blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Para explicar a sombra das árvores

queria ser a sombra da oliveira
na vida breve de alguém
o tronco firme e seguro
a que os animais se vêm abraçar

uma casa de pedra

uma casa para erguer sobre a rocha,
um pequeno planeta para habitar
com poemas escritos por uma poetisa
que aparece como epifania em sonhos
e parecia tão real que valeu a pena
pesquisar o seu nome num motor de busca,
afinal não existia a poetisa do sonho,
não deixa de valer a pena escrever poemas
onde habitar como num planeta,
fazer deles a casa de pedra
com lírios a guardar a porta
e uma magnólia a crescer livre
no pátio interior
em que descansaremos o coração

domingo, 29 de setembro de 2019

Para explicar o Livro de Zacarias

Não era só Jerusalém,
era o teu coração que um homem
media com um cordel de medir
para erguer um muro em seu redor.
No fundo desejavas isso,
um muro em redor do coração
para proteger das dores e dos medos
e dos múltiplos males de amor
de que acabamos sempre por morrer aos poucos.
Como sempre havia um anjo da guarda
a dizer que não, não deve haver muros
a cercar Jerusalém nem os corações.
Prepara, filho, a alma para a dor
e para as mortes variadas que surgirão
no meio das alegrias que terás
por viver sem protecções de alvenaria
e manter os braços abertos.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

sol no outono

tenho sempre aqui
um mar guardado
para quando precisares

sobre a formação das nuvens

os sinos das igrejas já não tocam nas cidades
mas passava pouco das seis horas da tarde
e era a queda de um homem
e um coração contra as paredes,
de novo um coração esmagado
contra as paredes

amanhã é o dia novo,
talvez saiamos para um passeio no parque
em busca da alegria que se esconde
nas margens do lago onde os patos vivem
sem pensar em corações

desamparo

a noite traz tantas vezes
esta sensação de vazio,
qualquer coisa que falta
e não sei o quê,
tanto por fazer ainda
nos dias que aí vêm,
tanto que vai ficar por ser,
tanto ainda por doer amanhã

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

lâminas contra o cansaço

cai a noite e faço a revisão de vida,
tantos talentos e tantas capacidades
que não servem para nada,
isto de uma vida entregue a todos,
o sentido de missão,
o dinheiro que se perde todos os meses
porque a vocação e o serviço,
quem não vive para servir
não serve para viver,
os princípios e andar de cara erguida
porque não sirvo nem para roubar bancos
e não é certo roubar bancos
como não era certo roubar pilhas na mercearia,
no fundo a inutilidade geral e o cansaço,
ser só mais um inútil cansado
entre todos os inúteis que há no mundo

terça-feira, 24 de setembro de 2019

um carreiro no bosque

não era o canto das aves
nem o ranger das árvores,
era a procura do silêncio absoluto
como anjo em queda de um quarto andar

o lavrador

dorme descansado
enquanto não és capaz de ser levado ao colo
a ver as árvores e as flores
na mata do convento,
enquanto não corres ainda
na margem do rio ao sabor da corrente
e depois ficas quieto
a ouvir os mergulhos das rãs.
boa noite, doce príncipe.

prepara a alma para a demora

como é que se chama o instrumento
que acaba com o medo?
a solidão
a distância
as palavras caladas
a jornada longa de trabalho
as visitas à família
ajudar uma velha a levar as compras
dar prioridade ao carro do lado
agradecer quando param na passadeira de peões,
tudo isso sei que não é.
uma frase qualquer por aí
garantia que esse instrumento era um abraço,
e não sei, juro que não sei,
só sei o medo que tenho do mundo
e dos abraços que ficarão por dar

domingo, 22 de setembro de 2019

final feliz

queria ser um abre-latas
para o teu coração
com massagens nos pés
e versos ditos em francês
com voz baixa e rouca
- tes pieds son très bons,
j'ose à peine imaginer pouvoir les toucher
et effleurer la plante de ses pieds,
j'aimerais faire des bisons aussi, masser, carresser,
J'aimerais aussi les masser,
je te désire mon amour,
je veux toucher chaque centimetre
de tes beaux pieds et leurs faire des bisous -
e não servia de nada,
como sempre,
porque procuravas outra coisa,
não o amor e os passeios de mão dada
pelos caminhos perdidos da serra,
mas uma companhia mais simples
que te acompanhasse em casa
quando vês televisão
e choras com comédias românticas

sábado, 21 de setembro de 2019

assento

senta-te aqui
esperarei contigo
o príncipe que há-de vir
montado num burro de Miranda

