blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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domingo, 31 de agosto de 2014

mil frases feitas

como se a vida se extraísse
de um livro de auto-ajuda
escrito por autores que
escrevem sempre mal
mas gostam de ganhar
dinheiro e fama
ela cuspia frases feias
todos os dias
e ia-se tornando
uma pessoa feia
todos os dias

na auto-ajuda não há lugar
para preguiças falhas
paciências virtudes cristãs
e imperfeições humanas
é o que me é dado perceber
nas frases que ela cospe
para cima de mim

a auto-ajuda não tem espaço
para mim
nem para pessoa nenhuma
na verdade
que queira ser pessoa
e não um bicho que gosta de festas
e que lhe digam o que gosta de ouvir

sábado, 30 de agosto de 2014

tu és a fonte

quando o sol brilhar de novo
não te percas à sombra das árvores
em que escreves repetidamente
o teu nome com facas afiadas
com um disco de uma máquina
de rolamentos que roubaste
na fábrica abandonada e escura
(já não é o nome dela que escreves)

quando o sol nascer aqui
sai para o meio da praça
para que todos te possam ver
que eles vejam o que é um homem
em estado puro
solidão temor e obsessões
(o banco de jardim estava todo riscado
o que estava escrito ninguém o entendeu)

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

versos roubados

mais importantes que as flores na janela
são as flores que guardas no coração

cuidado:
que as flores que lá pões
não o façam deixar de bater
e encantar-se com um amor

domingo, 24 de agosto de 2014

os buscadores

a noite é o lugar
dos que caminham
à procura

no percurso solitário
dos buscadores
pior do que a incerteza
do que falta fazer
são as saudades
dos passos já dados

sax alto

muito ao longe o som de um saxofone
e de vozes em melodias românticas
lembram-me de um amor que há-de chegar
e sei que ainda me espera
por muito que tarde em surgir

(há luzes visíveis ao longe
e outros sinais de festa)

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

dois - substituído

ainda te custa dizer o nome
do jardim em ruínas
deixaste tanta vida
no baloiço apodrecido
na relva que entretanto cresceu
(há lá cobras e lacraus, sabias?
bichos que sempre temeste)
na caixa de areia
agora suja dos gatos
na árvore caída onde
juraste que havias
de construir a tua
morada
(gravado com um canivete
o nome dela e o teu.
não sabes o que lhe aconteceu
talvez continue linda)

da pedra angular

Sobre que pedras vivas, ó Deus,
edificarás a Tua Igreja?

Toma as minhas mãos.

passeio de bicicleta

Na verdade vós sois um Deus escondido,
o Deus de Israel, o salvador.
Is 45, 15

se ainda há sentido
em escrever poesia
num mundo que se desmorona
ele está em desvelar a beleza
escondida do Deus que dança

vento da tarde

Depois do fogo, ouviu-se o murmúrio de uma brisa suave. 
Ao ouvi-lo, Elias cobriu o rosto com um manto, 
saiu e pôs-se à entrada da caverna. 
Disse-lhe, então, uma voz: «Que fazes aqui, Elias?»
1 Rs 19, 12b-13

quando o vento te incomoda
e já faz frio apesar do sol
é a hora de pensar que o sagrado
às vezes mora na brisa da tarde
que nem sempre te agrada

cinco e meia

é sempre a ti que procuro
quando ouço os sinos
dobrar ao longe

terceiro livro dos silêncios

o silêncio, tal como o som,
é uma arte que exige treino.
escolhe sempre bem o sítio
onde te possas calar.

entrada do mosteiro

quantos silêncios cabem
na oração da tarde?
e quantos versos de poetas?

first fight

nos dias em que me levanto tarde
queria ser como a flor que nasce
mesmo por cima da minha janela
e para a qual lanço o olhar
quando salto da cama.
a minha flor não discute
nem se chateia com ninguém
é bonita, só, e dá-me os bons dias
ou as boas tardes muitas vezes
quando salto da cama.
eu, às vezes, queria só ser assim
bonito, só, e dar os bons dias.
muitas vezes somos adultos
só para termos de nos chatear com alguém.
devíamos pensar mais em ser
crianças ou flores (ou as duas ao mesmo tempo).

