aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.
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domingo, 29 de dezembro de 2019
Há fogo de artifício para os lados do Seixal
quarta-feira, 25 de dezembro de 2019
brufen quatrocentos
versos de natal
segunda-feira, 23 de dezembro de 2019
oratio matutina
sexta-feira, 20 de dezembro de 2019
o auto da espera
quarta-feira, 18 de dezembro de 2019
sahara
manhãs chuvosas
terça-feira, 10 de dezembro de 2019
a queda como dom
passava a vida
a treinar nos outros
a arte nobre
de abraçar o abismo
em que haveria de cair
quarta-feira, 4 de dezembro de 2019
território neutro
quarta-feira, 27 de novembro de 2019
adveniat regnum Tuum
in the top of a tree
segunda-feira, 25 de novembro de 2019
os velhos não querem morrer
das distâncias que criamos
entre a carne que nos constitui
porque estamos tão perto,
separados por só um ecrã,
por só um teclado,
por só uma escrita inteligente
às vezes tão burra,
por só mais uma promessa
feita de forma tão vã
porque saem baratas todas
as promessas por cumprir,
é normal que seja mais fácil
saber da morte daquela prima
que agora estava depositada num asilo
do que da vizinha do lado
que teve um avc no meio da rua
e veio o inem e a guarda republicana
e até o padre que já não a tempo
para o viático
e da família ninguém para lhe dar a mão,
ninguém para chorar e dizer adeus,
talvez à noite um adeus virtual
e as lágrimas de quem lê
comer o livro
enganava os seus discípulos
quando lhes transmitia as suas verdades
e lhes dizia com ar sério
que as palavras salvam e mudam e libertam.
o discípulo dizia pão e mantinha a fome,
dizia árvore e não encontrava abrigo,
dizia abraço e continuava só,
dizia amor e nada,
dizia tantas vezes amor e nada
ciprestes velhos
e passeia vagaroso entre as campas
assim a vida dos desiludidos
vagarosa demais para os milagres
de que a existência insiste em tecer-se
desatenta aos fogos fátuos
que são uma lembrança do medo
que invade até ao fundo
e ao mesmo tempo uma lembrança
do que arde dentro e depois de nós
domingo, 24 de novembro de 2019
Central do Brasil
sexta-feira, 22 de novembro de 2019
empalavrar as moradas
quinta-feira, 21 de novembro de 2019
like a dog from hell
terça-feira, 19 de novembro de 2019
isn
a casa vazia
memórias gastas
de tristeza pelas paredes
dou passos sem nexo
em redor de mim
para constatar que não ficou nada
memória nenhuma do naufrágio
ninguém para lembrar
como acabou esta história
cinco graus
mas o que dói mais é o frio cá dentro,
o gelo que se instalou no coração
como celebração macabra das partidas,
do abandono, dos silêncios
com que decidimos construir isto
que já foi outra coisa,
isto já foi realmente outra coisa.
há por vezes uns fogachos de presença,
um aceno ao longe, uma memória
a despertar brevemente o degelo
mas que rapidamente passa
deixando uns pingos de água fria
e incómoda a escorrer pelo corpo,
um corpo que preferia não o ser mais,
porque o que não é não sofre
segunda-feira, 18 de novembro de 2019
Para explicar os rabiscos numa folha de papel almaço
demasiado grande este esforço
de desenhar uma casa,
o desenho da casa como um parto
demasiado difícil,
as paredes exteriores da casa
como as dores da mulher
e as suas mãos comprimidas
contra os lençóis e as almofadas,
o pátio da casa como o pai,
demasiado medroso para assistir
ao nascimento,
à espera de boas notícias,
o quarto de casal como um coração
que já tem onde repousar,
o quarto das crianças como as almas juntas
a acreditar no futuro.
sexta-feira, 15 de novembro de 2019
quinta-feira, 14 de novembro de 2019
Para explicar o vento
quarta-feira, 13 de novembro de 2019
pelecanus onocrotalus
o pelicano fustiga o peito
e dá-se de alimento aos seus filhos
eis-me aqui de coração na mão
para que te sacies
terça-feira, 12 de novembro de 2019
Pessoa revisitado
que está contido nas cartas de amor
porque nunca leu a série longuíssima
de cartas de desamor e de abandono
que venho acumulando
numa gaveta escura do quarto
que deixei lá atrás
Para explicar o desterro
segunda-feira, 11 de novembro de 2019
Para explicar a espuma dos dias
e as rotinas mesmas dos dias
pagamos as contas da água luz e gás
levamos os filhos à escola
cumprimos os limites de velocidade
respeitamos a vez na fila das finanças
vamos ao centro de saúde ver de uma dor
dor forte no peito que não se explica
seguimos as indicações do chefe
ficamos até mais tarde na repartição
quando há papelada para expedir
mas há um lugar qualquer de adolescência
em que ainda deixámos os afectos
um lugarzinho de conforto
um lugarzinho de recusa
um lugarzinho de egoísmo
um lugarzinho de empatia nula
um lugarzinho de não querer saber dos outros
um lugarzinho de não agradecer
um lugarzinho de não responder
um lugarzinho de não educação
um lugarzinho de não ser ainda
um lugarzinho de não ser nunca
Para explicar os tempos idos
domingo, 10 de novembro de 2019
de cordis
explicação breve
nem tenho coração
sábado, 9 de novembro de 2019
sistema de posicionamento global
quando desistes de ajudas
para ir à descoberta
Para explicar a brevidade
gravada nos muros da cidade:
acreditas na vida antes da morte?
