blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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domingo, 29 de dezembro de 2019

Há fogo de artifício para os lados do Seixal

Há anos à procura de um lugar físico,
talvez o deserto,
talvez um oásis de águas frescas,
talvez uma morada assente na rocha,
foi depois de duas horas de conversa e risos
à beira do Tejo
que finalmente entendi
que a minha casa, vá onde for,
serão sempre os meus amigos

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

brufen quatrocentos

é mais fácil acalmar dores de cabeça
que a dor que corrói o peito
à conta da solidão criada
pelos que estão em redor
e não conseguem ver os sinais
que estão no que fica por dizer.
tempos incómodos, estes,
em que as pessoas não entendem
quando estão a falar sozinhas.

versos de natal

faltam sempre palavras
para dizer o milagre da infância
da luz pequenina ao longe
do bebé que chora
a romper o silêncio
com que se constroem as noites

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

oratio matutina

Senhora, ao altar do Teu Filho
trago as mãos sujas e vazias,
as mãos gastas e inúteis,
já sem nada a pedir.

Ponho nas tuas mãos
os segredos escondidos
dos meus amigos,
aquilo que não conseguem pedir.

Para mim já não peço nada,
quero ser a sombra de um homem,
aquele de quem todos se esquecem
menos tu e o Teu Filho a quem me vou dando.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

o auto da espera

tenho a candeia pronta
e a almotolia por perto

só falta acender a chama
para que venha a luz

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

sahara

sussurrava versos soltos
aos ouvidos da mulher
para despertar o oásis
de um sorriso

mas era tudo tão inútil
só despertava um deserto
de grandes pedras negras

manhãs chuvosas

estes dias escuros
como máquinas de fabricar distâncias,
deixam mais longe o amor
e aumentam as saudades de casa
calcadas pela chuva
e as tarefas inúteis por fazer,
trago no bolso um calendário
para me orientar nos dias que aí vêm,
uma espécie de mapa
para me perder entre papéis e lugares,
uma memória de que não é aqui
que deixei o coração,
ando ainda em busca
de onde apostar o coração

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

a queda como dom

à falta de tudo mais
passava a vida
a treinar nos outros
a arte nobre
de abraçar o abismo
em que haveria de cair

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

território neutro

não era numa casa que pensava
quando escrevia casa,
era num lugar outro, diferente,
onde guardar bens pessoais
e dormir algumas noites por semana,
na verdade bem sabia que uma casa
é de outra ordem,
o sítio onde se reclina a cabeça,
se repousa o coração,
se espera o amor que tarda sempre,
se constrói uma catedral de silêncios
e de sorrisos partilhados

amor perfeito

estas feridas
que vês nas minhas mãos
são restos do teu nome
gravados até ao fundo
em mim

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

vácuo

o grito de desespero
cantado no fundo de um poço
só aumenta a solidão

adveniat regnum Tuum

«venha o Teu reino», pedia,
mas o reino tarda,
o céu um lugar demasiado longe
e isto a teimar em ser outra coisa,
um rosário de penas,
uma chaga a arder por dentro

in the top of a tree

subia aos sicómoros
só para ver cair as folhas
em rodopios lentos
para lembrar que é assim a vida
um rodopio lento
rumo ao chão
em que o vento suporta
e a queda é leve
ou empurra e a queda é brusca

o segredo da arte de viver
é saber conter as quedas
e suportar as dores do mundo

uma voz ao longe

o que ensurdece
não é o silêncio
mas a ausência

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

os velhos não querem morrer

nestes tempos de distância,
das distâncias que criamos
entre a carne que nos constitui
porque estamos tão perto,
separados por só um ecrã,
por só um teclado,
por só uma escrita inteligente
às vezes tão burra,
por só mais uma promessa
feita de forma tão vã
porque saem baratas todas
as promessas por cumprir,
é normal que seja mais fácil
saber da morte daquela prima
que agora estava depositada num asilo
do que da vizinha do lado
que teve um avc no meio da rua
e veio o inem e a guarda republicana
e até o padre que já não a tempo
para o viático
e da família ninguém para lhe dar a mão,
ninguém para chorar e dizer adeus,
talvez à noite um adeus virtual
e as lágrimas de quem lê

comer o livro

um antigo mestre oriental
enganava os seus discípulos
quando lhes transmitia as suas verdades
e lhes dizia com ar sério
que as palavras salvam e mudam e libertam.

o discípulo dizia pão e mantinha a fome,
dizia árvore e não encontrava abrigo,
dizia abraço e continuava só,
dizia amor e nada,
dizia tantas vezes amor e nada

ciprestes velhos

como um gato que vive num cemitério
e passeia vagaroso entre as campas
assim a vida dos desiludidos
vagarosa demais para os milagres
de que a existência insiste em tecer-se
desatenta aos fogos fátuos
que são uma lembrança do medo
que invade até ao fundo
e ao mesmo tempo uma lembrança
do que arde dentro e depois de nós

domingo, 24 de novembro de 2019

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

empalavrar as moradas

o cão tranquilo roía um osso
aos pés do seu dono
enquanto esteve mastigava um livro,
o homem alimentava-se de palavras
porque nelas tantas vezes
o que a vida teima em não dar:
o amor verdadeiro,
o conforto do aconchego,
o abraço que acalma o medo,
a luz que guia e ilumina os caminhos,
as estradas que se abrem com destino,
a presença que serena a dor de estar só,
uma salvação possível que se pode construir
com as próprias mãos,
a fé de que ainda daremos as mãos
ao pôr do sol de um dia bom

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

like a dog from hell

esperar uma palavra,
só uma palavra,
como quem espera pela vida,
e a vida não vem,
teima em passar ao redor
como um animal a farejar a presa
ainda não enfraquecida

terça-feira, 19 de novembro de 2019

isn

percorro silencioso
a casa vazia

memórias gastas
de tristeza pelas paredes

dou passos sem nexo
em redor de mim

para constatar que não ficou nada
memória nenhuma do naufrágio

ninguém para lembrar
como acabou esta história

cinco graus

há o frio lá fora e o vento que corta
mas o que dói mais é o frio cá dentro,
o gelo que se instalou no coração
como celebração macabra das partidas,
do abandono, dos silêncios
com que decidimos construir isto
que já foi outra coisa,
isto já foi realmente outra coisa.
há por vezes uns fogachos de presença,
um aceno ao longe, uma memória
a despertar brevemente o degelo
mas que rapidamente passa
deixando uns pingos de água fria
e incómoda a escorrer pelo corpo,
um corpo que preferia não o ser mais,
porque o que não é não sofre

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Para explicar os rabiscos numa folha de papel almaço

