ter EMRC, um colégio católico; se quer apostar no ensino artístico, uma escola privada que aposte nessa área; se quer aprender uma língua estrangeira, um colégio internacional. Os que não puderem recorrer aos privados continuarão a ficar cada vez mais fracos, até se tornarem transparentes.
É com esta referência aos alunos que queria terminar: se estou preocupado com o fim das horas com menos de dez alunos e com o concurso para os professores de EMRC (o concurso preocupa-me, sobretudo, porque sei como é a distribuição e atribuição de horários para a disciplina na maioria dos agrupamentos e porque uma disciplina facultativa como a nossa depende, imenso, do professor e da proximidade que se vai criando com os alunos e a comunidade escolar em geral) é por causa dos alunos e do seu superior interesse. Porque sei que isto está a ser feito de propósito. Porque sei que não convém a quem manda nisto que os alunos que não consigam convencer nove colegas a ter EMRC com eles aprendam a ter uma visão crítica do mundo, a pensar pela sua própria cabeça, a conhecer os princípios de ética e moral por que uma sociedade humana se devia reger. Porque esta gente acha que isto não interessa a ninguém, nem aos poucos que ainda vão sobreviver como alunos da disciplina (se houver professores que cheguem para aturar isto). Estas leis mostram que caminhamos para uma ditadura e eu, preocupado com os meus alunos - comigo não estou muito preocupado, sou novo e com bom corpo para trabalhar - não quero que eles vivam numa.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

helicóptero

Não alinho nada nessa demagogia modernaça de pedir que os políticos se desloquem de transportes públicos. 
Em primeiro porque um país do Sul da Europa não é um país do Norte da Europa, nem em termos económicos, nem culturais e nem sequer em termos das matrizes históricas e religiosas que trouxeram uns e outros até aqui (a visão de um católico ou de um protestante acerca da organização da polis não é a  cem por cento a mesma e isso acaba por influenciar muito. Também a confluência de matrizes religiosas distintas, a partilha de um mesmo espaço por comunidades judaicas, islâmicas e cristãs com relevância semelhante - no Norte da Europa as comunidades judaicas eram relativamente pequenas e não se sentia a presença do Islão, influenciou muito a forma de pensar das pessoas do Sul europeu. Ainda há que lembrar as diferenças quanto à forma como se fizeram sentir as guerras do século XX nas diferentes zonas da Europa). Não se pode pedir aos países do Sul da Europa que sejam como os outros - pedir que sejamos magicamente iguais a pessoas que pensam de forma completamente diferente da nossa (e que, diga-se, não têm nem nunca tiveram a melhor das opiniões sobre nós) é o mesmo que construir uma sala para guardar skis numa escola das Caldas da Rainha.
Em segundo lugar, porque devemos acabar com esta atitude estúpida de estar sempre a atacar os ricos. Eu, pelo menos, não tenho nada contra os ricos (a menos que lá tenham chegado por via da trafulhice ou da exploração alheia). Tenho é contra os pobres, bem entendido, contra a existência de pobres. O que é preciso é acabar com os pobres e não me parece que o veículo em que os políticos se deslocam viesse resolver alguma coisa. A este propósito, lembro-me que, entre as várias conversas que já tiveram comigo sobre o Estado Novo, uma delas era sobre as supostas vestes do ditador, que consistiriam em dois fatos todos coçados, e muitas outras sobre as condições em que o povo vivia - muita gente em casas sem mínimas condições de habitabilidade, uma sardinha para três, sopa de toucinho aos domingos e sopa com o sabor do toucinho o resto da semana - e não vejo que consequências o primeiro facto trouxe ao segundo. Não quero saber se os políticos vão para o emprego de carro, comboio, helicóptero ou avião particular. Quero é que eles me garantam a mim que tenha condições de me deslocar de forma digna, de me alimentar de forma digna, de poder pensar num futuro aqui neste país. Se eles passarem a sair no metro do Rato fazendo a pé o resto do caminho até à Assembleia da República e isso não implicar que eu possa ter uma ideia minimamente segura de onde vou estar daqui a dez anos então a lengalenga, mais uma vez, não vai servir de nada.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