quinta-feira, 7 de novembro de 2019
how to draw a perfect circle
errar ao espelho
a voz das ondas
terça-feira, 5 de novembro de 2019
página quinze do diário de bordo
os lugares vazios
segunda-feira, 4 de novembro de 2019
o portão verde da escola
há uma aluna que me abraça
antes e depois das aulas
dizem que comandada
por um sussurro teu
para me veres sem jeito
como sou sempre
sobre os oitenta quilómetros deixados a oeste
tenho saudades da casa
e saudades do coração
domingo, 3 de novembro de 2019
Para explicar os reinícios
Para explicar o encontro em Jericó
sexta-feira, 1 de novembro de 2019
Para explicar a glória dos Santos
quinta-feira, 31 de outubro de 2019
Para explicar a destruição
Para explicar as palavras vãs
Para explicar o mistério da infância
quarta-feira, 30 de outubro de 2019
Para explicar um passeio no parque
Para explicar a dor
terça-feira, 29 de outubro de 2019
Para explicar as casas em construção
tão perdidos por aí
à procura de um lugar
onde assentar a cabeça
e descansar em paz,
tão perdidos à procura
da pessoa que é esse lugar
que abriga e acalma,
às vezes encontramo-la
e nem damos por isso
e fugimos rua abaixo
porque a alegria assusta mais
que a solidão voluntária
Para explicar o quinto capítulo do Cântico dos Cânticos
Para explicar o exercício da escuta
segunda-feira, 28 de outubro de 2019
Para explicar a suspensão voluntária do juízo
de moedas a rodopiar
sobre o tampo marmóreo
de uma taberna antiga
as nossas vidas em suspenso
à espera da próxima dor
e da alegria que se esconde
nas margens de nós
Para explicar a adolescência
à hora de ir dormir
agarro-me ao ursinho de peluche
que me acompanha desde pequena
e não me abandona nunca
faz sempre o que eu quero
e gosta tanto de mim
e ele segreda-me ao ouvido
que é melhor assim a solidão
do que assumir as rédeas
e o risco de um amanhã novo
da hipótese de que as coisas corram bem
que haja uma companhia que alegra os dias
o meu urso empurra-me para baixo
e eu gosto assim
para quê sonhar?
sexta-feira, 25 de outubro de 2019
Para explicar a distância
Para explicar as moradas
Para explicar as viagens (ii)
terça-feira, 22 de outubro de 2019
Para explicar o desamparo
Para explicar a sede
segunda-feira, 21 de outubro de 2019
Para explicar a pequenez
queria às vezes o dom
de ter uma alma pequenina
como o coração da mãe
quando o seu filho sofre
o dom de um coração que cresce
quando os filhos crescem
e voltam a andar por si
no mundo dos felizes
sexta-feira, 18 de outubro de 2019
Para explicar a queda de um homem
quinta-feira, 17 de outubro de 2019
a partida de emaús
Para explicar as viagens
terça-feira, 15 de outubro de 2019
Para explicar a cor dos prédios
segunda-feira, 14 de outubro de 2019
os frutos da estação
sexta-feira, 11 de outubro de 2019
pedras, ratos & canções de amor
quinta-feira, 10 de outubro de 2019
lost in translation
as escadinhas para o alpendre
que dá acesso à casa
depois a própria casa e as suas divisões
a sala vazia de tudo menos um sofá
e umas garrafas ao canto
a casa de banho abandonada e suja
os lençóis dobrados sobre a cama no quarto
era o silêncio que habitou quem ocupou
aquele lugar
e que deixaram ali como memória
o que lá fomos à procura
estore entreaberto
nasce um dia novo
e é sempre noite em mim,
as moedas perdidas a ramalhar nos bolsos,
um livro de poemas na pasta de couro,
vários cadernos rabiscados a tinta preta,
a possibilidade do amor em suspenso,
as saudades de casa que talvez não saudades de casa,
a memória do conforto de não enfrentar
o que não se conhece,
o horário de trabalho ainda não decorado
num papel já meio amarrotado
e assinado fora da linha,
um abraço apertado à incerteza
e as promessas, tantas, que ficarão por cumprir
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
os castelos altaneiros
há sempre uma palavra ainda por cumprir
escondida nas pedras do buraco grande
da torre do facho
a que ninguém presta grande atenção
porque esse castelo agora tão ao longe
oitenta quilómetros de distância
às pedras com que se erguem
as saudades de casa
de não saber onde e com que pedras
erguer uma casa a que chame minha
o castelo às vezes tão perto do coração
como nunca esperei que fosse acontecer
uma chave de fendas contra a parede
que segredos escondem
os sons que se ouvem pela manhã?
já não os pássaros que cantam
e o barulho dos tractores,
agora uma espécie de gemidos
a sair dos prédios, tremuras,
buzinas ao longe e o som dos carros,
não há os latidos dos cães
nem às vezes o silêncio
com que esperava ainda o amor.