Para Manuel António Pina

demasiado grande este esforço
de desenhar uma casa,
o desenho da casa como um parto
demasiado difícil,
as paredes exteriores da casa
como as dores da mulher
e as suas mãos comprimidas
contra os lençóis e as almofadas,
o pátio da casa como o pai,
demasiado medroso para assistir
ao nascimento,
à espera de boas notícias,
o quarto de casal como um coração
que já tem onde repousar,
o quarto das crianças como as almas juntas
a acreditar no futuro.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Para explicar o vento

ao contrário da nau catrineta
que tinha tanto que contar
não tenho nada a dizer,
semeaste-me milhões de silêncios,
hoje sou o seu dedicado pastor

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

pelecanus onocrotalus

segundo uma lenda antiga
o pelicano fustiga o peito
e dá-se de alimento aos seus filhos

eis-me aqui de coração na mão
para que te sacies

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Pessoa revisitado

o poeta só falava do ridículo
que está contido nas cartas de amor
porque nunca leu a série longuíssima
de cartas de desamor e de abandono
que venho acumulando
numa gaveta escura do quarto
que deixei lá atrás

Para explicar o desterro

tenho-me para aqui deixado
a transportar as saudades
dos teus lábios
e do sorriso que me lançaste
quando parti de ti

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Para explicar a espuma dos dias

saímos diariamente para o trabalho
e as rotinas mesmas dos dias
pagamos as contas da água luz e gás
levamos os filhos à escola
cumprimos os limites de velocidade
respeitamos a vez na fila das finanças
vamos ao centro de saúde ver de uma dor
dor forte no peito que não se explica
seguimos as indicações do chefe
ficamos até mais tarde na repartição
quando há papelada para expedir
mas há um lugar qualquer de adolescência
em que ainda deixámos os afectos

um lugarzinho de conforto
um lugarzinho de recusa
um lugarzinho de egoísmo
um lugarzinho de empatia nula
um lugarzinho de não querer saber dos outros
um lugarzinho de não agradecer
um lugarzinho de não responder
um lugarzinho de não educação
um lugarzinho de não ser ainda
um lugarzinho de não ser nunca

Para explicar os tempos idos

Fala-se hoje de amor
como antes se bebia água das fontes,
perde-se espaço para outras palavras,
amizade, alegria, esperança,
os sorrisos, uma gargalhada solta,
a mesa farta sem hora de fechar a refeição,
também o ódio, o desespero, a solidão,
as porradas da vida, a fuga,
a partida com rumo incerto,
as saudades de casa,
não sentir a casa como minha,
as saudades da casa que vou deixando,
os afectos de que vamos desistindo
todos os dias e nas noites de insónia,
cabe tanto de tudo isto quando dizemos amor
sem querer dizer amor,
já gastámos as palavras, dizia o poeta,
e pelos vistos mantemos o vício de as gastar,
talvez porque do mundo se pode fazer uma ficção,
esperar por príncipes, princesas,
a pessoa perfeita que não há,
e toda a ficção é amável,
mas das palavras não:
a palavra angústia continuará sempre
a transportar as dores do meu mundo,
é talvez isso que expressamos
ao querer falar de amor

domingo, 10 de novembro de 2019

de cordis

Pois, onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração.
Mt 6, 21

explicação breve
do jogo da vida:
não tenho tesouro
nem tenho coração

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

how to draw a perfect circle

a vida não são círculos perfeitos,
não sei fazer círculos perfeitos
à mão desarmada,
tenho mãos inúteis para as artes visuais,
o corpo em geral inútil para a arte de viver,
dentro do corpo um coração inútil
para merecer o dom do amor,
dentro da cabeça um cérebro inútil,
incapaz de ideias que salvem a humanidade,
que salvem ao menos uma pessoa,
entro na vida pedindo tantas licenças
e já derrotado por tudo isto
de não saber desenhar círculos perfeitos
e sentir que se soubesse
perdia sempre ao jogo do galo

errar ao espelho

como homens no cimo de árvores,
como uma gaivota longe do mar,
como os dias claros em que se vê a lua,
como o frio cortante sob o sol de inverno,
como o olhar de um mendigo à procura do pão,
como a ternura do amador diante da amada,
como a distância que separa os corações,
como um solo de guitarra num disco dos smiths,
como uma luz ao fundo a guiar os caminhos,
como um silêncio a acalmar a dor
ou um abraço a calar os medos,
como os erros bonitos que são o princípio de tudo isto

a voz das ondas

o mar batia contra as paredes da casa,
uma violência nova a cada onda,
lá dentro um homem a tentar dormir,
encolhia-se na cama a querer conter o medo,
não eram só as ondas que assustavam,
era a solidão a bater contra o coração
e o desejo de um silêncio absoluto
que calasse as ondas e o medo

terça-feira, 5 de novembro de 2019

página quinze do diário de bordo

hoje é um dia de sol,
para nos distrair da viagem
feita de dias iguais

os lugares vazios

o desejo era jogar o coração
como uma ficha de póquer,
mas onde o repousar?

há por aí tantos baldios,
lugares à espera de nós,
erva a crescer livre
e uma tramangueira incómoda
no meio da fazenda abandonada,
com que olhos ver o terreno limpo,
com que mãos erguer a casa
que chamaremos a nossa casa,
onde poderemos reclinar a cabeça?

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

o portão verde da escola

todas as segundas-feiras
há uma aluna que me abraça
antes e depois das aulas

dizem que comandada
por um sussurro teu
para me veres sem jeito
como sou sempre

sobre os oitenta quilómetros deixados a oeste

deixei o coração na minha casa
tenho saudades da casa
e saudades do coração

domingo, 3 de novembro de 2019

Para explicar os reinícios

há sempre uma angústia contida
no acto de recomeçar uma tarefa,
é mais fácil a segurança de adiar,
abandonar a tarefa no seu tempo,
é mais fácil desistir dos encontros,
convencermo-nos que é bom assim,
que interessa é gostar de nós
cada um de si, bem entendido,
que os outros vêm com um defeito qualquer,
que são o inferno o mal a dor
e nós não, nós a virtude o bem
a alegria de uma noite descansada
a ver televisão sem companhia,
no fim de tudo a solidão dói na mesma
e contradiz a autoajuda do mundo

Para explicar o encontro em Jericó

Zaqueu no sicómoro é o fruto da nova estação
Santo Ambrósio

escondi-me no cimo da árvore
e no meio da turba
o teu olhar de amor
voltou-se para mim

chamaste pelo meu nome
e estremeci por dentro
porque as vidas não ficam iguais
quando o amor nos olha

vendi tudo a casa os bens
as seguranças que acumulei
e segui-Te a Ti
e ao amor que me tens

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Para explicar a glória dos Santos

Raquel chorava os seus filhos,
tu não precisas de os chorar,
sabes que eles estão lá
onde as túnicas são brancas
porque lavadas no sangue do Cordeiro
e onde tudo é Amor,
e por isso os teus filhos estão aqui,
contigo, em ti.