tirar essas coisas das nossas cabeças

dá-me sono quando os ateus «há por aí um intermediário de deus que me esclareça» e desligo quando a mulher altiva «não me confesso porque o padre tem mais pecados do que eu, não me confesso porque o padre não se confessa». ainda estou longe de ser um santo antónio, talvez esteja mais perto de ter a ubiquidade do que de ter a fortaleza suficiente para conseguir pregar aos peixes e dizer-lhes não seja estúpida minha senhora os padres também se confessam. ela na paragem do autocarro «há que tempos que não te via» acho piada a mulheres pequeninas, ela no carro hoje sem apitar a acenar e a rir como sempre acho piada a mulheres pequeninas, tu no metro um olhar nada dois olhares talvez três olhares de certeza és maluca acho piada a mulheres pequeninas. católicos anónimos num livro em alemão, católicos não-praticantes na boca do povo, na boca do corpo, e os católicos onde estão? os que não ficam com sono quando o ateu blá blá blá e a mulher altiva blá blá blá e a velha na mercearia do bairro «os padres deviam casar o meu ernesto junto há três anos muito boa mocinha casar para quê?». já me é muito difícil ser desses, ninguém disse que ia ser fácil, Jesus na cruz, paulo na prisão, eu sete escolas e a boca a doer-me por sorrir demais. uma solidão a abrir-me os olhos para o que ninguém vê e uma memória que me trai por ser boa demais há seis anos e tal um estendal de ferro nos chineses dezoito euros e meio ninguém mos pagou, ainda se lembram? sessenta contos em gasolina do bolso de um colega, ainda se lembram? já não me lembrava mas tens razão. amigos perdidos no mundo e eu sozinho em transportes cheios de gente os meus colegas todos de carro nenhum sheik que me diga filho aqui vão seis biliões não sejas a vergonha da família compra ao menos um volkswagen em segunda mão e uma casa na linha de cascais onde a recebas com carne de porco à portuguesa, ninguém faz melhor do que tu, carros a apitar, achas piada a mulheres pequeninas. a cama à noite e eu sozinho ao menos descanso de ver e de pensar, tirem-me essas coisas das vossas cabeças e as mãos a fazer um gesto de corninhos.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

merabilia mundi

os crocs verdes da velha, o maluco de camisola castanha que sai do metro de baba em riste, a mulher cheínha mas com tudo no sítio, a professora que não tem quem lhe faça miminhos e lhe dê abraços, um país de budistas anónimos, o azul do céu que se esconde por trás das nuvens, o aluno que diz orgulhoso «a professora diz que vai fazer de mim um homem», uma autoestrada cheia de buracos e um autocarro aos solavancos, ela «vi-te e ia tendo um acidente na curva porque te quis acenar» e eu «nunca tive quase-acidentes por tua causa, não tive nunca quase-acidentes por causa de ninguém», abrir o facebook e encontrar milhares de fotos com frases de auto-ajuda e signos, aprender a viver segundo os signos, um anjo translúcido no guião do terço do rosário e a fazer de fundo de ecrã a um computador hp, uma pessoa a dormir enquanto a saliva lhe foge para o estofo colorido da camioneta, o meu amigo da pj «esta terra muitas personagens engraçadas» ou um uivo qualquer a querer dizer isso mesmo, um bêbado a vomitar que se esqueceu do gurosan, «isto sabe mal mas senão amanhã é que vai ser cá um ardor», ela a dizer-me adeus contente só porque lhe emprestei uns headphones que lhe mataram o tédio, o auscultador direito no meu ouvido sweet child of mine, e eu a lembrar-me da outra conversa «ontem fui tomar um cafezinho com o frankie chavez frankie és famoso», um concerto com australianos e espanhóis, um concerto com fressureiras e espanhóis, saídas ao local de sempre em busca de um toque especial da musa no momento de receber o troco de duas médias da super bock, um cérebro com tanta informação sem interesse nenhum e tu «gosto tanto de falar contigo aprendo sempre qualquer coisa».

cárcere

devem-me ter secado as lágrimas. não me compadeci minimamente quando por mim passou o homem algemado que levaram por dar esmola a um pobre. as mulheres de jerusalém choravam porque «raios, tanto assassino e só levam pessoas pacatas que correm o mundo fazendo o bem». devem-me ter secado as lágrimas: não vi o homem dar esmola a ninguém, não vi por perto nenhum pobre (nem um político por lá que dissesse «no nosso partido tomamos a sério a opção preferencial pelos pobres, disse-me um deputado enquanto lia um compêndio de capa verde», e o povo empobrecia cada vez mais. os partidos querem ter muitos pobres por quem optar). devem-me ter secado as lágrimas: vem-me à memória a frase da mulher de cu gordo e grandes mamas «que injustiças sempre há-de haver e que nem com Jesus foram justos» (e Ele que passou fazendo o Bem. e Ele que É o bem. e Ele que É - EU SOU). já não sei se me secaram as lágrimas, só sei que levaram o homem algemado pelas ruas fora até um carro preto com luzes a piscar e que tive pena porque ele me cumprimentava sempre com um aceno de mão e um sorriso quando há tantos que não me falam e ninguém os leva. mas não tive pena suficiente para começar a chorar. não tenho pena suficiente de ninguém para começar a chorar, nem de mim. quanto ao homem, não atirarei a primeira pedra. prefiro antes mandar a última, se não era a dar esmola a um pobre que ele estava e se, afinal, as mulheres de jerusalém choram não por causa da justiça mas por pena dos que lhes acenam ao vê-las passar.