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

o monstro

às vezes acho que é por medo
que te perdes tanto em justificações
quando estamos só nós
(às vezes acho que é por medo
que toda a gente se perde em justificações
quando está a sós comigo)

não sou esse monstro feio
que me parece que vêem em mim
(do bem e do mal que me conheço
sei que na verdade não sou)

perdesses o medo que tens
e entregava-te o coração

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

137

Sôbolos rios que vão por Babilónia, sentados
chorámos as lembranças de Sião,
e nos salgueiros pendurámos as harpas contra o vento
Sl 137, 1-2 [mudado para português por Herberto Helder]

a cada passeio solitário
quando ainda há sol
ou quando a noite teima em cair
sinto esta terra mais minha
como se de alguma forma
sempre o tivesse sido

na verdade sinto isso
com vários lugares
e várias pessoas
(geografias assim tão distintas)
talvez por não ter a que me agarrar
um lugar que seja meu
talvez por não ser daqui

terça-feira, 19 de agosto de 2014

o verbo assustar

ao entrar na sala vazia
ao mesmo tempo escura
um susto de vida
isso mesmo
um susto de vida
era a caixa antiga
com os objectos da infância

uma vida que volta
nessas pequenas coisas

a mesa de pedra

as tardes de sol são boas
para os putos saírem de bicicleta
(há um que leva a bicicleta às costas)
também são boas para falar de amor
se aparecer quem nos queira ouvir
(hoje não passou aqui ninguém
enquanto escrevia estas coisas
e lia jorge luis borges)

fotografia por revelar

Na taberna da aldeia,
a que agora chamam café,
há um homem que fala sozinho
e nunca responde às nossas perguntas.
Esbraceja sem fim e ri-se
e não se importa se ninguém o ouve.
Partilha receitas de coelho guisado,
vinho branco, cebola cortadinha, colorau,
tomate, alho, mais vinho branco,
e lembra-se do nome dos irmãos
que são cinco, com o que já morreu.
Diz que tem quarenta e oito
ou sessenta anos, uma idade aí pelo meio,
e que sabe assinar se vir o nome escrito.
Gosta de cópias em letra de imprensa
e não é adepto de ditados.
Carrega o dinheiro todo no bolso
para não ser roubado pela irmã
e a ver se vai comprando
copos de vinho e cervejas.
«Sou o mais parvo dos meus irmãos
mas, às vezes, faço-me mais parvo
do que aquilo que sou».
Ouvi poucas autobiografias tão boas.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

terra quente

ainda pedes para voltar
àquele dia da tua infância
em que te esqueceste
como se sobem as árvores
e todos apontaram para ti

nesse momento sentiste mais
as moscas que te mordem as pernas

A morte de Pedro Páramo

Transporto sempre uma faca no bolso
para trazer presente à memória
que não fui eu quem matou Pedro Páramo
na noite quente de Buenos Aires
por entre o som de tangos nos bares
e a sujidade das ruas escuras.
Naquela noite saí para beber rum
e tentar-me esquecer de uma mulher
antes de partir no próximo avião para Caracas.

palavras batidas

o espaço que se constrói
entre as palavras que se dizem
e as que ficam por dizer
é o lugar do poema de Deus

domingo, 17 de agosto de 2014

quinto livro das explicações

Como num ritual antigo
sentávamo-nos em redor da mesa
para ouvir a mãe explicar
o Cântico dos Cânticos.
As mulheres é que entendem
estes assuntos de cariz divino
que fazem parte das virtudes teologais,
não são rudes e básicas como os homens
que quase nunca sabem sentir.