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Para explicar a destruição

de mim acabarás por levar tudo,
a casa, a vida tranquila, a coragem de sentir,
não levarás o direito de dizer e pensar
o que eu quiser

Para explicar as palavras vãs

quando dizia amor
era de amor mesmo que falava,
o coração em desacerto,
a incerteza,
a dor, às vezes,
as palavras que não chegam,
a vida entregue,
o tanto que ficamos longe
sempre

do amor dizemos muito mais do que devemos
quando ele é apenas acto e presença

Para explicar o mistério da infância

o bebé que adormece no colo
como gota de água que rega
as folhas que crescem
nas margens do coração

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Para explicar um passeio no parque

sento-me naquele banco de jardim
à espera dos milagres quotidianos
que fazem qualquer coisa estalar
por dentro de nós,
a vida passa vagarosa
como o velho de bengala
a passar defronte
caminhando para a vacina da gripe,
peço outra vez o dom
de cair devagar como as folhas dos plátanos

Para explicar a dor

um cavalo morto nas margens do nilo,
o grito de um mártir ao morrer,
os olhos da mulher a quem levaram um filho,
a inutilidade dos corações
que sofrem por amor,
o mais nobre sentimento são

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Para explicar as casas em construção

tão à toa, nós, por vezes,
tão perdidos por aí
à procura de um lugar
onde assentar a cabeça
e descansar em paz,
tão perdidos à procura
da pessoa que é esse lugar
que abriga e acalma,
às vezes encontramo-la
e nem damos por isso
e fugimos rua abaixo
porque a alegria assusta mais
que a solidão voluntária

Para explicar o quinto capítulo do Cântico dos Cânticos

Fui abrir ao meu amado e o meu amado já tinha desaparecido. Fora de mim, corro atrás das suas palavras; procuro e não o encontro, chamo e não me responde.
Ct 5, 6

nestes tempos virtuais
encontrarás o amado
numa sala de chat

na vida de carne e osso
está sempre em fuga
do portão que guarda a tua casa

Para explicar o exercício da escuta

do amor já não espero nada,
vou-me forçando à fé nos milagres
que constroem a sucessão dos dias,
aguardo como cão deitado
aos pés do dono que assiste
sonolento à novela das nove
pela vida que passa depressa demais,
e peço uma turbulência suportável

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Para explicar a suspensão voluntária do juízo

como som metálico
de moedas a rodopiar
sobre o tampo marmóreo
de uma taberna antiga

as nossas vidas em suspenso
à espera da próxima dor
e da alegria que se esconde
nas margens de nós

Para explicar a adolescência

quando apago o candeeiro do quarto
à hora de ir dormir
agarro-me ao ursinho de peluche
que me acompanha desde pequena
e não me abandona nunca
faz sempre o que eu quero
e gosta tanto de mim
e ele segreda-me ao ouvido
que é melhor assim a solidão
do que assumir as rédeas
e o risco de um amanhã novo
da hipótese de que as coisas corram bem
que haja uma companhia que alegra os dias
o meu urso empurra-me para baixo
e eu gosto assim
para quê sonhar?

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Para explicar a distância

vesti as saudades que fui acumulando,
já não há o teu cheiro bom na minha pele
e os abraços que dávamos ao pôr do sol
junto ao cais onde os velhos
desenleavam as redes.
despi as dores que me consumiram
ao longo destes tantos anos
e agora ando assim,
agasalhado entre o alívio e a ternura
das lembranças azuis que ficam
do céu, do mar e do teu sorriso.

Para explicar as moradas

Havia um letreiro à porta da casa
"Deus não mora aqui",
as pessoas passavam
e era-lhes indiferente o letreiro,
Deus habita os corações
de quem O deseja.

Na casa ao lado um letreiro também,
"O amor não mora aqui",
e as pessoas passavam
e seguiam dolorosas,
que casa se ergue sem o amor?

Para explicar as viagens (ii)

Há viagens exteriores demasiado longas
que ensinam a esperar
pelas viagens interiores
que ficam sempre inacabadas

como no poema
vamos morrer inacabados

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Para explicar a arte da escuta

a água do mar
a bater no íntimo
do teu coração

não ouves?

Para explicar o som

um poema
como um grito
num poço de vácuo

Para explicar o desamparo

às vezes a saudade,
às vezes uma apatia inexplicável,
às vezes a ausência,
às vezes um bocadinho livre
sentado no banco do carro
a ver passar a vida dos outros,
às vezes o medo do que há-de vir
porque é o desconhecido,
às vezes a luz do sol contra os vidros do quarto,
às vezes a solidão,
às vezes o saber de tantas companhias ao longe,
às vezes os silêncios habitados,
tantas casas para tantos silêncios,
às vezes nada a dizer,
não há mais nada a dizer

Para explicar a sede

sabemos que corre um rio
por dentro de nós

só não sabemos para onde
nem os sonhos que leva

a vida tantas vezes só isto
aprender a contemplar as águas
e a descobrir a paz nos ruídos das correntes

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Para explicar a pequenez

Para a Paula

queria às vezes o dom
de ter uma alma pequenina
como o coração da mãe
quando o seu filho sofre

o dom de um coração que cresce
quando os filhos crescem
e voltam a andar por si
no mundo dos felizes

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Para explicar a queda de um homem

O mundo está cheio
de homens em queda
como Paulo a cair do cavalo
na verdade a cair no fundo de si
na verdade uma mulher a cair
da altura de um prédio de seis andares
continuando viva com as cicatrizes
e as dores do passado e dos amores que se perdem
pelos quais se força a não chorar
como no poema

Precisamos da poesia
para nos salvar da queda
para ser a mão que ampara
o braço que ajuda a reerguer
o corpo inteiro que abraça
e cura as feridas
a beleza que traz brilho
ao fundo do olhar
e ilumina de novo o mundo

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

a partida de emaús

o que havemos de fazer
quando o coração fica em chamas?
com que amor
calar esse fogo?