terça-feira, 7 de maio de 2013

que animal é o amor?

passo em volta e vejo que, é mesmo verdade, as mulheres bonitas já estão todas comprometidas. não haveria problema nenhum nisso se uma delas fosse comprometida comigo. não haveria problema nenhum nisso se eu não me regesse ainda por antigas normas morais: «não cobiçarás a mulher do próximo, nem o próximo». nunca me deu para cobiçar o próximo, e respeito-o demasiado para lhe cobiçar a mulher a ponto de a roubar para mim. sou feio. sou feio a ponto de pensar que não conseguiria roubar a mulher de ninguém. sou feio a ponto de saber que sem beleza não há esperança para o amor. a cantora dizia «não se cansem de procurar», tentem todas as jessicas, todas as lauras, todas as marias, todas as gertrudes, todas as sofias, todas as zitas, se é uma jessica, uma laura, uma maria, uma gertrudes, uma sofia, uma zita que vos faz feliz, tentem todas até achar a certa. não se cansem de buscar o amor. que o amor é um cordeiro. e eu, mas às vezes é um cão. o amor é um cordeiro e o amor é um cão. o amor é uma pomba branca. o amor é uma pomba branca que voa. o amor é uma pomba branca que caga. as pombas brancas também se cagam.

[este texto foi escrito ao som de frankie chavez, kaki king, pearl jam, tindersticks e os quais]

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Sobre a preocupação com os pobres

Em vinte e seis anos de vida e de catolicismo estou mais do que habituado a ver todo o tipo de pessoas dissertar sobre a preocupação que a Igreja devia ter com os pobres e supostamente não tem, por causa da liturgia e da beleza e grandiosidade dos seus templos. Porque não me apetece, para não tornar este texto demasiado longo, explicar as razões por que a liturgia e os templos católicos devem expressar beleza (e porque há muito quem o consiga fazer bem melhor do que eu) queria apenas expressar duas inquietações que me surgem quando confrontado com esse discurso:
1. Porque há-de a Igreja Católica ter essa preocupação sendo dela dispensadas as outras confissões cristãs, os judeus, os budistas ou os hindus? Ou a Mesquita Azul não está também cheia de ouro? Ou os templos hindus na Índia não estão também cheios de ouro? Ou os templos budistas? No mesmo sentido, não é o discurso destas religiões também expressão de uma opção preferencial pelos pobres? É só o dos católicos? Assim, por que raio são só os católicos os tão incoerentes?
2. O que é que a maioria destas pessoas, que se arrogam de uma total independência face a religiões e partidos políticos, já fizeram pelo fim da fome? Dito de outra forma, e mais directamente: a quantas pessoas, apesar dos seus gastos supérfluos e dos pequenos luxos - que todos os temos, já mataram a fome? É que criticar a instituição que, no mundo, mais faz pelo combate à fome - até mais que a própria Organização das Nações Unidas - porque supostamente vive no luxo é uma hipocrisia se não abandonarmos, nós próprios, o luxo (ou se obrigarmos os outros ou, em rigor, uma parte dos outros, a uma exigência moral que não pedimos para nós próprios, se bem que este tema daria todo um outro texto).

Uma nota: a propósito do discurso mais recente da Igreja sobre os pobres, convém não esquecer que o Papa Francisco da Igreja pobre e para os pobres é o mesmo que não quer que ela se torne numa ONG piedosa. E uma Igreja sem liturgia, mais ou menos luxuosa - estou convicto de que para a maioria destas pessoas qualquer liturgia seria luxuosa, torna-se numa ONG piedosa. Habituemo-nos a não citar das pessoas só as palavras que nos interessam.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

petite victoire

ao meu lado uma velha
lê josé rodrigues dos santos

e eu o lobo antunes

a minha sabedoria,
por muito que imodesta,
ganhou-lhe aos pontos

perde o meu país
 
- de facto, não é meia-noite quem quer.

sábado, 20 de abril de 2013

da minha irritação com a auto-ajuda

arrancarei do vosso peito o coração de pedra 
e vos darei um coração de carne (Ez 36, 26)