segunda-feira, 7 de outubro de 2019
Para explicar o desconhecido
com as presenças agora mais próximas
e os pequenos milagres que acontecem
para acalmar os batimentos incertos
e afogá-lo, ao medo, bem fundo no tejo
até que seja luz nova
espelhada no mar da palha
a lembrar que amanhã
é sempre outra coisa
que podemos querer melhor
sexta-feira, 4 de outubro de 2019
Para explicar a cor das nuvens
há uma melancolia qualquer
nas nuvens baixas que aparecem
em dias como este,
nuvens como máquinas de pôr a pensar
nas palavras não ditas,
nuvens como gritos dirigidos
às raparigas de jerusalém
quando se está doente de amor,
essa enfermidade que consentimos
mesmo quando faz doer até aos ossos
quinta-feira, 3 de outubro de 2019
fazenda
o que busco é a profundidade das raízes
das videiras velhas agora abandonadas,
como se dali viessem as memórias felizes
de uma infância que há-de voltar
transformada e transportada em outras vidas,
como se dali viesse um segredo,
porque se esconde muita sabedoria
nas vinhas velhas deste mundo,
sobre como descer ao fundo de um coração
que se quer conquistar e ao mesmo tempo
deixar livre como tem de ser sempre
terça-feira, 1 de outubro de 2019
folhas castanhas
enquanto no outono
as folhas caem das árvores
como o pequeno príncipe
na areia do deserto
insisto em olhar para outro lado
um horizonte distante
céu a pôr-se laranja por entre nuvens
já não vermelho
porque o amor
é uma casa que se espera de pé
à espera de uma canção
há uma luz que nunca se apaga,
dizias naquela tarde
em que esperavamos a vida
num banco de jardim encravado entre os prédios.
que não serve de nada a luz,
dizia-te eu, porque isto é escuridão tantas vezes,
não há túneis sequer para terem luzes ao fundo,
é tudo muito bonito e há as flores nos campos
mas não me queres como eu te quero,
sei o que isso dói porque me acontece
estar nesse teu papel.
fomos interrompidos por um velho
que pede um cigarro e lume,
uma luz que nunca se apaga.
segunda-feira, 30 de setembro de 2019
Para explicar a sombra das árvores
queria ser a sombra da oliveira
na vida breve de alguém
o tronco firme e seguro
a que os animais se vêm abraçar
uma casa de pedra
uma casa para erguer sobre a rocha,
um pequeno planeta para habitar
com poemas escritos por uma poetisa
que aparece como epifania em sonhos
e parecia tão real que valeu a pena
pesquisar o seu nome num motor de busca,
afinal não existia a poetisa do sonho,
não deixa de valer a pena escrever poemas
onde habitar como num planeta,
fazer deles a casa de pedra
com lírios a guardar a porta
e uma magnólia a crescer livre
no pátio interior
em que descansaremos o coração
domingo, 29 de setembro de 2019
Para explicar o Livro de Zacarias
Não era só Jerusalém,
era o teu coração que um homem
media com um cordel de medir
para erguer um muro em seu redor.
No fundo desejavas isso,
um muro em redor do coração
para proteger das dores e dos medos
e dos múltiplos males de amor
de que acabamos sempre por morrer aos poucos.
Como sempre havia um anjo da guarda
a dizer que não, não deve haver muros
a cercar Jerusalém nem os corações.
Prepara, filho, a alma para a dor
e para as mortes variadas que surgirão
no meio das alegrias que terás
por viver sem protecções de alvenaria
e manter os braços abertos.
sexta-feira, 27 de setembro de 2019
sobre a formação das nuvens
os sinos das igrejas já não tocam nas cidades
mas passava pouco das seis horas da tarde
e era a queda de um homem
e um coração contra as paredes,
de novo um coração esmagado
contra as paredes
amanhã é o dia novo,
talvez saiamos para um passeio no parque
em busca da alegria que se esconde
nas margens do lago onde os patos vivem
sem pensar em corações
desamparo
a noite traz tantas vezes
esta sensação de vazio,
qualquer coisa que falta
e não sei o quê,
tanto por fazer ainda
nos dias que aí vêm,
tanto que vai ficar por ser,
tanto ainda por doer amanhã
quarta-feira, 25 de setembro de 2019
lâminas contra o cansaço
cai a noite e faço a revisão de vida,
tantos talentos e tantas capacidades
que não servem para nada,
isto de uma vida entregue a todos,
o sentido de missão,
o dinheiro que se perde todos os meses
porque a vocação e o serviço,
quem não vive para servir
não serve para viver,
os princípios e andar de cara erguida
porque não sirvo nem para roubar bancos
e não é certo roubar bancos
como não era certo roubar pilhas na mercearia,
no fundo a inutilidade geral e o cansaço,
ser só mais um inútil cansado
entre todos os inúteis que há no mundo
terça-feira, 24 de setembro de 2019
um carreiro no bosque
não era o canto das aves
nem o ranger das árvores,
era a procura do silêncio absoluto
como anjo em queda de um quarto andar
o lavrador
dorme descansado
enquanto não és capaz de ser levado ao colo
a ver as árvores e as flores
na mata do convento,
enquanto não corres ainda
na margem do rio ao sabor da corrente
e depois ficas quieto
a ouvir os mergulhos das rãs.
