blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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sábado, 30 de maio de 2015

Benjamim

um dia serei capaz
de me despedir
do medo
de ficar enamorado
pela luz dos teus olhos

hoje ainda é cedo
um tempo de trevas
que tarda em passar

mas é na aurora
que o mistério se esconde

por isso ainda vale a pena esperar

terceiro som

há uma luz que sobe
ao cimo das montanhas
e só tu o sabes
é um segredo bem guardado
que escapa a todos
os que decidem não sair do tédio,
não olhar o mundo
com olhos sempre novos

segunda-feira, 25 de maio de 2015

isto não é um poema (mesmo)

a beleza do mundo
e o que se esconde nas palavras,
caberia tudo aqui

mas isto,
lamento,
não é um poema.
ninguém sabe o que isto é.

corner

que companhia procuras
quando tudo o que encontras
é solidão pelas esquinas?

resta-te subir a uma árvore
e esperar

domingo, 24 de maio de 2015

atlas

de que vale a volta ao mundo
e tantos carimbos num passaporte
se nunca paraste para chorar
com um pôr-do-sol?

sábado, 23 de maio de 2015

ferida fétida

a noite avança
e ainda me dóis demais

ainda magoa
saber que não vais ler estas linhas
ou que não te vão fazer estremecer

isto são só versos de desamor
coisas parvas
como eu sempre

Versos para Flannery O'Connor

virá ainda o dia
em que a dor da fome
se transformará em maré.

(há sempre uma outra fome
que há-de saciar plenamente,
a fome do pão da vida)

os filhos de Deus ainda
esperam palavras de misericórdia.
esses famintos, profeta,
tens de querer saciar.

isto era uma autobiografia

só era preciso
que deixasses o poema
trabalhar em ti

sexta-feira, 22 de maio de 2015

A destruição de Palmira

Não são só rochas que vão
quando as rajadas e as bombas
soarem sobre Palmira.
É a intelligentia mundi
a que julgamos pertencer,
a vida da mãe que percorria o fórum
com o filho pela mão,
a história dos homens
que esculpiram uma cidade
com a força das suas mãos.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

there is a light

Diógenes ainda rompia
pela Acrópole cheia de gente.
Era o meio-dia.
As gentes olhavam
e apontavam-no:
«É o louco».
Tudo o que ele queria
era que a luz ténue e inútil
da sua velha lanterna
lhe apontasse um homem,
um último homem
disposto a morrer de amor.

sábado, 16 de maio de 2015

pirilampos

não há magia alguma
no nome caga-lume
mesmo quando eles
escolhem chocar-me
contra o peito
a meio do passeio nocturno.

houve um tempo
em que me espantava
com a luz dos caga-lumes.
uma diversão mais
a somar à contagem
das matrículas dos autocarros.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

avis in civitate

houvesse ainda crianças
capazes de subir aos prédios
como antigamente às árvores
para observar os ninhos
e aprender uma forma carinhosa
de respeitar os pássaros
e ainda poderíamos
esperar um outro futuro

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Nabucodonosor

virá ainda o dia,
sabemo-lo nas entranhas,
em que o menino
deixará a cova dos leões
para interpretar os sonhos do rei.

nesse dia sorriremos,
cantaremos canções de vitória
com as nossas harpas depositadas
junto aos rios.
virá o tempo de sermos felizes,
o tempo da verdadeira liberdade.

sábado, 9 de maio de 2015

não ames ainda as madrugadas

«Sentinela, que vês na noite? Sentinela, que vês na noite?» 
E a sentinela responde: «Chega a manhã e a noite também.»
Is 21, 11b-12a

o que há de mais apaixonante
na noite escura
em todas as noites escuras
é a hora que se levanta
para anunciar a manhã

essa hora não a esperes sozinho

minarete azul

Que os homens soubessem,
ó Deus,
que o que não cabe no poema
não cabe na oração.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Fotografando Berlim

faz pouco sentido
colorir as imagens
de uma cidade destruída
por anos de bombardeamentos
anos de homens
a ser lobos dos homens
a não ver homens nos homens
a não ser homens

a senhora leva o filho pela mão
e os seus olhos não se elevam
dói demais ver de perto
o que conseguimos destruir

quarta-feira, 6 de maio de 2015

ponto de fuga

hoje decidi partir
em busca do lugar
onde há uma palavra que transforma

a casa é só solidão
desde que a deixaste
e é demasiado penoso
este ofício
de querer ser o mais pequeno dos homens

é pouco mais o que me resta aqui

livro de contas

já não é necessário
aprender uma caligrafia própria
para preencher livros vários
da área da contabilidade
como nas relações
a tecnologia vai tomando o lugar
do artesanato

ontem sonhei que ainda se exigiam
aulas e tratados de caligrafia
para quem escreve versos de amor
e poemas com contabilidade dentro

terça-feira, 5 de maio de 2015

décima noite

quis aprender do teu sorriso matinal
a deixar a minha antiga
obsessão pelas madrugadas

deixaste de me sorrir
continuei a não entender a noite
e tudo o que precede a madrugada

segunda-feira, 4 de maio de 2015

sistema de esgotos

(...) É que os ratos
mudaram-se pra cá, quase todos, e isto é a sério.
JOHN BERRYMAN

a casa ruía, há muito invadida
por ratos e insectos estranhos
e ainda restavam memórias
daquela frase romântica
«o nosso amor cabe todo
no trem, o trem de cozinha da tua avó»
e era muito grande, sim, o trem da avó,
cheio de panelas de qualidade
e tachos apropriados para cozidos a vapor.
o que sei é que me sento numa esquina
da casa e, olhando em volta,
já nada disso interessa.
o trem foi distribuído pelos meus tios,
que se apressaram a vir buscá-lo,
uma herança é uma escola de abutres,
o nosso amor acabou, cabe todo
numa automotora da linha do oeste.
no trem que liga o rio a são paulo
nunca caberá.

dois zero quinze

não me lixem
nem me mintam
o quotidiano transporta
tantas coisas indizíveis
esconde tanto inefável
que não pode ser desvalorizado assim

domingo, 3 de maio de 2015

it's all about the light (luzes ii)

uma luz que vem de dentro
faz estremecer a noite

não abuses demasiado da luz
da tua velha lanterna
quando saíres na entremanhã
em busca de um novo amor