Gostava que partíssemos do princípio de simpatia de que todos temos irritações particulares. Isto para garantir que ninguém lerá isto como um ataque particular, nem como uma manifestação particular de solidariedade. Gostava de partir do princípio de que a amizade também se pode construir no confronto e na troca de pontos de vista e não necessariamente no relativismo de ideias e no medo de assumir pensamentos que poderão melindrar os outros (escrevo isto, sobretudo, para me defender de eventuais "revoltas" de amigos que, ao longo da vida, terão encontrado propostas de caminhos nas obras dos Kunderas ou dos paulos coelhos do mundo). Prefiro partir do princípio, de que falava D. José Policarpo nas cartas que trocou com Eduardo Prado Coelho, de que dois homens de bem podem sempre encontrar-se.
Uma das minhas maiores irritações é, sem dúvida, em relação a todo o fenómeno da auto-ajuda (confesso que esta se agudizou com o crescimento da importância das redes sociais enquanto espaço de partilha do íntimo das pessoas). É-o por várias razões, e é sobre essas várias razões que gostava de falar.
Em primeiro lugar, a auto-ajuda irrita-me porque traz consigo uma visão redutora e simplista da vida. A verdade é que uma óptica a partir da qual a vida se realiza no seu expoente máximo com o cumprimento dos nossos sonhos, onde o auge de um projecto de vida é ir até onde nos leva o coração é, no mínimo, bastante limitada. Em primeiro, porque podemos sonhar com uma série de coisas irrealizáveis (fisicamente irrealizáveis), depois porque muitas vezes, porque o Homem é um animal social, para irmos onde nos leva o coração precisamos de um outro e ele pode não estar para aí virado. Esta visão sonhadora da vida ignora ainda as muitas dificuldades e sofrimentos que são próprios do viver humano e que muitas vezes estão lá apenas como isso mesmo, dificuldades e sofrimentos próprios da vida de um ser finito e limitado, e não propriamente para se tornarem na coroa de glória de um caminho até à vitória final.
Depois, irrita-me que uma certa forma de catolicismo se tenha reduzido à auto-ajuda. É muito deprimente que, numa qualquer feira do livro, as editoras protestantes se centrem na Bíblia e as editoras católicas tenham os livros teológicos escondidos atrás de um batalhão de "literatura" de auto-ajuda (sobretudo porque não é bonito ver que é dentro do próprio catolicismo que se justifica a frase, de Michel de Certeau, «dans sa misère, la théologie regarde vers la porte»). Mais do que isso, uma religião que se constrói na pessoa de Jesus e a partir de uma tradição como é a bíblica não se pode assumir como auto-ajuda. Não há auto-ajuda nenhuma no texto de Caim e de Abel, em que somos mais vezes Caim do que Abel, nem no texto de Ezequiel em que Deus nos diz que transformará o nosso coração de pedra num coração de carne, nem na parábola do fariseu e do publicano, em que mais vezes nos identificaremos com o primeiro que com o segundo, nem no facto de sermos nós os réus da morte de Jesus. Há, de facto, uma salvação gratuita que nos é dada a acolher, mas chegar lá exige trabalho e esforço, ascese e dedicação, e não um mero seguir dos sonhos, ouvir uma voz interior, ir onde nos leva o coração contra tudo e contra todos, buscar um conforto individual e descomprometido nessa salvação que nos é oferecida, usar os escolhos do caminho como coroas pessoais de glória. Quem põe no topo das prioridades seguir os seus sonhos ficará sempre longe da identificação total com Cristo, morto e ressuscitado, que é condição de salvação.
Depois, e por último, irrita-me também a atitude relativista e pouco honesta intelectualmente da auto-ajuda. Para as pessoas que se socorrem destas soluções "motivacionais" tudo está no mesmo saco: Jesus, Kurt Cobain, Jim Morrison, Che Guevara, Dalai Lama, Buda, Ghandi, Charlie Chaplin, Fernando Pessoa, paulo coelho, Bob Marley, o budismo como entidade mais ou menos etérea, e depois toda uma série de gurus do hinduísmo, do espiritismo e da new age, sendo que dentro deste grupo de indianos e brasileiros poderão até haver alguns nomes de pessoas que nem sequer existem. Ora, isto não tem lógica nenhuma: a relevância do discurso de Jesus ou do Dalai Lama sobre o sentido da vida, mesmo para um não crente, não terá o mesmo valor que uma afirmação de Bob Marley ou Jim Morrison. Depois, estes autores são escolhidos aleatoriamente e mais como figuras que garantem uma certa autoridade à frase escolhida (a frase deixa de ser anónima e permite à pessoa situar-se em termos ideológicos - se for mais "espiritual" citará mais líderes religiosos, se for mais de esquerda irá para os revolucionários, se for um espírito livre citará muito Bob Marley e Jim Morrison, se for depressivo muito Kurt Cobain e [o suposto] Fernando Pessoa e por aí adiante) do que como efectivos criadores de tais pensamentos (aqui poderíamos entrar pelo desinteresse generalizado pela leitura e, até, pelo do mau gosto entre os que até lêem, mas não me apetece mesmo ir por aí). Acho que as pessoas nem chegam a pensar quando partilham estas frases, nem devem chegar a lê-las com a atenção suficiente para as levar a desconfiar que a autoria de tal pérola de sabedoria possa não ser da pessoa que assina a frase. Ainda dentro deste fenómeno irrita-me que depois se confunda a partilha destas frases com a partilha de obras de arte (poesia, escultura, pintura, música, fotografia) por aqueles que o fazem como forma de expressar a sua capacidade de espanto com a beleza da criação artística (dito de forma mais simples, irrita-me que se confunda quem partilha uma frase de Dostoiévski porque nela encontrou um confortozinho interior com quem partilha uma frase dele porque comunga do pensamento de que é a beleza que salvará o mundo). Irrita-me que o auto-conforto e a auto-ajuda se deixem confundir, e sejam postos ao mesmo nível, da estética e da ética (ou de uma inevitável estética ética, ou vice-versa, no sentido da ética teológica de von Balthasar).
Dito isto, volto ao início do texto. Não quero, mesmo, melindrar ninguém. Só quero que possamos, todos, estender o nosso olhar um pouco para além do nosso umbigo. Que sejamos capazes de ver para lá dos nossos próprios sonhos. Que nunca nos esqueçamos, sobretudo, que dois homens de bem podem sempre encontrar-se.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