boa noite, doce príncipe.
prepara a alma para a demora
como é que se chama o instrumento
que acaba com o medo?
a solidão
a distância
as palavras caladas
a jornada longa de trabalho
as visitas à família
ajudar uma velha a levar as compras
dar prioridade ao carro do lado
agradecer quando param na passadeira de peões,
tudo isso sei que não é.
uma frase qualquer por aí
garantia que esse instrumento era um abraço,
e não sei, juro que não sei,
só sei o medo que tenho do mundo
e dos abraços que ficarão por dar
domingo, 22 de setembro de 2019
final feliz
queria ser um abre-latas
para o teu coração
com massagens nos pés
e versos ditos em francês
com voz baixa e rouca
- tes pieds son très bons,
j'ose à peine imaginer pouvoir les toucher
et effleurer la plante de ses pieds,
j'aimerais faire des bisons aussi, masser, carresser,
J'aimerais aussi les masser,
je te désire mon amour,
je veux toucher chaque centimetre
de tes beaux pieds et leurs faire des bisous -
e não servia de nada,
como sempre,
porque procuravas outra coisa,
não o amor e os passeios de mão dada
pelos caminhos perdidos da serra,
mas uma companhia mais simples
que te acompanhasse em casa
quando vês televisão
e choras com comédias românticas
sábado, 21 de setembro de 2019
quinta-feira, 19 de setembro de 2019
fernão pires
queria ser a videira carregada
e pronta para a vindima,
não passo das parras secas
que é preciso tirar da frente
para descobrir as uvas
sûr l'amour
o amor tão simples
como o bebé sonolento no colo,
o silêncio cúmplice na margem
daquele grande rio eufrates,
o pôr do sol vermelho sobre a ponte
visto da outra margem
quando a caminho de uma reunião de trabalho,
e nós sempre tão complicados,
a insistir nos caminhos que doem
terça-feira, 17 de setembro de 2019
andrea doria
a recordação é de um filme em sépia
um homem quieto de pé
na avenida central da cidade
a querer guardar a memória
do sorriso dela quando se encolhia
ao sabor dos elogios
na esplanada de um café dos subúrbios
porque a vida é tão isso
homens solitários de pé
na avenida central da cidade
a tentar conter o naufrágio interior
notas breves sobre o calor
sofro muito com o calor,
mais só com a ausência da ternura
e de tantas coisas que tardam
segunda-feira, 16 de setembro de 2019
exercícios de estilo
porque o íntimo de cada um sempre tão impenetrável
a alegria um fármaco que se deseja sempre em doses controladas
a solidão do eremitério uma solução tão mais fácil
quando mesmo aí se rejeita dizer o nome
ultraleve
homens em vôo vagaroso
sobre o mar
contemplam gente solitária
que se senta na areia da praia
a esperar o amor que há-de vir
como o mocho que canta a romper a noite
e não assim, como cão vindo dos infernos
tantas vezes
domingo, 15 de setembro de 2019
uma luz na noite
olhava as minhas mãos
e nelas a demora dos dias
nos calos do trabalho desejava
as mãos de um mártir
umas mãos mais pequenas
capazes do carinho e das festas
mas eram grandes as mãos
prontas para o trabalho do campo
e o ofício de destruir coisas
carregavam a história de uma família
as minhas pobres e inúteis mãos
calças velhas
porque a vida sempre qualquer coisa a mais
para deitar no lixo e começar de novo
talvez mais leve da tralha que vamos acumulando
isqueiros e facturas com número de contribuinte
e listas de compras e notas breves sobre o amor
nas costas de um papel de desconto em gasolina
e aquele último aviso de que vinhas mais tarde
deixado no móvel do hall de entrada da casa que partilhámos
e onde já não estou mas que ainda lembro tantas vezes
porque era o futuro dois cães no pátio um gato
a dormir no sofá vermelho da sala
um emprego seguro na repartição de finanças
e a segurança de te dar a mão
no passeio da cidade às quatro horas da tarde
e o amanhã agora outro talvez mais desconhecido
com mais o medo o medo o medo
mas melhor porque mais meu
porque agora eu é que escolho a quem dar a mão
e rejeito o passeio às quatro horas da tarde
porque sujo e com uma memória triste de ti
e porque sempre preferi andar descalço junto ao mar
facto de que nunca quiseste saber
sexta-feira, 13 de setembro de 2019
da genealogia
que isto passa depressa demais
e fica tanto por fazer,
tenho um caderno para registar os sonhos
e são muito poucos os que se cumprirão,
mas a vida nova vem sempre como milagre,
como ocasião de festa,
para fazer ver que cada sorriso
e cada gesto e cada vez que dizemos amor
vale a pena e compensa tudo,
um sonho cumprido às vezes vale
todos os sonhos do mundo
vimo-los fugir para longe
querias de mim um abraço
e nele a vida toda.