Para explicar as viagens

os homens são uma máquina de viagens
interiores e exteriores
por milhões de mundos

há viagens que doem
e que os homens rejeitam
as que levam ao fundo de si

há viagens pela alegria
e que os homens rejeitam
as que começam pelo desconhecido

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Para explicar a cor dos prédios

há uma mulher sentada à sombra das árvores
num banco de jardim a ver passar os dias,
olho a mulher do fundo da solidão
que tantas vezes deixo que me abrace,
e no rosto há tantas rugas como nas árvores
de que queria saber ao menos o nome,
nunca tive tempo para estudar a flora
que irrompe livre dos passeios da cidade.
da mulher também não sei o nome
nem a vida que lhe fez as rugas,
ainda não é hoje que vou saber
porque o relógio não se cansa de dar as meias horas
e sou chamado, novamente, pela rotina dos dias

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

os frutos da estação

quando vêm as primeiras chuvas
há um cheiro a terra e, de algum modo,
à infância que ficou lá entre as fazendas e as vides,
as primeiras chuvas trazem o milagre
de uma magnólia a florir
de dentro para fora
como quando algo novo floresce num coração

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

pedras, ratos & canções de amor

havia uma palavra persistente
dentro da cabeça
e o esforço para a tentar mandar embora,
era a palavra incerto,
e o incerto tantas vezes dor,
outras vergonha,
outras medo,
outras a projecção do fracasso
que antecede o que está para vir,
porque o não,
porque a rejeição talvez,
porque a pequenez da minha alma,
porque as complicações da vida.

na cama à noite acontecia a palavra incerto
descansar abraçada à palavra coração
que sempre a acalma

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

lost in translation

não era já o muro o quintal relvado
as escadinhas para o alpendre
que dá acesso à casa
depois a própria casa e as suas divisões
a sala vazia de tudo menos um sofá
e umas garrafas ao canto
a casa de banho abandonada e suja
os lençóis dobrados sobre a cama no quarto
era o silêncio que habitou quem ocupou
aquele lugar
e que deixaram ali como memória
o que lá fomos à procura

estore entreaberto

nasce um dia novo
e é sempre noite em mim,
as moedas perdidas a ramalhar nos bolsos,
um livro de poemas na pasta de couro,
vários cadernos rabiscados a tinta preta,
a possibilidade do amor em suspenso,
as saudades de casa que talvez não saudades de casa,
a memória do conforto de não enfrentar
o que não se conhece,
o horário de trabalho ainda não decorado
num papel já meio amarrotado
e assinado fora da linha,
um abraço apertado à incerteza
e as promessas, tantas, que ficarão por cumprir

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

os castelos altaneiros

há sempre uma palavra ainda por cumprir
escondida nas pedras do buraco grande
da torre do facho
a que ninguém presta grande atenção
porque esse castelo agora tão ao longe
oitenta quilómetros de distância
às pedras com que se erguem
as saudades de casa
de não saber onde e com que pedras
erguer uma casa a que chame minha
o castelo às vezes tão perto do coração
como nunca esperei que fosse acontecer

uma chave de fendas contra a parede

que segredos escondem
os sons que se ouvem pela manhã?
já não os pássaros que cantam
e o barulho dos tractores,
agora uma espécie de gemidos
a sair dos prédios, tremuras,
buzinas ao longe e o som dos carros,
não há os latidos dos cães
nem às vezes o silêncio
com que esperava ainda o amor.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Para explicar o desconhecido

regar o medo que a incerteza traz
com as presenças agora mais próximas
e os pequenos milagres que acontecem
para acalmar os batimentos incertos
e afogá-lo, ao medo, bem fundo no tejo
até que seja luz nova
espelhada no mar da palha
a lembrar que amanhã
é sempre outra coisa
que podemos querer melhor

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Para explicar a cor das nuvens

há uma melancolia qualquer
nas nuvens baixas que aparecem
em dias como este,
nuvens como máquinas de pôr a pensar
nas palavras não ditas,
nuvens como gritos dirigidos
às raparigas de jerusalém
quando se está doente de amor,
essa enfermidade que consentimos
mesmo quando faz doer até aos ossos

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

fazenda

o que busco é a profundidade das raízes
das videiras velhas agora abandonadas,
como se dali viessem as memórias felizes
de uma infância que há-de voltar
transformada e transportada em outras vidas,
como se dali viesse um segredo,
porque se esconde muita sabedoria
nas vinhas velhas deste mundo,
sobre como descer ao fundo de um coração
que se quer conquistar e ao mesmo tempo
deixar livre como tem de ser sempre

terça-feira, 1 de outubro de 2019

folhas castanhas

enquanto no outono
as folhas caem das árvores
como o pequeno príncipe
na areia do deserto
insisto em olhar para outro lado
um horizonte distante
céu a pôr-se laranja por entre nuvens
já não vermelho
porque o amor
é uma casa que se espera de pé

à espera de uma canção

há uma luz que nunca se apaga,
dizias naquela tarde
em que esperavamos a vida
num banco de jardim encravado entre os prédios.
que não serve de nada a luz,
dizia-te eu, porque isto é escuridão tantas vezes,
não há túneis sequer para terem luzes ao fundo,
é tudo muito bonito e há as flores nos campos
mas não me queres como eu te quero,
sei o que isso dói porque me acontece
estar nesse teu papel.
fomos interrompidos por um velho
que pede um cigarro e lume,
uma luz que nunca se apaga.

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Para explicar a sombra das árvores

queria ser a sombra da oliveira
na vida breve de alguém
o tronco firme e seguro
a que os animais se vêm abraçar

uma casa de pedra

uma casa para erguer sobre a rocha,
um pequeno planeta para habitar
com poemas escritos por uma poetisa
que aparece como epifania em sonhos
e parecia tão real que valeu a pena
pesquisar o seu nome num motor de busca,
afinal não existia a poetisa do sonho,
não deixa de valer a pena escrever poemas
onde habitar como num planeta,
fazer deles a casa de pedra
com lírios a guardar a porta
e uma magnólia a crescer livre
no pátio interior
em que descansaremos o coração

domingo, 29 de setembro de 2019

Para explicar o Livro de Zacarias

Não era só Jerusalém,
era o teu coração que um homem
media com um cordel de medir
para erguer um muro em seu redor.
No fundo desejavas isso,
um muro em redor do coração
para proteger das dores e dos medos
e dos múltiplos males de amor
de que acabamos sempre por morrer aos poucos.
Como sempre havia um anjo da guarda
a dizer que não, não deve haver muros
a cercar Jerusalém nem os corações.
Prepara, filho, a alma para a dor
e para as mortes variadas que surgirão
no meio das alegrias que terás
por viver sem protecções de alvenaria
e manter os braços abertos.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

sol no outono

tenho sempre aqui
um mar guardado
para quando precisares

sobre a formação das nuvens

os sinos das igrejas já não tocam nas cidades
mas passava pouco das seis horas da tarde
e era a queda de um homem
e um coração contra as paredes,
de novo um coração esmagado
contra as paredes

amanhã é o dia novo,
talvez saiamos para um passeio no parque
em busca da alegria que se esconde
nas margens do lago onde os patos vivem
sem pensar em corações

desamparo

a noite traz tantas vezes
esta sensação de vazio,
qualquer coisa que falta
e não sei o quê,
tanto por fazer ainda
nos dias que aí vêm,
tanto que vai ficar por ser,
tanto ainda por doer amanhã