corpo de delito

o olhar de mafioso
ou de quem faz esforços escatológicos

os músculos de dez horas diárias de ginásio
a roupa justa ao corpo

são trabalho a mais
para ficar com um corpo de ladrão

terça-feira, 16 de abril de 2013

fazeres-me falta

a tua breve aparição
mudou-me o ritmo cardíaco
e a respiração ficou um pouco ofegante

quando acho que te esqueço
é que me lembro de ti

segunda-feira, 15 de abril de 2013

do analfabetismo

hoje lembrei-me de uma palavra
que já não me vinha à cabeça há muito tempo:
parteleira.
(veio-me à memória por boas razões, não necessariamente as mais católicas)

à conta disso
lembrei-me do prof. Cyber Tran,
um homem que está par' lá deste mundo
infelizmente
(sorte tem Deus, que deve estar a ouvir órgão no Céu)

sexta-feira, 12 de abril de 2013

árvore da vida

entre os prédios
as árvores querem morrer

deixem-nas ser livres

juízo final

para seres salvo responde
à pergunta gravada numa parede:
«acreditas na vida antes da morte?»
- grava-a no teu coração,
e ele deixará de ser de pedra -

acreditar na vida é
saber onde está o nosso irmão.
o crime de caim foi deixar de ser
o guarda de abel

segunda-feira, 8 de abril de 2013

oitenta graus de amor

não existes.

no dia em que me pus à venda
por não querer mais estar sozinho
esperei por ti

e não apareceste.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

lilia agri


καὶ περὶ ἐνδύματος τί μεριμνᾶτε; 
καταμάθετε τὰ κρίνα τοῦ ἀγροῦ πῶς αὐξάνουσιν· 
οὐ κοπιῶσιν οὐδὲ νήθουσιν·
Porque vos preocupais com o vestuário? 
Olhai como crescem os lírios do campo: 
não trabalham nem fiam! 
Mt 6, 28


ao chegar a primavera
os homens param para ver flores

na primavera fotografam-se flores
para dar colorido aos computadores
aos telemóveis e aos aparelhos modernos

na primavera dão-se flores
para seduzir mulheres
e para passar graxa a velhas

é primavera e quis parar
eu
para contemplar um lírio do campo
mas ainda chove
ainda chove demais
e o mais que consegui foi molhar-me todo
enquanto o lírio gozava comigo
porque me preocupo demais


quarta-feira, 3 de abril de 2013

Aleluia

A ti
de ti
por ti
para ti
sem ti
ante ti
perante ti
depois de ti
longe de ti
fora de ti
além de ti
contra ti
sobre ti
sob ti

dentro de ti

Jorge Sousa Braga in O Novíssimo Testamento e outros poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2012.