(O Cântico dos Cânticos foi
admitido no cânone da Bíblia hebraica
no fim do século I e a sua autoria
é atribuída por alguns ao rei Salomão.
Quase todos os biblistas admitem
que foi escrito por homens)

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

vento na janela

o vento é uma máquina previsível
que serve para criar lugares-comuns
e talvez quinze frases de auto-ajuda

se ao menos por um dia alguém
se pusesse mesmo ao sabor do vento
até ficar com os olhos a chorar

falo de um vento mesmo forte
como o que se ouve hoje lá fora
não de brisas suaves que podem trazer Deus

se um dia alguém se pusesse
corajosamente diante desse vento
acabavam-se as frases parvas

os escritos reconfortantes para donzelas
e as imagens recorrentes de janelas
e portas e coisas com aduelas que podem bater

quando se sente o vento que hoje faz aqui
real e com força nas trombas até fazer chorar
descobre-se que ele é viril como nenhum homem

terça-feira, 12 de agosto de 2014

noites alegres

o moinho velho ainda trabalha
fazendo um ruído grande à noite

ao fundo crianças falam alto
porque os pais não os repreendem
como se fazia dantes
em que ainda lhes ensinavam
que falar alto à noite era má educação
e um perigo dos grandes

chove de uma maneira esquisita
e percorro, como sempre,
as ruas da aldeia em completa solidão.
acontece-me cruzar-me com pessoas
três jovens dois carros uma velha
a carrinha azul da série de televisão
mas já ninguém acena nem diz boa noite
muita coisa que havia noutros tempos se perdeu
nem todas as coisas eram más
a fome o medo a falta de conversas à noite sim

domingo, 10 de agosto de 2014

travessa das fontes

gostava mais da função original das fontes
a água que corre sem cessar
e é usada para matar a sede
e para lavar os corpos sujos do trabalho da terra

os bancos quase nunca vazios
ocupados por raparigas sonhadoras
à espera de um amor de almude ao ombro
um rapaz que dê beijos
e ajude a pôr a bilha pesada à cabeça

hoje as fontes são sítios escuros
com muitas torneiras fechadas
paredes verdes de abandono
e rapazes a enrolar marijuana

olhar lateral

sentado na mesa do café
com um caderno à frente
o homem não consegue
desviar os olhos
da rapariga do lugar ao lado
há qualquer coisa que encanta
naquele olhar castanho e grande
e ele não sabe explicar
nem pôr por escrito

ela sorri porque sem saber a causa
gosta de ser vista assim
sempre pensou que os homens
não passam mais de dois minutos
sem voltar o olhar para si mesmos

a água está na sede

perdes-te à tarde
a contemplar o som do riacho
que ainda teima em correr
apesar de todos os esforços
que têm feito para o secar
tentas ouvir só o som do riacho
e olhar a água que bate
com força nas pedras
mas hoje não dá
há sempre um amor que falta
e é para ele que lanças o olhar

livro das recomendações

não busques demasiado a lua
em noites de muito calor
procura antes um forma de adormecer
num lugar onde corra o vento
e os bichos barulhentos não cheguem

não procures nunca o sol
em sítios onde se ouçam cães
ou a melodia dos pássaros
vai à procura do silêncio absoluto
por estradas que já ninguém usa

sábado, 9 de agosto de 2014

apenas um lugar

o lugar que há
entre o que morre
e o que nasce
é aquele em que
desejamos habitar

sub silentio

a gestão dos silêncios
custa sempre mais
que a gestão dos sons
a excepção deve ser
o momento solitário
passado à sombra das árvores

luz de presença pós-moderna

há uma calma que me vem
de saber que tenho o teu número
nos meus contactos telefónicos
e que há uma fotografiazinha tua
na minha lista de amigos de facebook

sei que nunca me irias atender
nem ler os meus apelos
que deixo por todo o lado
quando dão as três da manhã
mas sei que me acalmo
por saber que estás aqui
desta forma virtual

(às vezes mexo no telemóvel
como se te estivesse a dar a mão)

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

canto dos corvos

aquele poeta a quem hoje
queria agradecer o bem
que me tem andado a fazer
já morreu

foi-se embora cedo demais
para onde as palavras
já não interessam
só o olhar

montes urais

Alexandre o Grande está morto
agora que preciso dele
para lhe pedir um favor

sem montar um elefante
(um unicórnio, talvez, um cavalo
branco de príncipe encantado)
não dá para tanspor os montes
em que escondeste o coração

contagem

quantas pedras cabem
na casa que havemos de habitar
a que tem um damasqueiro no quintal
e um ramo de rosas brancas
em cima da mesa do jantar

com quantas pedras se constrói essa casa
(com dois corações que se multiplicam)
era o que eu queria dizer