ainda me lembro,
eram as cinco horas da tarde
de um dia de sol e de um vento abafado
em que olhavamos juntos o mar
no alto de uma arriba onde haviam achado dinossauros,
só queria pegar na tua mão
e levar-te a dançar uma canção de amor,
encostar-te a mim durante aqueles
quatro minutos e doze segundos
como se fosse sempre e era
quinta-feira, 12 de setembro de 2019
bronx sniper
era a madrugada,
ainda o silêncio,
e de repente,
como som violento
de um pneu a rebentar na autoestrada,
dois tiros secos
em cheio num coração.
não sei se o amor é isto,
uma violência qualquer inexplicável
a rasgar o silêncio
e a abrir os corações.
quarta-feira, 11 de setembro de 2019
caught in bad romance
procurava o amor no cimo das árvores
porque o amor tão do céu e não da terra,
falo-vos do amor verdadeiro, que é um caso sério,
a palavra amor às vezes tão gasta
e usada por tudo e por nada, mais por nada,
lembro aquele episódio de um homem romântico,
todos o sabiam assim,
que libertou todo o amor do mundo,
como um sussurro, a quem estava com ele
quando ela vinha aí:
grandes mamas tem a miúda
segunda-feira, 9 de setembro de 2019
o punhal em chamas
a pergunta como faca cravada
sempre que revês aquele filme
nas noites recorrentes de insónia:
de que te serve saber fazer círculos perfeitos
à mão desarmada
se perdes sempre?
sábado, 7 de setembro de 2019
saíram de casa durante a noite
por entre conversas, silêncios e risos cúmplices
e um convite que surge a partir de palavras não ditas.
procurar o último lugar,
como aquele em que me sentei na igreja
quando o padre me veio perguntar se estava escondido,
treinar a atenção e servir.
sexta-feira, 6 de setembro de 2019
notas soltas no bolso
às vezes a vida parada
por conta dos camiões de entulho
que esvaziamos bem dentro do coração
e sufocam,
não deixam lembrar que
errar bonito é o princípio da poesia
e que isto pode ser tudo tão lindo
mesmo quando não rima
terça-feira, 3 de setembro de 2019
sageza
não consigo fugir da exegese
das mensagens e dos textos e das publicações
e bloqueio
porque às vezes os sinais errados que o Senhor envia aos seus servos inúteis
outras o medo, tanto medo,
de que o futuro seja outra coisa
que não isto que para aqui vai
segunda-feira, 2 de setembro de 2019
photomaton
a luz da lua reflectida no mar
em noites como a de hoje
é como a luz dos teus olhos
e o teu cheiro quando me abraças
e se entranha durante longas horas:
não dá para retratar,
há só uma memória que fica
dentro do coração
mover os montes
quando chegas sozinho
ao cimo da montanha
vês sempre um lugar mais alto
a que precisas de subir
sobre a madrugada
a noite vai entrando
e vem a insónia
a angústia
o medo
a vontade de chorar
os abraços não dados
e um futuro que não quer vir
domingo, 1 de setembro de 2019
o soalho da casa
sentava-me no chão
para decidir construir a casa
sobre os lírios do campo,
a mais linda flor, os lírios
the roots
são estas as raízes a que não dá para fugir:
o vento e os moinhos cravados no peito,
a melodia interior do ranger das velas metálicas
no cimo da pequena colina
terceiro caderno de notas sobre a sede
acho que eram em latim,
porta cæli, lux mundi, altare Dei,
mensa, floribus, silentium,
tudo demasiado disperso,
e era a sede de outra coisa que tinha,
a necessidade de outra fonte que buscar,
uma fonte de inspiração mas mais do que isso,
uma fonte para onde partir à noite
e gastar os cinquenta e três minutos que restam aqui,
precisava de palavras no ar
que pudesse pregar ao chão,
que me pudessem prender de novo ao chão
sexta-feira, 30 de agosto de 2019
sou um ladrão
acordo a meio da noite,
talvez mais um sonho mau,
e abandono a casa
sob o latido dos cães dos vizinhos,
vou à procura de uma bomba de gasolina
ainda aberta para comprar tabaco,
estou disposto a matar de amor,
isso de morrer demasiado gasto,
vamos morrendo aos poucos às vezes,
gritar contra o mundo, chorar nem sei bem porquê,
mas não.
a bomba está aberta, peço um camel soft e um café,
fumo ainda na área de serviço a ver o nascer do sol,
regresso a casa e deito-me.
a canção não terminou,
mesmo quando a vida é depressa demais.
quinta-feira, 29 de agosto de 2019
Nas margens do Salgueiro
tudo rangia na casa velha,
outros diriam que a presença de almas antigas,
o bisavô a ver se a espingarda ainda no mesmo sítio,
mas são só as madeiras velhas do telhado
e talvez ratos a passear nos tectos do primeiro andar,
eram os dias os quentes
e fazia trabalhos de bricolage numa solidão desejada,
pedia que o silêncio fosse o fruto da estação
e era, finalmente a sós
como vai ser sempre
quarta-feira, 21 de agosto de 2019
os cinco minutos centrais de silentium, de Arvo Pärt
tudo o que eu queria era acabar de ler um livro
que anda a meio há dois anos
e uma emigrante francesa com dois garotos
de repente a estabelecer-se demasiado perto
a martelar um chapéu e um guarda-vento
com um seixo que a água transformou durante anos
e alguém deixou o aqui
para as pessoas se aleijarem na areia,
os garotos a falarem uma língua cantada
e a jogar com uma bola pequena
demasiado em cima de mim
e falta-me o silêncio necessário para acabar o livro, talvez mais dois anos
com o livro a meio,
ao fundo o som do mar
como os acordes dissonantes
da canção que não me sai da cabeça
e talvez ajude a, de repente, encontrar um outro silêncio
que dê paz.