terça-feira, 26 de março de 2013

tempus fugit

Hoje, aproveitando os dias em que o estado português ainda me deixa ficar em casa para celebrar a Páscoa, fui almoçar com os meus maiores amigos. Como é habitual, juntámo-nos para contar as histórias do costume (lembrar o passado, informar como vai o presente e inventar um futuro digno para maluquinhos como nós) e para rir. Sobretudo para isto, rir. Para nos sentirmos como putos outra vez apesar de já sermos todos homens de trabalho e responsabilidades. 
Depois, por estarmos perto, acabámos por ir visitar a escola onde nos conhecemos todos e onde todos nos começámos a formar como homens a sério. É um espaço onde, por todas as razões, os quatro gostamos de voltar. Mas foi um sítio onde, hoje, me fez especial impressão voltar. A razão é simples: hoje caiu-me a ficha. Já passaram oito anos desde que saí dali. Se é verdade que, sobretudo quando estou com os meus amigos - particularmente com estes meus amigos de hoje -, me continuo a sentir o puto que percorria aquela escola sempre a rir e que tinha alegria e desejo de ir às aulas e de estar com os colegas a verdade é que já sou oito anos mais velho. A verdade é que hoje estou muito diferente - não necessariamente para melhor - e já passei por muitas coisas (muitas delas pelas quais não fazia questão de ter passado). E esse é que é o problema: o tempo passa e exige-me ainda que corrija tanta coisa. Oito anos passaram e mudei tão pouca coisa, melhorei em tão pouca coisa.
Vem lá a Páscoa e com ela a celebração da Ressurreição e da vida nova em Jesus Cristo. Que eu saiba ser digno dessa conversão (e, já agora, os meus amigos também).

segunda-feira, 18 de março de 2013

meetings time

«meu filho, se fores para o serviço do Senhor, prepara a tua alma para a demora» (Sir 2, 1)

suor
cansaço
dores nos pés
sono
ideias parvas
tempo sentado
piadas
pessoas sérias
contar até vinte
andar de um lado para o outro
contar com a complacência alheia
reunir
unir
ir

quinta-feira, 7 de março de 2013

senhora do socorro

[paulo, se me conhecesses a sério não me dizias certas coisas]

enquanto subia a serra do socorro a pé
para rezar pelos muçulmanos
     (onde já houve uma mesquita)
e para rezar pelos que andam na guerra
     (onde esteve um forte das linhas de torres)
lembrava-me desse pequeno pormenor:
nunca houve uma professora bonita
que tenha feito de mim um homem

ou afinal sou só um rato
ou hoje os putos têm mais sorte

l'autobus

num autocarro para lisboa há:
pessoas que não se lavam com regularidade,
pessoas que atendem telemóveis aos berros,
pessoas que vão a falar ao telemóvel durante uma hora,
pessoas que se sentam no banco contrário à janela
para não levar ninguém ao lado, mesmo tendo pago só um bilhete,
muitos velhos,
poucas mulheres bonitas (que, a haver, costumam entrar no bombarral),
wifi, só quando o condutor é jovem,
e gajos que escrevem sobre isso na internet.

poema rural em rima

que maravilha é
ficares espantada
enquanto vais sentada
na autoestrada
ao veres uma pereira sulfatada

[que, a propósito, é de se admirar
se estiver sozinha no pomar]

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

little poem to the west of portugal

A minha terra é a melancolia
o meu país é a solidão
a minha pátria é estar só
e viajar

da minha terra às vezes vê-se o mar.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

