blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quinta-feira, 27 de agosto de 2020

o amor é bandeira de paz

o cantor era levado em ombros
por entre a multidão que enchia o circo voador,
como sempre eu reservava um lugar
encostado à parede do fundo
para chorar por ti
e lembrar aquela tarde, nós, no SESC Pompeia,
já nem me lembro qual era a banda,
passámos a noite de mãos dadas
e a tua cabeça descansava no meu peito,
às vezes ainda toco no meu peito
para que doa mais a tua ausência,
às vezes assisto a vídeos de covers em casas de banho
porque o eco das casas de banho ajuda ao som
e porque detestavas covers em casas de banho
e imaginar o teu ódio é estranhamente bom,
choro ao fundo da sala porque já nem me lembro
por que razão partiste, na verdade não chegaste bem a partir,
o mais estranho é isso, as pessoas agora não se despedem,
não «adeus», não «até logo», não «até ao próximo concerto desta banda na cidade tal»
só um «obrigada e beijinhos» e nunca mais uma palavra,
já lá vão cinco meses que aqui fui deixado 
ao fundo da vida sem saber se espere por ti

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

reino animal

passava o dia com uma sensação estranha
o fundo da garganta a saber a sangue e fel
e muito medo de adormecer à noite
porque ontem ela das minhas obsessões
durante um sonho de que estranhamente me lembro
apresentava-me sucessivos namorados
e eu não queria conhecer nenhum deles,
uma noite sonhei que a esperava numa igreja
com uma escadaria grande em frente,
antes do casamento tinha saído de carro à pressa
para ir a casa buscar alguém que ficou esquecido
e uns sapatos de pele castanha 
que tinha estado meticulosamente a engraxar,
chorava a cerimónia toda porque era tudo demasiado perfeito
como é sempre nos sonhos
e acabavámos o dia a sujar o vestido branco
e a farpela que eu levava
a contemplar um pôr do sol à beira-mar
que lhe ofereci porque a conheço tão bem,
de manhã acordava e tudo realmente só um sonho,
nunca casamento nenhum,
já nem um «bom dia», um «como estás?»,
já nem eu um «tenho saudades tuas, espero que estejas bem e feliz»
porque o sangue e o fel no fundo da boca
se vão tornando estranhamente confortáveis
e vamos aceitando que a vida é isto,
uma sucessão de fracassos,
passeios solitários de cabeça baixa ao pé do mar
que ela adora e por isso não há coragem de andar erguido ali,
a memória de outros sabores ao fundo da boca
que não estes, talvez o cheiro dela
e de outras mil obsessões