terça-feira, 20 de agosto de 2019
a água a alisar seixos pequenos
há um velho a fumar à beira-mar
e não consigo reparar se tem onde deixar a beata
ou se a vai enterrar no chão
ao alcance da boca de crianças
e das mãos de outros velhos que ratam as beatas usadas
ou as engolem, como as crianças.
sigo para o passeio diário de pés na água,
uma rotina para quem detesta as rotinas
mas gosta dos pés na água do mar,
o mar traz sempre boas lembranças
da infância e de outros dias felizes
que estes não são apesar do sol
e de me tentarem convencer que o sol cria dias felizes,
reparo que estes calções da decathlon não têm bolsos,
se um gajo tiver vontade de mijar
tem de pôr as mãos nas ilhargas,
metros à frente um tipo aguarda que o peixe morda a cana
e tem as mãos nas ilhargas e as pernas dentro de água,
ou cruzar os braços e levar uma mão ao queixo,
como se a contemplar o mar sem fim
ou a pensar num assunto sério,
e na verdade todo o caminho é isso,
contemplar o mar sem fim e pensar em assuntos sérios,
desviar a rota das pessoas a fingir que felizes
e olhar para as raparigas como se alguma sorrisse para mim
e nenhuma sorri, a vida segue distraída
como se as pessoas fossem felizes e não são.
sexta-feira, 16 de agosto de 2019
grãos de areia a riscar vidro
é a dor da incerteza da vida
que não dá para transformar em poema,
que talvez quisesse transformar em poema,
mas o poema não é isso, não pode ser isso,
é sempre outro mistério do que isto
de chorar na praia sem porquê
e de voltar sempre aos mesmos insucessos,
às mesmas obsessões, aos mesmos versos dos outros
em que não é consolo nem conforto o que procuro,
uma companhia talvez, uma companhia certamente
porque no fundo do peito cimenta-se a certeza
de acabar sozinho e não saber se é injusto,
de acabar sozinho sem saber se fui eu que escolhi,
de acabar sozinho por isto de andar às voltas cá dentro
a querer justificar tudo e fazer tudo certo
e fazer tudo mal e não saber se faço mesmo tudo mal
e não ter a recompensa mesmo sem a esperar.
isto não é um poema porque os poemas escrevem-se à mão
e hoje não pude fazê-lo,
saí de casa sem o caderno e a caneta,
tentei escrever com os dedos na areia
mas o vento apagou tudo,
talvez isso se tenha transformado num poema,
essa minha vida num poema rabiscado na areia
que o vento leva, parece-me, de norte para sul.
segunda-feira, 5 de agosto de 2019
vanitas vanitatum
era a noite
e depois a manhã
sabias que era hora
de abandonar os poemas
e as inutilidades várias
de que a vida se constrói
interior intimo meo
estávamos para ali sem trocar palavras,
inventavamos umas banalidades quaisquer
para entreter o tempo,
para fingirmos os dois que não sabias,
lá bem no fundo de tudo isto,
que eu iria partir de novo para longe
dois cérebrozinhos
o professor interrompia a aula
para um parêntesis:
os adolescentes deviam deixar
de rabiscar corações nas árvores
e substituí-los por cérebrozinhos,
dois cérebrozinhos de mão dada.
não servem de nada as teorias
ouvidas nas aulas de ética
quando o que sinto é um fastio que não passa
e uma angústia enorme a saltar do peito
domingo, 4 de agosto de 2019
palmeiras e ciprestes
abandono a casa depois do jantar
deixando a mãe em cuidados
pensando que vou namorar
e não vou.
todos os dias paro o carro
na zona de descanso da autoestrada
e fico a olhar para as pessoas que passam
como se fossem felizes
e não são.
eles de mãos bem firmes no volante
a pensar na prestação do carro
que vai cair amanhã na conta
e tira a folga àquelas férias no campo
e elas de mão na cabeça a pensar
que não existe amor para sempre,
ao menos que se aguentem juntos
enquanto durar a prestação do carro,
que ao menos a prestação do carro
fosse para sempre para segurar um amor
segunda-feira, 22 de julho de 2019
ver o mar à noite
leva uma criança pela mão
e não és tu, nem a mulher nem a criança
preocupa-me o vôo nocturno de duas gaivotas
que vejo passar bem por cima de mim,
não sabia que as gaivotas voavam à noite
nem que destino levam.