Fiódor

ainda não percebo o porquê
de deixar o verão para ir a um lugar tão frio
cheio de prédios antigos e solenes
e gente anónima a circular pelas ruas
quase sempre sem sorrir

naquele dia pus-me por uma viela escura
para conseguir encontrar
na sala do palácio antigo
esse quadro belo e perturbador
(o que faria o teu rosto
naquela tela pintada a óleo
por um artista de São Petersburgo?)

caruma

percorro solitário o carreiro
aberto por entre árvores altas
à procura de vestígios da presença humana
frases gravadas à faca em cascas de eucalipto
lenços de papel e pacotes de bolachas
que acabo sempre por não encontrar

olho para o relógio
para ver que já passaram duas horas
e não encontrei nada
nem a voz dos corvos ao longe

decido parar sentado à sombra de uma árvore
para te dizer outra vez
que se estivesses aqui
te entregava o coração

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

vien ici

as matrículas estrangeiras
dos automóveis dos emigrantes
aparecem em agosto
para dar vida à aldeia
para abrir as janelas das casas
para fazer as vidas mais reais
mas a realidade não é essa
a realidade é uma coisa
que se esconde e guarda
por dentro dos teus olhos doces

terça-feira, 5 de agosto de 2014

plátano solitário

tenho saudades de andar descalço
pelo alcatrão junto à praia
quando ainda levava a mão ao bolso
à procura de rebuçados
e fugia a correr da sombra
das nuvens com forma humana

ensinaram-me que esses tempos
podiam voltar se aprendesse
a gerir as respirações e a
acreditar com todas as forças
que o alcatrão não aleija os pés

devo ser muito burro pensei depois
de dois vidros e um prego na sola
do pé direito

vento japonês

rosas e silvas
partilham espinhos
e cheiros doces no verão

rua agitada

parado no café a olhar
para a mulher de mão estendida
que me pedia um poema
não queria moedas nem pão
queria palavras que pudesse levar
para sempre no bolso ou junto ao peito
às vezes as palavras não chegam
estão em falta dentro de mim
escrevi antes de arrancar a folha

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

terceiro livro das peregrinações

ao longo do caminho
o que causa mais bolhas nos pés
contrariamente ao que te dizem
não são as subidas íngremes
mas as rectas infindáveis
(uma recta é um conjunto
infinito de pontos,
linearmente ordenados,
sem primeiro nem último,
sem pontos consecutivos.
também pode ser
um lanço rectilíneo
de estrada).

ficar sentado no sofá
a ver nem sei bem o quê
na televisão estatal
não causa bolhas nos pés.

a estrada é sempre mais fácil
para os que não se fazem ao caminho.
o que é que isso não vale a pena.
conjunto infinito de pontos, linearmente ordenados, sem primeiro nem último, sem pontos consecutivos

recta In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-04].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/recta>.
conjunto infinito de pontos, linearmente ordenados, sem primeiro nem último, sem pontos consecutivos

recta In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-04].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/recta>.
conjunto infinito de pontos, linearmente ordenados, sem primeiro nem último, sem pontos consecutivos

recta In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-04].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/recta>.
conjunto infinito de pontos, linearmente ordenados, sem primeiro nem último, sem pontos consecutivos

recta In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-04].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/recta>.
conjunto infinito de pontos, linearmente ordenados, sem primeiro nem último, sem pontos consecutivos

recta In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-04].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/recta>.
conjunto infinito de pontos, linearmente ordenados, sem primeiro nem último, sem pontos consecutivos

recta In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-04].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/recta>.

domingo, 3 de agosto de 2014

insónias (mil duzentos e trinta e dois)

era como se a verdade
certos dias ao acaso
surgisse em frases
de revistas cor-de-rosa
não escolho quando tu entras
nem escolho quando tu sais

a vida às vezes é uma parede
feita de pequenos escolhos
há-que saber saltá-los
ou habitar com paciência
o lugar onde se sentam
os gatos do vizinho
só para te irritar