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

lâminas contra o cansaço

cai a noite e faço a revisão de vida,
tantos talentos e tantas capacidades
que não servem para nada,
isto de uma vida entregue a todos,
o sentido de missão,
o dinheiro que se perde todos os meses
porque a vocação e o serviço,
quem não vive para servir
não serve para viver,
os princípios e andar de cara erguida
porque não sirvo nem para roubar bancos
e não é certo roubar bancos
como não era certo roubar pilhas na mercearia,
no fundo a inutilidade geral e o cansaço,
ser só mais um inútil cansado
entre todos os inúteis que há no mundo

terça-feira, 24 de setembro de 2019

um carreiro no bosque

não era o canto das aves
nem o ranger das árvores,
era a procura do silêncio absoluto
como anjo em queda de um quarto andar

o lavrador

dorme descansado
enquanto não és capaz de ser levado ao colo
a ver as árvores e as flores
na mata do convento,
enquanto não corres ainda
na margem do rio ao sabor da corrente
e depois ficas quieto
a ouvir os mergulhos das rãs.
boa noite, doce príncipe.

prepara a alma para a demora

como é que se chama o instrumento
que acaba com o medo?
a solidão
a distância
as palavras caladas
a jornada longa de trabalho
as visitas à família
ajudar uma velha a levar as compras
dar prioridade ao carro do lado
agradecer quando param na passadeira de peões,
tudo isso sei que não é.
uma frase qualquer por aí
garantia que esse instrumento era um abraço,
e não sei, juro que não sei,
só sei o medo que tenho do mundo
e dos abraços que ficarão por dar

domingo, 22 de setembro de 2019

final feliz

queria ser um abre-latas
para o teu coração
com massagens nos pés
e versos ditos em francês
com voz baixa e rouca
- tes pieds son très bons,
j'ose à peine imaginer pouvoir les toucher
et effleurer la plante de ses pieds,
j'aimerais faire des bisons aussi, masser, carresser,
J'aimerais aussi les masser,
je te désire mon amour,
je veux toucher chaque centimetre
de tes beaux pieds et leurs faire des bisous -
e não servia de nada,
como sempre,
porque procuravas outra coisa,
não o amor e os passeios de mão dada
pelos caminhos perdidos da serra,
mas uma companhia mais simples
que te acompanhasse em casa
quando vês televisão
e choras com comédias românticas

sábado, 21 de setembro de 2019

assento

senta-te aqui
esperarei contigo
o príncipe que há-de vir
montado num burro de Miranda

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

la chanson noire

perdoa-me, mãe,
por causa do teu exemplo
fui para aqui deixado
a acreditar no amor

fernão pires

queria ser a videira carregada
e pronta para a vindima,
não passo das parras secas
que é preciso tirar da frente
para descobrir as uvas

sûr l'amour

o amor tão simples
como o bebé sonolento no colo,
o silêncio cúmplice na margem
daquele grande rio eufrates,
o pôr do sol vermelho sobre a ponte
visto da outra margem
quando a caminho de uma reunião de trabalho,
e nós sempre tão complicados,
a insistir nos caminhos que doem

terça-feira, 17 de setembro de 2019

andrea doria

a recordação é de um filme em sépia
um homem quieto de pé
na avenida central da cidade
a querer guardar a memória
do sorriso dela quando se encolhia
ao sabor dos elogios
na esplanada de um café dos subúrbios
porque a vida é tão isso
homens solitários de pé
na avenida central da cidade
a tentar conter o naufrágio interior

notas breves sobre o calor

sofro muito com o calor,
mais só com a ausência da ternura
e de tantas coisas que tardam

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

exercícios de estilo

inútil tudo isto de tentar abrir um coração alheio
porque o íntimo de cada um sempre tão impenetrável
a alegria um fármaco que se deseja sempre em doses controladas
a solidão do eremitério uma solução tão mais fácil
quando mesmo aí se rejeita dizer o nome

ultraleve

homens em vôo vagaroso
sobre o mar
contemplam gente solitária
que se senta na areia da praia
a esperar o amor que há-de vir
como o mocho que canta a romper a noite
e não assim, como cão vindo dos infernos
tantas vezes

domingo, 15 de setembro de 2019

uma luz na noite

olhava as minhas mãos
e nelas a demora dos dias
nos calos do trabalho desejava
as mãos de um mártir
umas mãos mais pequenas
capazes do carinho e das festas
mas eram grandes as mãos
prontas para o trabalho do campo
e o ofício de destruir coisas
carregavam a história de uma família
as minhas pobres e inúteis mãos

calças velhas

remexia os bolsos quando estava sozinho
porque a vida sempre qualquer coisa a mais
para deitar no lixo e começar de novo
talvez mais leve da tralha que vamos acumulando
isqueiros e facturas com número de contribuinte
e listas de compras e notas breves sobre o amor
nas costas de um papel de desconto em gasolina
e aquele último aviso de que vinhas mais tarde
deixado no móvel do hall de entrada da casa que partilhámos
e onde já não estou mas que ainda lembro tantas vezes
porque era o futuro dois cães no pátio um gato
a dormir no sofá vermelho da sala
um emprego seguro na repartição de finanças
e a segurança de te dar a mão
no passeio da cidade às quatro horas da tarde
e o amanhã agora outro talvez mais desconhecido
com mais o medo o medo o medo
mas melhor porque mais meu
porque agora eu é que escolho a quem dar a mão
e rejeito o passeio às quatro horas da tarde
porque sujo e com uma memória triste de ti
e porque sempre preferi andar descalço junto ao mar
facto de que nunca quiseste saber

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

da genealogia

Para o Dinis

queixamo-nos tanto de tudo,
que isto passa depressa demais
e fica tanto por fazer,
tenho um caderno para registar os sonhos
e são muito poucos os que se cumprirão,
mas a vida nova vem sempre como milagre,
como ocasião de festa,
para fazer ver que cada sorriso
e cada gesto e cada vez que dizemos amor
vale a pena e compensa tudo,
um sonho cumprido às vezes vale
todos os sonhos do mundo

vimo-los fugir para longe

querias de mim um abraço
e nele a vida toda.
ainda me lembro,
eram as cinco horas da tarde
de um dia de sol e de um vento abafado
em que olhavamos juntos o mar
no alto de uma arriba onde haviam achado dinossauros,
só queria pegar na tua mão
e levar-te a dançar uma canção de amor,
encostar-te a mim durante aqueles
quatro minutos e doze segundos
como se fosse sempre e era

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

bronx sniper

era a madrugada,
ainda o silêncio,
e de repente,
como som violento
de um pneu a rebentar na autoestrada,
dois tiros secos
em cheio num coração.

não sei se o amor é isto,
uma violência qualquer inexplicável
a rasgar o silêncio
e a abrir os corações.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

caught in bad romance

procurava o amor no cimo das árvores
porque o amor tão do céu e não da terra,
falo-vos do amor verdadeiro, que é um caso sério,
a palavra amor às vezes tão gasta
e usada por tudo e por nada, mais por nada,
lembro aquele episódio de um homem romântico,
todos o sabiam assim,
que libertou todo o amor do mundo,
como um sussurro, a quem estava com ele
quando ela vinha aí:
grandes mamas tem a miúda