um pedido: eclesiofilia

Nasci a dezasseis de Outubro de mil novecentos e oitenta e seis, filho de uma catequista e do sacristão de uma comunidade cristã, casados canonicamente e já pais de um rapaz baptizado. Assim que as condições climatéricas o permitiram, os meus pais começaram a levar-me, ainda na alcofa, à missa dominical. Passados alguns meses, na Páscoa, celebrada no dia dezanove de Abril de mil novecentos e oitenta e sete, recebi o Baptismo. A partir daí, fora alguns períodos em que estive hospitalizado, nunca faltei à missa e sempre me aproximei dos sacramentos que estava em condições de receber (Eucaristia, Reconciliação, Crisma).
Durante cinco anos, a partir do dia sete de Setembro de dois mil e três, fui seminarista diocesano do Patriarcado de Lisboa e, nesse período, passem todas as minhas limitações, sempre vivi com seriedade os meus compromissos para com essa comunidade (os de oração, fidelidade e os meus votos privados de celibato).
Quando saí do Seminário, no dia vinte e cinco de Julho de dois mil e oito, decidi continuar os estudos teológicos e foi assim que, no final de Setembro de dois mil e dez comecei a dar aulas de Educação Moral e Religiosa Católica.
Esta minha biografia breve serve para explicar que desde sempre a Igreja Católica faz parte da minha vida e que sempre me descobri a dar a cara por ela (fosse quando, em pequeno, era gozado por ser o filho do sacristão e por ir à catequese e à missa seja, desde os tempos do Seminário, quando a minha ligação ao que consideram a "cúpula" da Igreja e os meus estudos teológicos são ocasião de inquietações e perguntas). Sempre dei a cara pela Igreja sete dias por semana, vinte e quatro horas por dia, muitas vezes em ambientes onde muitos clérigos não o conseguiriam fazer (e não estou a falar da evangelização de bordéis ou discotecas, que nem sequer frequento, mas de lugares hoje tão descristianizados como as escolas ou as casas da maioria dos portugueses).
É por isso que escrevo este texto a pedir, só, um bocadinho de respeito. Por mim e por tantos que dão a cara pela Igreja em ambientes hostis. Por nós que já não sabemos como defender mais um grupo de gente autofágica. Por nós que, não houvesse Cristo, que não pode ser mudado e sobre o qual não há segredos escondidos, já não tínhamos argumentos. Por nós que, a bem do Evangelho, andamos a passar por pedófilos e aldrabões.
Isto que vos peço, a cada um dos cristãos que me lê e, em particular, àqueles que têm uma missão de maior responsabilidade na Igreja, faço-o como uma última homenagem ao pontificado de Bento XVI. Não me esqueço das suas palavras na missa que antecedeu o Conclave em que havia de ser eleito. Não me esqueço das suas palavras durante a sua visita a Portugal, quando disse que os piores ataques à Igreja vêm de dentro e não do exterior. Não me esqueço que ele falou na necessidade de varrer, de uma vez para sempre, esse lixo da Igreja de Jesus. E não me esqueço que, se lhe estamos mesmo gratos, lhe devemos a obrigação de levar isso a sério. Por ele e por todos os que dão testemunho de Cristo na vida secular e já começam a ficar sem resposta a tanta notícia de jornal, a tanta denúncia de encobrimento e de má gestão do pessoal.
Precisamos de ter verdade prática para anunciar, de obras de verdade que consubstanciem a Verdade que anunciamos. Não há fé sem obras nem obras sem fé. Mostrem a vossa fé nas obras, é tudo o que vos peço, para que nós, que vivemos do anúncio do Evangelho, possamos mostrar que as obras daqueles a quem anunciamos só podem melhorar se lá for posta a fé.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

agradecer a Pedro

No momento actual, passe a minha apreensão estúpida quanto a quem será o sucessor de Bento XVI, o homem que, entre outras coisas, conseguiu evitar o cisma (embora eu ache mais importante o facto de ter mostrado que  a teologia ainda tem lugar no mundo e, diga-se, por mais estúpido que pareça, dentro da própria Igreja), cabe-me rezar e agradecer.
Rezar para conseguir, um dia, ser capaz de uma capacidade assim de perscrutar a voz de Deus e os Seus caminhos. Rezar para confiar em Deus como Bento XVI, para acreditar que o Espírito conduz mesmo o Povo de Deus e que não têm sentido os meus sentimentos estúpidos e demasiado humanos.
E agradecer, a Deus e ao Papa, porque permitiram que um dos maiores teólogos do século XX pudesse guiar a Igreja no início do novo século. Que lhe pudesse deixar os documentos que deixou (e que valem, todos eles, a pena ser lidos - leiam-nos, leiamo-los), que deixasse na Igreja do século XXI o interesse pelo debate que quer converter, pela cultura que quer ser experiência de encontro com s beleza, pela fé que quer ser vida do homem todo e não apenas de algumas das suas dimensões.
Por tudo isto, obrigado, Santo Padre. Obrigado, Bento XVI. No recanto mais escondido do meu quarto, como pede a Escritura, nesta Quaresma que hoje começa rezarei particularmente por si.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

[carta com destinatária indefinida]

nas noites de bares
com música ao vivo
é que tenho saudades
dos teus olhos

sinto a tua falta
[mesmo que não saiba
(e virei a saber?)
quem és]

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

doce solidão

hoje só queria ter com quem falar
alguém a quem mandar uma sms
uma carta
um fax
um telex
um telegrama
sinais de fumo

mas não posso
foste embora
e não estás cá para mim

a culpa é minha.
desde que decidi ficar sozinho
para ser para os outros
o que não tenho para mim

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

perdeu-se um coração

sabes?
faz falta às redes sociais
a partilha de imagens a dizer
que se perdeu um coração

no meio de animais
e pessoas desaparecidas
esquecemo-nos sempre disso
«perdeu-se um coração»

um homem perdeu o coração
junto do rio arnon
- que já ninguém sabe onde fica -
e não há quem monte uma expedição
para o resgatar

"procura-se coração perdido"
dir-se-ia pelos vales
e grande seria a festa
por um só coração que se encontra

diriam
«sabes?
achei um coração
o maior dos tesouros»

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

[desconstrução de frases feitas sobre um país: 3]

"Portugal, o país de Fátima". Apesar de 90% da população se dizer católica só 30% vai à Missa dominical e frequenta os sacramentos. A taxa de divórcios dobra a taxa de casamentos religiosos. O Santuário de Fátima enche nas peregrinações aniversárias, sobretudo com gente que fala alto, atende telemóveis e fuma no recinto do Santuário durante as celebrações.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

[desconstrução de frases feitas sobre um país: 2]

"Portugal, país do fado". Vendem-se mais cd's do Tony Carreira sozinho num ano do que da Amália, da Mariza, do Camané, da Ana Moura e do António Zambujo juntos em três.