também não se deve preocupar com isso
e nem deve saber de ti nem do teu amor pelo mar
sexta-feira, 19 de julho de 2019
passar para o papel
a vida às vezes não é saltos de júbilo
és tu diante do cão raivoso
a mexer nos bolsos com as mãos suadas
à procura de algo que entretenha o animal,
um isqueiro já gasto, um talão do multibanco,
uma carta de amor que já nem sabes
porque e para quem escreveste,
um osso de frango ressequido
que guardaste para dar sorte e nunca deu,
tu a rezar para que o cão mude de alvo
e vá embora, às vezes o cão a ir embora
e a nem querer saber de ti
código da prova é o seis três cinco
já não consigo resolver os problemas matemáticos mais simples,
leio y+2=z e penso num lobo selvagem
a dilacerar um pássaro,
talvez um corvo ainda jovem, em putrefação,
não sei calcular a área de um paralelepípedo,
prefiro, como espinho chagado na carne,
lembrar-me da dor da solidão
a arder como mãos gretadas pelo vento marítimo
terça-feira, 16 de julho de 2019
guitarra portuguesa
a sala escurecia, alguém implorava por silêncio,
fechavas os olhos, mãos nos bolsos,
e a timidez de repente escondia-se por baixo da tua voz,
não mais a desconfiança de que todos estão a olhar para ti,
não mais o medo da casa solitária
afastado pelos movimentos do corpo,
não mais os amores que se perdem
e que foste deixando fugir
carpidos nos poemas que cantas
nem sempre sobre os cavalos e a lavoura,
às vezes sobre os beijos não dados e as saudades,
em segredo cantavas as saudades
que havia de ter de ti
quando caísses levemente sobre a terra
quinta-feira, 11 de julho de 2019
a inquietação
já vi morrer um homem.
assisti impotente a tudo
do lado de lá da janela grande
de um autocarro
com destino ao colégio militar.
as mãos nervosas contra a janela,
como se pudesse ajudar,
e depois a mão esquerda
rumo ao bolso esquerdo
para te dizer que estava a ver morrer um homem,
e o coração a desistir de to dizer
porque sei que és sensível a essas coisas
e sofres muito com as dores do mundo.
pensei ligar à minha mãe
e gritar por ajuda,
mas o telefone tocava e ninguém do outro lado.
fiquei para ali deixado
com dores horríveis no peito
e uma convicção profunda a crescer
de que o que me falta
é descobrir um verso
que nos pacifique da inevitabilidade do fim
de tudo isto
segunda-feira, 8 de julho de 2019
uma flor a nascer a oeste
vagueio sozinho
pelos lugares que prometi mostrar-te
como um eremita
entrego-tos no silêncio
das minhas preces
sexta-feira, 5 de julho de 2019
a mágoa
estás tão longe
e dizes não
e tenho frio
e uma dor tão grande
a crescer no peito
tento apertar a dor
e levá-la daqui para o lixo
e não consigo
não há a máquina que eu queria
para me esquecer de ti
e do teu sorriso
e dos teus olhos grandes
e dos teus gestos de ternura
e da tua voz
e de como contas os teus sonhos
não há a máquina que eu queria
para me conformar à solidão
em que vou morrer depressa
quinta-feira, 4 de julho de 2019
quarta-feira, 3 de julho de 2019
bloco de notas do curador ferido
só mais um homem
igual a todos os outros
a calar uma dor enorme
contra o peito
beco do centro
a velha lia o jornal à janela do café
e acompanhava com água das pedras
o som demasiado alto da televisão
enquanto a aldeia passava lá fora
como sentimento forte a arder no peito
na rua os putos passeavam de bicicleta
a ansiar outras paragens
e eu concentrava-me no som metálico
talvez de uma obra mais distante
talvez de alguém a remendar um coração
segunda-feira, 1 de julho de 2019
repudiou-a em segredo
torrei em livros todo o valor
daquela viagem que faríamos de carro
sem destino certo
quando viesse o calor
porque são as palavras
sempre as palavras
que ainda hão-de me salvar
soldadinho de chumbo
os soldados esperavam o inimigo
no cimo da colina
e viam ao longe o mar
e o castelo,
uma hipótese ainda
para a beleza,
e disparavam os canhões
e escondiam-se dos tiros
que como as raparigas lá longe
os fariam morrer de amor.