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

o punhal em chamas

a pergunta como faca cravada
sempre que revês aquele filme
nas noites recorrentes de insónia:
de que te serve saber fazer círculos perfeitos
à mão desarmada
se perdes sempre?

sábado, 7 de setembro de 2019

saíram de casa durante a noite

«ao lado do teu amigo nenhum caminho será longo»
provérbio japonês

isto de rezar com os pés,
uma forma de fortalecer amizades
por entre conversas, silêncios e risos cúmplices
e um convite que surge a partir de palavras não ditas.

o agendar de mais ocasiões para rezar com as mãos,
viagens para só dar a vida,
procurar o último lugar,
como aquele em que me sentei na igreja
quando o padre me veio perguntar se estava escondido,
treinar a atenção e servir.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

notas soltas no bolso

às vezes a vida parada
por conta dos camiões de entulho
que esvaziamos bem dentro do coração
e sufocam,
não deixam lembrar que
errar bonito é o princípio da poesia
e que isto pode ser tudo tão lindo
mesmo quando não rima

terça-feira, 3 de setembro de 2019

sageza

não consigo fugir da exegese
das mensagens e dos textos e das publicações
e bloqueio
porque às vezes os sinais errados que o Senhor envia aos seus servos inúteis
outras o medo, tanto medo,
de que o futuro seja outra coisa
que não isto que para aqui vai

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

photomaton

a luz da lua reflectida no mar
em noites como a de hoje
é como a luz dos teus olhos
e o teu cheiro quando me abraças
e se entranha durante longas horas:
não dá para retratar,
há só uma memória que fica
dentro do coração

mover os montes

quando chegas sozinho
ao cimo da montanha
vês sempre um lugar mais alto
a que precisas de subir

sobre a madrugada

a noite vai entrando
e vem a insónia
a angústia
o medo
a vontade de chorar
os abraços não dados
e um futuro que não quer vir

domingo, 1 de setembro de 2019

o soalho da casa

sentava-me no chão
para decidir construir a casa
sobre os lírios do campo,
a mais linda flor, os lírios

the roots

são estas as raízes a que não dá para fugir:
o vento e os moinhos cravados no peito,
a melodia interior do ranger das velas metálicas
no cimo da pequena colina

terceiro caderno de notas sobre a sede

passavam palavras vagas pela cabeça,
acho que eram em latim,
porta cæli, lux mundi, altare Dei,
mensa, floribus, silentium,
tudo demasiado disperso,
e era a sede de outra coisa que tinha,
a necessidade de outra fonte que buscar,
uma fonte de inspiração mas mais do que isso,
uma fonte para onde partir à noite
e gastar os cinquenta e três minutos que restam aqui,
precisava de palavras no ar
que pudesse pregar ao chão,
que me pudessem prender de novo ao chão

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

sou um ladrão

acordo a meio da noite,
talvez mais um sonho mau,
e abandono a casa
sob o latido dos cães dos vizinhos,
vou à procura de uma bomba de gasolina
ainda aberta para comprar tabaco,
estou disposto a matar de amor,
isso de morrer demasiado gasto,
vamos morrendo aos poucos às vezes,
gritar contra o mundo, chorar nem sei bem porquê,
mas não.
a bomba está aberta, peço um camel soft e um café,
fumo ainda na área de serviço a ver o nascer do sol,
regresso a casa e deito-me.
a canção não terminou,
mesmo quando a vida é depressa demais.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Nas margens do Salgueiro

tudo rangia na casa velha,
outros diriam que a presença de almas antigas,
o bisavô a ver se a espingarda ainda no mesmo sítio,
mas são só as madeiras velhas do telhado
e talvez ratos a passear nos tectos do primeiro andar,
eram os dias os quentes
e fazia trabalhos de bricolage numa solidão desejada,
pedia que o silêncio fosse o fruto da estação
e era, finalmente a sós
como vai ser sempre

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

os cinco minutos centrais de silentium, de Arvo Pärt

tudo o que eu queria era acabar de ler um livro
que anda a meio há dois anos
e uma emigrante francesa com dois garotos
de repente a estabelecer-se demasiado perto
a martelar um chapéu e um guarda-vento
com um seixo que a água transformou durante anos
e alguém deixou o aqui
para as pessoas se aleijarem na areia,
os garotos a falarem uma língua cantada
e a jogar com uma bola pequena
demasiado em cima de mim
e falta-me o silêncio necessário para acabar o livro, talvez mais dois anos
com o livro a meio,
ao fundo o som do mar
como os acordes dissonantes
da canção que não me sai da cabeça
e talvez ajude a, de repente, encontrar um outro silêncio
que dê paz.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

a água a alisar seixos pequenos

há um velho a fumar à beira-mar
e não consigo reparar se tem onde deixar a beata
ou se a vai enterrar no chão
ao alcance da boca de crianças
e das mãos de outros velhos que ratam as beatas usadas
ou as engolem, como as crianças.
sigo para o passeio diário de pés na água,
uma rotina para quem detesta as rotinas
mas gosta dos pés na água do mar,
o mar traz sempre boas lembranças
da infância e de outros dias felizes
que estes não são apesar do sol
e de me tentarem convencer que o sol cria dias felizes,
reparo que estes calções da decathlon não têm bolsos,
se um gajo tiver vontade de mijar
tem de pôr as mãos nas ilhargas,
metros à frente um tipo aguarda que o peixe morda a cana
e tem as mãos nas ilhargas e as pernas dentro de água,
ou cruzar os braços e levar uma mão ao queixo,
como se a contemplar o mar sem fim
ou a pensar num assunto sério,
e na verdade todo o caminho é isso,
contemplar o mar sem fim e pensar em assuntos sérios,
desviar a rota das pessoas a fingir que felizes
e olhar para as raparigas como se alguma sorrisse para mim
e nenhuma sorri, a vida segue distraída
como se as pessoas fossem felizes e não são.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

grãos de areia a riscar vidro

não é só a incerteza quanto ao emprego,
é a dor da incerteza da vida
que não dá para transformar em poema,
que talvez quisesse transformar em poema,
mas o poema não é isso, não pode ser isso,
é sempre outro mistério do que isto
de chorar na praia sem porquê
e de voltar sempre aos mesmos insucessos,
às mesmas obsessões, aos mesmos versos dos outros
em que não é consolo nem conforto o que procuro,
uma companhia talvez, uma companhia certamente
porque no fundo do peito cimenta-se a certeza
de acabar sozinho e não saber se é injusto,
de acabar sozinho sem saber se fui eu que escolhi,
de acabar sozinho por isto de andar às voltas cá dentro
a querer justificar tudo e fazer tudo certo
e fazer tudo mal e não saber se faço mesmo tudo mal
e não ter a recompensa mesmo sem a esperar.
isto não é um poema porque os poemas escrevem-se à mão
e hoje não pude fazê-lo,
saí de casa sem o caderno e a caneta,
tentei escrever com os dedos na areia
mas o vento apagou tudo,
talvez isso se tenha transformado num poema,
essa minha vida num poema rabiscado na areia
que o vento leva, parece-me, de norte para sul.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