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

la chanson noire

perdoa-me, mãe,
por causa do teu exemplo
fui para aqui deixado
a acreditar no amor

fernão pires

queria ser a videira carregada
e pronta para a vindima,
não passo das parras secas
que é preciso tirar da frente
para descobrir as uvas

sûr l'amour

o amor tão simples
como o bebé sonolento no colo,
o silêncio cúmplice na margem
daquele grande rio eufrates,
o pôr do sol vermelho sobre a ponte
visto da outra margem
quando a caminho de uma reunião de trabalho,
e nós sempre tão complicados,
a insistir nos caminhos que doem

terça-feira, 17 de setembro de 2019

andrea doria

a recordação é de um filme em sépia
um homem quieto de pé
na avenida central da cidade
a querer guardar a memória
do sorriso dela quando se encolhia
ao sabor dos elogios
na esplanada de um café dos subúrbios
porque a vida é tão isso
homens solitários de pé
na avenida central da cidade
a tentar conter o naufrágio interior

notas breves sobre o calor

sofro muito com o calor,
mais só com a ausência da ternura
e de tantas coisas que tardam

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

exercícios de estilo

inútil tudo isto de tentar abrir um coração alheio
porque o íntimo de cada um sempre tão impenetrável
a alegria um fármaco que se deseja sempre em doses controladas
a solidão do eremitério uma solução tão mais fácil
quando mesmo aí se rejeita dizer o nome

ultraleve

homens em vôo vagaroso
sobre o mar
contemplam gente solitária
que se senta na areia da praia
a esperar o amor que há-de vir
como o mocho que canta a romper a noite
e não assim, como cão vindo dos infernos
tantas vezes

domingo, 15 de setembro de 2019

uma luz na noite

olhava as minhas mãos
e nelas a demora dos dias
nos calos do trabalho desejava
as mãos de um mártir
umas mãos mais pequenas
capazes do carinho e das festas
mas eram grandes as mãos
prontas para o trabalho do campo
e o ofício de destruir coisas
carregavam a história de uma família
as minhas pobres e inúteis mãos

calças velhas

remexia os bolsos quando estava sozinho
porque a vida sempre qualquer coisa a mais
para deitar no lixo e começar de novo
talvez mais leve da tralha que vamos acumulando
isqueiros e facturas com número de contribuinte
e listas de compras e notas breves sobre o amor
nas costas de um papel de desconto em gasolina
e aquele último aviso de que vinhas mais tarde
deixado no móvel do hall de entrada da casa que partilhámos
e onde já não estou mas que ainda lembro tantas vezes
porque era o futuro dois cães no pátio um gato
a dormir no sofá vermelho da sala
um emprego seguro na repartição de finanças
e a segurança de te dar a mão
no passeio da cidade às quatro horas da tarde
e o amanhã agora outro talvez mais desconhecido
com mais o medo o medo o medo
mas melhor porque mais meu
porque agora eu é que escolho a quem dar a mão
e rejeito o passeio às quatro horas da tarde
porque sujo e com uma memória triste de ti
e porque sempre preferi andar descalço junto ao mar
facto de que nunca quiseste saber