quinta-feira, 27 de junho de 2019
quarta-feira, 19 de junho de 2019
chove e choras
queria ser em ti o verão
e o sol radioso que ilumina o fim das tardes
e faz sorrir todos os dias
mas tu ainda a estação das chuvas
o tempo de chorar
e sarar as feridas
terça-feira, 18 de junho de 2019
a minha vida amorosa é desinteressante para o nosso jantar
estava demasiado cansado
para ver filmes sobre poesia,
tinha de pôr a mão esquerda
sobre a cabeça para conseguir
ver um filme sobre poesia
em que a rapariga se chamava laura,
penso que o primeiro amor do poeta
que protagonizava o filme,
chamava-se sofia, o meu primeiro amor,
gostava dela nas tardes
sentado no pátio da escola
e ficava só a olhar porque
sempre demasiado fechado para
«amo-te tanto gosto tanto de ti
não sei se já te disseram que és linda»,
há uns dias a sofia na fila das compras
com o marido e uma velha
que penso ser a mãe,
já a não interessar se sou tímido
porque já perdi, perco sempre,
o coração ainda a bater estranho
e os olhos e as mãos a distrair-se numa imitação
de mentos e noutra de tic tac
e o coração não «tic tac» como um relógio,
a bater devagar como um bombo cansado
porque hoje já não sofia,
já não ninguém tantas vezes,
já não saber se vai amar ainda alguém,
se sabe amar ainda alguém,
se algum dia a timidez será rompida
como um tímpano depois do fogo de artifício num feriado
e o «gosto muito de ti»
finalmente «amo-te há muitos anos»,
libertado como o grito das corujas ou
o abrir milagroso dos crisântemos no jardim
nocturnos para guitarra e voz
um grito no meio da noite:
por baixo da alegria aparente
muito cansaço de estar para aqui
a fingir que isto não é solidão
que não há um vazio a angustiar
que não há um poema por escrever
sobre amores impossíveis
vidas impossíveis
caminhos impossíveis
sobre uma beleza que está por ver
segunda-feira, 17 de junho de 2019
salvatio
olhei fixamente os teus olhos
durante duas horas
como se aí aprendesse
a salvar uma vida
aprendi, só, que preciso de olhar mais
e muito mais fundo
domingo, 2 de junho de 2019
sábado, 1 de junho de 2019
as maçãs de eva
enquanto brincava no chão da sala
a avó descascava maçãs
e guardava as cascas no regaço:
um outro nome para o amor,
uma forma de redimir
o gesto da primeira eva
quarta-feira, 29 de maio de 2019
Couve portuguesa e pão de milho de Rio Maior
quando
«oh meu amor leve mais um quilo de cebolas
e meio deste feijão verde da minha horta»
e tu nunca me chamas «meu amor»
quando
«oh meu amor leva-me pela mão
a ver o sol fugir no horizonte»
sexta-feira, 24 de maio de 2019
candeeiros
o vento a levar
o pó do chão e o poema
o vento a querer levar
a possibilidade do amor
a que ainda me agarro
sulfato de cobre
a mulher carrega o pulverizador às costas
como se levasse os filhos
pulveriza as ervas com roundup
e deixa atrás de si um rasto de morte
(eu sou às vezes a erva seca
a que só falta largar o fósforo
para iniciar o incêndio do mundo)
quando leva os filhos às costas
a mulher pulveriza a cidade
com futuro e amor e vida a crescer
sábado, 18 de maio de 2019
a viagem solitária
os meus amigos
pedem às cegonhas
que me acompanhem
em vôo rápido
sobre a estrada
um novo nome
para a companhia
sussurro
em sonhos
dizias-me
que me amas
e eu em sonhos
construía uma casa para nós,
com as minhas próprias mãos,
de tijolo e pedra
e risos e amor
quarta-feira, 8 de maio de 2019
um resto do reino rural
os velhos no largo do coreto
escarravam a vida
desde o fundo das entranhas
e os putos passavam e riam,
não o rapaz raro
que se enojava com os escarros
e o que eles diziam da vida dos velhos,
com poucas alegrias
e cores a angústia e fim de outono,
mágoas regadas a copos de três
e calos nas mãos e torrões de terra
e ainda e sempre a sede,
uma sede insaciável de um amor por vir
terça-feira, 7 de maio de 2019
a vida moderna
a cantar o disco novo do salvador
aqueço uma sopa de agriões
no microondas velho que foi da avó
como em frente ao telemóvel
como se os vídeos me dessem vida
adormeço outra vez no sofá
enquanto dá a primeira telenovela
depois do jornal das oito
e os vizinhos berram uns com os outros
acordo às onze com a tua mensagem de boa noite
ainda a tempo de responder
que não estou pronto para morrer de amor
domingo, 5 de maio de 2019
sobre a ausência
um dia escreverei
sobre o amor
hoje a ausência
a noite escura
o vôo nocturno das corujas
a solidão a abrir pústulas
no canto esquerdo
do coração
sábado, 4 de maio de 2019
sobre o perdão
mais do que o corpo
era a carne que nos unia
naqueles tempos
e foi a ferida aberta
nas entranhas do espírito
que dá carne ao corpo
a fazer germinar a raíz
da alegre reconciliação
o sol da primavera
quando o sol chega
para mudar as cores
da areia e dos tons
com que o mar se veste
sou ainda a ilha longínqua
coberta de nevoeiro
e tu o barco a perder força
contra as ondas
segunda-feira, 15 de abril de 2019
quarta-feira, 10 de abril de 2019
a colecção de pedras
terça-feira, 9 de abril de 2019
mulieris
és o rebuliço o sobressalto
o grito que rompe a noite
a insónia doentia
a respiração ofegante
o ritmo acelerado de um coração
o pensamento obsessivo
a insegurança o medo em mim
porque sei que quanto mais te aproximas
menos me queres
segunda-feira, 1 de abril de 2019
sexta-feira, 4 de janeiro de 2019
corações esmigalhados com a mão
desorganizados como as prateleiras
em casa de uma tia velha,
tanta gente deixada ao acaso
por não sabermos o lugar que ocupa
no mapa dos nossos sentimentos
green windows
uma janela
sem vidros
que não abre
nem fecha
nem protege
dos ventos
nem da brisa
do mar ao longe
na verdade
uma janelita pequena
entre o quarto
e um corredor
uma janela
para lado nenhum