vanitas vanitatum

era a noite
e depois a manhã
sabias que era hora
de abandonar os poemas
e as inutilidades várias
de que a vida se constrói

interior intimo meo

estávamos para ali sem trocar palavras,
inventavamos umas banalidades quaisquer
para entreter o tempo,
para fingirmos os dois que não sabias,
lá bem no fundo de tudo isto,
que eu iria partir de novo para longe

dois cérebrozinhos

o professor interrompia a aula
para um parêntesis:
os adolescentes deviam deixar
de rabiscar corações nas árvores
e substituí-los por cérebrozinhos,
dois cérebrozinhos de mão dada.

não servem de nada as teorias
ouvidas nas aulas de ética
quando o que sinto é um fastio que não passa
e uma angústia enorme a saltar do peito

domingo, 4 de agosto de 2019

palmeiras e ciprestes

abandono a casa depois do jantar
deixando a mãe em cuidados
pensando que vou namorar
e não vou.
todos os dias paro o carro
na zona de descanso da autoestrada
e fico a olhar para as pessoas que passam
como se fossem felizes
e não são.
eles de mãos bem firmes no volante
a pensar na prestação do carro
que vai cair amanhã na conta
e tira a folga àquelas férias no campo
e elas de mão na cabeça a pensar
que não existe amor para sempre,
ao menos que se aguentem juntos
enquanto durar a prestação do carro,
que ao menos a prestação do carro
fosse para sempre para segurar um amor

segunda-feira, 22 de julho de 2019

ver o mar à noite

há uma mulher a brincar com as ondas
leva uma criança pela mão
e não és tu, nem a mulher nem a criança

sentado numa rocha tento não pensar nisso,
preocupa-me o vôo nocturno de duas gaivotas
que vejo passar bem por cima de mim,
não sabia que as gaivotas voavam à noite
nem que destino levam.

a mulher que brinca com as ondas
também não se deve preocupar com isso
e nem deve saber de ti nem do teu amor pelo mar

sexta-feira, 19 de julho de 2019

passar para o papel

a vida às vezes não é saltos de júbilo
és tu diante do cão raivoso
a mexer nos bolsos com as mãos suadas
à procura de algo que entretenha o animal,
um isqueiro já gasto, um talão do multibanco,
uma carta de amor que já nem sabes
porque e para quem escreveste,
um osso de frango ressequido
que guardaste para dar sorte e nunca deu,
tu a rezar para que o cão mude de alvo
e vá embora, às vezes o cão a ir embora
e a nem querer saber de ti

código da prova é o seis três cinco

já não consigo resolver os problemas matemáticos mais simples,
leio y+2=z e penso num lobo selvagem
a dilacerar um pássaro,
talvez um corvo ainda jovem, em putrefação,
não sei calcular a área de um paralelepípedo,
prefiro, como espinho chagado na carne,
lembrar-me da dor da solidão
a arder como mãos gretadas pelo vento marítimo

terça-feira, 16 de julho de 2019

guitarra portuguesa

Para o Manel

a sala escurecia, alguém implorava por silêncio,
fechavas os olhos, mãos nos bolsos,
e a timidez de repente escondia-se por baixo da tua voz,
não mais a desconfiança de que todos estão a olhar para ti,
não mais o medo da casa solitária
afastado pelos movimentos do corpo,
não mais os amores que se perdem
e que foste deixando fugir
carpidos nos poemas que cantas
nem sempre sobre os cavalos e a lavoura,
às vezes sobre os beijos não dados e as saudades,
em segredo cantavas as saudades
que havia de ter de ti
quando caísses levemente sobre a terra

quinta-feira, 11 de julho de 2019

a inquietação

já vi morrer um homem.
assisti impotente a tudo
do lado de lá da janela grande
de um autocarro
com destino ao colégio militar.
as mãos nervosas contra a janela,
como se pudesse ajudar,
e depois a mão esquerda
rumo ao bolso esquerdo
para te dizer que estava a ver morrer um homem,
e o coração a desistir de to dizer
porque sei que és sensível a essas coisas
e sofres muito com as dores do mundo.
pensei ligar à minha mãe
e gritar por ajuda,
mas o telefone tocava e ninguém do outro lado.
fiquei para ali deixado
com dores horríveis no peito
e uma convicção profunda a crescer
de que o que me falta
é descobrir um verso
que nos pacifique da inevitabilidade do fim
de tudo isto

são breves todas as canções de amor

ou tu
ou nada

segunda-feira, 8 de julho de 2019

uma flor a nascer a oeste

vagueio sozinho
pelos lugares que prometi mostrar-te
como um eremita
entrego-tos no silêncio
das minhas preces

sexta-feira, 5 de julho de 2019

a mágoa

estás tão longe
e dizes não
e tenho frio
e uma dor tão grande
a crescer no peito
tento apertar a dor
e levá-la daqui para o lixo
e não consigo
não há a máquina que eu queria
para me esquecer de ti
e do teu sorriso
e dos teus olhos grandes
e dos teus gestos de ternura
e da tua voz
e de como contas os teus sonhos
não há a máquina que eu queria
para me conformar à solidão
em que vou morrer depressa

quinta-feira, 4 de julho de 2019

priére

ando para aqui sozinho
a rezar a missa do mundo,
vai ficar tanto lugar lindo
por te mostrar

quarta-feira, 3 de julho de 2019

bloco de notas do curador ferido

só mais um homem
igual a todos os outros
a calar uma dor enorme
contra o peito

beco do centro

a velha lia o jornal à janela do café
e acompanhava com água das pedras
o som demasiado alto da televisão
enquanto a aldeia passava lá fora
como sentimento forte a arder no peito

na rua os putos passeavam de bicicleta
a ansiar outras paragens

e eu concentrava-me no som metálico
talvez de uma obra mais distante
talvez de alguém a remendar um coração

segunda-feira, 1 de julho de 2019

repudiou-a em segredo

torrei em livros todo o valor
daquela viagem que faríamos de carro
sem destino certo
quando viesse o calor

porque são as palavras
sempre as palavras
que ainda hão-de me salvar

soldadinho de chumbo

os soldados esperavam o inimigo
no cimo da colina
e viam ao longe o mar
e o castelo,
uma hipótese ainda
para a beleza,
e disparavam os canhões
e escondiam-se dos tiros
que como as raparigas lá longe
os fariam morrer de amor.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