[desconstrução de frases feitas sobre um país: 1]

"Portugal, um país de poetas". 90% da população alfabetizada mais rapidamente diz o nome de cinco concorrentes à casa dos segredos do que o de três poetas.

domingo, 6 de janeiro de 2013

São João e a ribeira

Passando por São João da Ribeira às nove da noite e a oitenta e tal à hora só se dá pelos semáforos, muitos, demais, e nada, mesmo nada, pela presença do poeta. Não há um café com o nome dele, uma rua que o refira e que fique junto à estrada principal. A internet diz que há lá uma escola que se chama Centro Escolar Poeta Ruy Belo e eu nem sei se me ria se chore com essa notícia. Talvez seja melhor rir, já que dão o nome de um poeta destes a uma escola onde ele não vai ser lido. Mas talvez me apeteça chorar... É triste que na terra onde Ruy Belo nasceu seja preciso esclarecer que o homem que dá o nome à escola é o poeta. É triste que na terra de Ruy Belo não saibam quem ele é. É triste que no país de Ruy Belo não saibam quem ele é. É triste que neste país de poetas saibamos mais rapidamente dizer o nome de cinco concorrentes à casa dos segredos ou a um desses concursos miseráveis da televisão do que o de três poetas decentes.

 
Nota do autor: aqui há tempos vi uma reportagem num jornal regional sobre a visita do "ministro" da (des)educação e ciência (experimental) a um centro escolar da zona de Rio Maior que descobri agora ser este de São João da Ribeira. Nessa notícia diziam que o "ministro" foi aplaudido pelos presentes. Fiquei ainda mais triste com a ideia de terem dado o nome de Ruy Belo a um sítio daqueles. Não foram, não serão, capazes de dignificar minimamente o nome do patrono da escola. Pelo menos começaram bastante mal.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

dois de janeiro

o dia dois de janeiro devia ser um dia mundial para os humoristas, fosse eu a favor de dias mundiais do que quer que fosse. isto porque neste dia me lembro sempre de uma das maiores aproximações ao humor do senhor meu pai, que religiosamente todos os dias dois de janeiro aproveita para dizer que «temos de ir ali ao largo para ver passar um homem com quantas orelhas quanto dias tem o ano». 
por que não ir ao largo dia um para ver uma pessoa com tantos narizes quanto dias tem o ano, ou dia dez para ver uma pessoa com tantos dedos das mãos quanto dias tem o ano ou no dia trinta e dois do ano para ver uma pessoa com tantos dentes quanto dias tem o ano (sendo que, no oeste português, é difícil que passe uma pessoa com dentição completa, pelo que é melhor passar por lá antes; quem sabe se não logo na primeira semana)? esta é, como a maioria das piadas populares, uma graça bastante fraquinha.
no entanto serve muito bem como piada de início de ano, pelo que continuo a defender que por causa dela o dois de janeiro devia ser o dia mundial dos humoristas. serve bem como piada de início de ano porque sempre é melhor do que as graçolas de início de ano que andam por aí agora, todas sobre crise e economia e finanças. antes prefiro começar o ano a rir-me por me deixar apanhar na marotice de quem me quer fazer ir até ao largo ver uma coisa nunca vista que na verdade é o mais normal que existe (ou por haver quem ache que alguém vai cair nessa hábil ratoeira) do que a rir-me porque vou ficar mais pobre e continuar a ser roubado (no fundo, o que as pessoas que fazem essas graças querem é lembrar-nos de que estamos em crise de economia e das finanças, como se não o soubéssemos já e como se não sofrêssemos suficientemente com isso).
este ano, em que isto parece que vai ser mesmo mau, é que precisamos mesmo de nos rir de outras coisas. este ano é que precisamos de chorar por causa de outras coisas, de conversar sobre outras coisas. este ano é que precisamos da cultura (dos livros, dos filmes, dos discos, da pintura, da escultura) nas praças outra vez. este ano é que precisamos da teologia nas praças outra vez. precisamos outra vez dos tempos em que havia bulha no mercado por causa do filioque e não dos zero vírgula cinco por cento de não sei quê do gaspar.