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

da genealogia

Para o Dinis

queixamo-nos tanto de tudo,
que isto passa depressa demais
e fica tanto por fazer,
tenho um caderno para registar os sonhos
e são muito poucos os que se cumprirão,
mas a vida nova vem sempre como milagre,
como ocasião de festa,
para fazer ver que cada sorriso
e cada gesto e cada vez que dizemos amor
vale a pena e compensa tudo,
um sonho cumprido às vezes vale
todos os sonhos do mundo

vimo-los fugir para longe

querias de mim um abraço
e nele a vida toda.
ainda me lembro,
eram as cinco horas da tarde
de um dia de sol e de um vento abafado
em que olhavamos juntos o mar
no alto de uma arriba onde haviam achado dinossauros,
só queria pegar na tua mão
e levar-te a dançar uma canção de amor,
encostar-te a mim durante aqueles
quatro minutos e doze segundos
como se fosse sempre e era

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

bronx sniper

era a madrugada,
ainda o silêncio,
e de repente,
como som violento
de um pneu a rebentar na autoestrada,
dois tiros secos
em cheio num coração.

não sei se o amor é isto,
uma violência qualquer inexplicável
a rasgar o silêncio
e a abrir os corações.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

caught in bad romance

procurava o amor no cimo das árvores
porque o amor tão do céu e não da terra,
falo-vos do amor verdadeiro, que é um caso sério,
a palavra amor às vezes tão gasta
e usada por tudo e por nada, mais por nada,
lembro aquele episódio de um homem romântico,
todos o sabiam assim,
que libertou todo o amor do mundo,
como um sussurro, a quem estava com ele
quando ela vinha aí:
grandes mamas tem a miúda

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

o punhal em chamas

a pergunta como faca cravada
sempre que revês aquele filme
nas noites recorrentes de insónia:
de que te serve saber fazer círculos perfeitos
à mão desarmada
se perdes sempre?

sábado, 7 de setembro de 2019

saíram de casa durante a noite

«ao lado do teu amigo nenhum caminho será longo»
provérbio japonês

isto de rezar com os pés,
uma forma de fortalecer amizades
por entre conversas, silêncios e risos cúmplices
e um convite que surge a partir de palavras não ditas.

o agendar de mais ocasiões para rezar com as mãos,
viagens para só dar a vida,
procurar o último lugar,
como aquele em que me sentei na igreja
quando o padre me veio perguntar se estava escondido,
treinar a atenção e servir.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

notas soltas no bolso

às vezes a vida parada
por conta dos camiões de entulho
que esvaziamos bem dentro do coração
e sufocam,
não deixam lembrar que
errar bonito é o princípio da poesia
e que isto pode ser tudo tão lindo
mesmo quando não rima

terça-feira, 3 de setembro de 2019

sageza

não consigo fugir da exegese
das mensagens e dos textos e das publicações
e bloqueio
porque às vezes os sinais errados que o Senhor envia aos seus servos inúteis
outras o medo, tanto medo,
de que o futuro seja outra coisa
que não isto que para aqui vai

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

photomaton

a luz da lua reflectida no mar
em noites como a de hoje
é como a luz dos teus olhos
e o teu cheiro quando me abraças
e se entranha durante longas horas:
não dá para retratar,
há só uma memória que fica
dentro do coração

mover os montes

quando chegas sozinho
ao cimo da montanha
vês sempre um lugar mais alto
a que precisas de subir

sobre a madrugada

a noite vai entrando
e vem a insónia
a angústia
o medo
a vontade de chorar
os abraços não dados
e um futuro que não quer vir

domingo, 1 de setembro de 2019

o soalho da casa

sentava-me no chão
para decidir construir a casa
sobre os lírios do campo,
a mais linda flor, os lírios

the roots

são estas as raízes a que não dá para fugir:
o vento e os moinhos cravados no peito,
a melodia interior do ranger das velas metálicas
no cimo da pequena colina

terceiro caderno de notas sobre a sede

passavam palavras vagas pela cabeça,
acho que eram em latim,
porta cæli, lux mundi, altare Dei,
mensa, floribus, silentium,
tudo demasiado disperso,
e era a sede de outra coisa que tinha,
a necessidade de outra fonte que buscar,
uma fonte de inspiração mas mais do que isso,
uma fonte para onde partir à noite
e gastar os cinquenta e três minutos que restam aqui,
precisava de palavras no ar
que pudesse pregar ao chão,
que me pudessem prender de novo ao chão