quarta-feira, 19 de junho de 2019

chove e choras

queria ser em ti o verão
e o sol radioso que ilumina o fim das tardes
e faz sorrir todos os dias

mas tu ainda a estação das chuvas
o tempo de chorar
e sarar as feridas

nardo

tenho uma flor de cerejeira
a latejar no peito
e a dor de não saber
os nomes das plantas

terça-feira, 18 de junho de 2019

a minha vida amorosa é desinteressante para o nosso jantar

estava demasiado cansado
para ver filmes sobre poesia,
tinha de pôr a mão esquerda
sobre a cabeça para conseguir
ver um filme sobre poesia
em que a rapariga se chamava laura,
penso que o primeiro amor do poeta
que protagonizava o filme,
chamava-se sofia, o meu primeiro amor,
gostava dela nas tardes
sentado no pátio da escola
e ficava só a olhar porque
sempre demasiado fechado para
«amo-te tanto gosto tanto de ti
não sei se já te disseram que és linda»,
há uns dias a sofia na fila das compras
com o marido e uma velha
que penso ser a mãe,
já a não interessar se sou tímido
porque já perdi, perco sempre,
o coração ainda a bater estranho
e os olhos e as mãos a distrair-se numa imitação
de mentos e noutra de tic tac
e o coração não «tic tac» como um relógio,
a bater devagar como um bombo cansado
porque hoje já não sofia,
já não ninguém tantas vezes,
já não saber se vai amar ainda alguém,
se sabe amar ainda alguém,
se algum dia a timidez será rompida
como um tímpano depois do fogo de artifício num feriado
e o «gosto muito de ti»
finalmente «amo-te há muitos anos»,
libertado como o grito das corujas ou
o abrir milagroso dos crisântemos no jardim

nocturnos para guitarra e voz

um grito no meio da noite:
por baixo da alegria aparente
muito cansaço de estar para aqui
a fingir que isto não é solidão
que não há um vazio a angustiar
que não há um poema por escrever
sobre amores impossíveis
vidas impossíveis
caminhos impossíveis
sobre uma beleza que está por ver

segunda-feira, 17 de junho de 2019

salvatio

olhei fixamente os teus olhos
durante duas horas
como se aí aprendesse
a salvar uma vida

aprendi, só, que preciso de olhar mais
e muito mais fundo

sábado, 1 de junho de 2019

as maçãs de eva

enquanto brincava no chão da sala
a avó descascava maçãs
e guardava as cascas no regaço:
um outro nome para o amor,
uma forma de redimir
o gesto da primeira eva

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Couve portuguesa e pão de milho de Rio Maior

as velhas da praça chamam-me «meu amor»
quando
«oh meu amor leve mais um quilo de cebolas
e meio deste feijão verde da minha horta»
e tu nunca me chamas «meu amor»
quando
«oh meu amor leva-me pela mão
a ver o sol fugir no horizonte»

sexta-feira, 24 de maio de 2019

candeeiros

o vento a levar
o pó do chão e o poema

o vento a querer levar
a possibilidade do amor
a que ainda me agarro

sulfato de cobre

a mulher carrega o pulverizador às costas
como se levasse os filhos

pulveriza as ervas com roundup
e deixa atrás de si um rasto de morte

(eu sou às vezes a erva seca
a que só falta largar o fósforo
para iniciar o incêndio do mundo)

quando leva os filhos às costas
a mulher pulveriza a cidade
com futuro e amor e vida a crescer

sábado, 18 de maio de 2019

a viagem solitária

os meus amigos
pedem às cegonhas
que me acompanhem
em vôo rápido
sobre a estrada

um novo nome
para a companhia

sussurro

em sonhos
dizias-me
que me amas

e eu em sonhos
construía uma casa para nós,
com as minhas próprias mãos,
de tijolo e pedra
e risos e amor

quarta-feira, 8 de maio de 2019

um resto do reino rural

os velhos no largo do coreto
escarravam a vida
desde o fundo das entranhas
e os putos passavam e riam,
não o rapaz raro
que se enojava com os escarros
e o que eles diziam da vida dos velhos,
com poucas alegrias
e cores a angústia e fim de outono,
mágoas regadas a copos de três
e calos nas mãos e torrões de terra
e ainda e sempre a sede,
uma sede insaciável de um amor por vir

terça-feira, 7 de maio de 2019

a vida moderna

saio do trabalho vou para casa sozinho
a cantar o disco novo do salvador
aqueço uma sopa de agriões
no microondas velho que foi da avó
como em frente ao telemóvel
como se os vídeos me dessem vida
adormeço outra vez no sofá
enquanto dá a primeira telenovela
depois do jornal das oito
e os vizinhos berram uns com os outros
acordo às onze com a tua mensagem de boa noite
ainda a tempo de responder
que não estou pronto para morrer de amor

domingo, 5 de maio de 2019

para rezar à noite

Ó Deus
não me deixes ser um poeta escuro
faz de mim
um poeta obscuro

sobre a ausência

um dia escreverei
sobre o amor
hoje a ausência
a noite escura
o vôo nocturno das corujas
a solidão a abrir pústulas
no canto esquerdo
do coração

sábado, 4 de maio de 2019

sobre o perdão

mais do que o corpo
era a carne que nos unia
naqueles tempos
e foi a ferida aberta
nas entranhas do espírito
que dá carne ao corpo
a fazer germinar a raíz
da alegre reconciliação

o sol da primavera

quando o sol chega
para mudar as cores
da areia e dos tons
com que o mar se veste
sou ainda a ilha longínqua
coberta de nevoeiro
e tu o barco a perder força
contra as ondas

quarta-feira, 10 de abril de 2019

a colecção de pedras

Quando Daniel Faria completaria quarenta e oito anos

resgatas o verbo ao silêncio
como se apanhasses pedras do chão
que juntavas para erguer uma casa
onde cultivar amor e pão
e olhar nas tardes as magnólias do jardim
enquanto esperavas sereno a morte


terça-feira, 9 de abril de 2019

mulieris

és o rebuliço o sobressalto
o grito que rompe a noite
a insónia doentia
a respiração ofegante
o ritmo acelerado de um coração
o pensamento obsessivo
a insegurança o medo em mim
porque sei que quanto mais te aproximas
menos me queres

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

corações esmigalhados com a mão

os corações, muitas vezes,
desorganizados como as prateleiras
em casa de uma tia velha,
tanta gente deixada ao acaso
por não sabermos o lugar que ocupa
no mapa dos nossos sentimentos

green windows

na casa velha
uma janela
sem vidros
que não abre
nem fecha
nem protege
dos ventos
nem da brisa
do mar ao longe
na verdade
uma janelita pequena
entre o quarto
e um corredor
uma janela
para lado nenhum