blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quarta-feira, 28 de maio de 2014

prestissimo

Para o Nuno

quando as luzes se apagam
há ainda um último som
de um órgão de tubos antigo
era nesse som pujante
que se escondia a tua fragilidade
(por baixo dela um homem forte
que nunca pensa em desistir)

hoje é um dia bom
para ouvir tocar
órgãos no céu

construir primaveras

Para o Paulo

as cervejas na mesa
ainda frescas
e nós a conversar
como se fôssemos felizes

na verdade a vida é uma ruína
que talvez ainda consigamos
voltar a erguer

segunda-feira, 26 de maio de 2014

strange day

o dia amanhece esquisito
e em todas as torneiras
corre água com gás
decides sair de casa
e ir pela divisão da alegria
vais à procura da salvação
de todo o género humano
pensas encontrá-la numa canção
gravada ainda em vinil
ou num livro perdido
no alfarrabista da esquina

quinta-feira, 22 de maio de 2014

love kills

não se cansavam de dizer
que o amor mata
e faz doer muitas vezes

não sabiam o segredo
que uma árvore
me contou um dia

o amor dói mesmo
mas não há outra forma
de encontrarmos a vida

calor em bizâncio

istambul é a cidade certa
para visitar quando se procura
o sol

um dia fui a uma agência de viagens
perguntar qual a melhor cidade
para encontrar o amor
mas um amor verdadeiro
a cidade de deus
dizia a empregada
a cidade de deus
do santo agostinho
que está publicada
em três volumes
na fundação gulbenkian

terça-feira, 20 de maio de 2014

a casa amarela

se eu fosse por dentro
dos teus olhos de menina
descobriria segredos
nunca antes revelados
a casa amarela
de onde fugias
com um vestido azul
em busca do som das árvores
do cheiro do regato que havia
ao fundo da estrada

se fosses por dentro
dos meus olhos tristes
encontravas o amor

o brilho da esperança
é a sala escura ao fundo
onde nunca pudeste entrar

lacrimarum valle

a chuva é uma máquina
de despertar poemas

dizes que sou um raio de sol
sou um poeta para dias chuvosos

as gotas caem e penso
num antigo refrão esquecido
«não tenhas medo de chorar
por um grande amor»

rua castilho

nas encruzilhadas dos caminhos
dúvidas e indecisões

nas pedras da calçada
escrita uma mensagem
«constrói a tua cidade
sobre rochas que não se quebrem»

pluvial

o objecto litúrgico
para os que gostam de andar à chuva
é a angústia

há-que saber vesti-la
enfiá-la pela cabeça
e garantir que não chega aos pés
diz a mulher com nome de furacão
numa tarde de trovoada

segunda-feira, 19 de maio de 2014

código de roupa

os poetas deviam
vestir fato-de-macaco
usar capacete de mineiro

é um grande esforço
escavar o sentido
procurar a beleza

taurus

vinha nas notícias
a morte de um homem
com uma cornada no coração

não cabem nos noticiários
milhares de homens
que morrem de amor

omnibus

os autocarros e os táxis
como as carruagens
dos comboios e metropolitanos
são lugares demasiado sujos
também demasiado breves
para lá se encontrar o amor

o amor não se presta
a tempos que fogem

mãos dadas

no meu sonho surgias
levantada do chão
no meio de um jardim florido
como num milagre criado
especialmente para mim

a verdade é que sou doente
não me lembro do que sonho
nem sei os nomes das flores

la folie est une fête

não se deve ficar mais de uma semana
a contactar com loucos
é exigido um dia de descanso
um período de fuga

é que a loucura é um estado
que se aprende a amar
um caminho sem retorno
desenhado com linhas ténues
de uma tinta chamada sanidade

quinta-feira, 15 de maio de 2014

sleeping

há um fascínio estranho
que os homens têm
com a posição em que
as mulheres dormem
em sítios públicos
ou lugares privados
uma daquelas coisas
que não queremos assumir

(nunca me apaixonei por ti
porque nunca te vi dormir)

quarta-feira, 14 de maio de 2014

outra madrugada

O teu casulo
é a minha casa
MÁRCIA (?)

o que nos ensina o homem
que lê tudo o que encontra:

o verso perfeito está perdido
num papel que esvoaça
(era um talão do multibanco
um guardanapo de papel
uma factura do supermercado)

os meus melhores versos
já outros os escreveram

terça-feira, 13 de maio de 2014

mil imagens

às minhas palavras
respondes sempre
com imagens
sinal que sabes
como eu devia saber
que palavras são
fonte de mal-entendidos
devíamos guardá-las numa caixa
para ocasiões mesmo especiais
mas não, teimamos em usá-las
teimamos em procurar
coisas que não se encontrarão

(há uma rosa à espera no meio do deserto.
um farol que se acende de novo todas as noites)

oração dos felizes

tudo o que tenho a pedir:
a solidão acompanhada
do monge.

três tiros

matei um homem
sem disparar
matei um homem

não pode ser outra coisa
descobrir que o amor é um barco
que vai mais vezes do que vem

o amor que eu quero
é todo o que não tenho

empty room, empty soul

quando vais embora
deixando a sala vazia
já não sinto a tua falta
nem aquela coisa saudade
que não se consegue exprimir
não faço mais juras de amor
não gosto muito de ninguém
tenho a alma vazia

quinta-feira, 8 de maio de 2014

moinhos

os burros sobem a encosta
com as albardas cheias de trigo
vão fortes alimentados de caniços
e outras pragas dos campos
conduzidos por um dono fraco
alimentado a bagaço pela manhã
(talvez haja pão e toucinho para almoçar)

na taberna que há no sopé do monte
os homens só mais uma lágrima
e uma rodada de copos de três
enquanto os outros olham os burros
«animal trabalhador, os burros»
um homem olha o céu e vê um avião
voando com destino a nova iorque
«antigamente é que era bom
andávamos descalços mas havia respeito»

o jardim

o grande defeito do êxodo rural
é já não se saber o nome das flores
nem distinguir as árvores de fruto

naquele dia subi uma figueira
para que tu me visses do alto
como sempre passaste a tarde
a olhar para a árvore errada

quarta-feira, 7 de maio de 2014

rosa do deserto

no egipto há cabras
que comem papel
outras que comem pedras

na aridez da minha vida
quase nada com que me alimentar

terça-feira, 6 de maio de 2014

queimar

em pequeno achavas que era o fogo
a coisa mais forte e protectora
sonhavas um dia abraçares-te ao lume
imaginavas o dia em que ele não te queimasse
um dia inaugural novo diferente
dia de uma chama nova que chama
que te levasse a um dia novo
com uma luz intextinguível
uma vela gigante que não se apaga
um sol que brota da terra

naquele dia saíste nu
em busca da fogueira no meio da serra
aquela fogueira no meio da serra
foram tarde demais os homens com os cães
já não evitaram o teu encontro com o fogo
último dia aquele último dia aquele
o dia em que agarraste o fogo
«finalmente te abraço meu protector»
e ele abraçou-se a ti
o fogo que protege também mata
matou naquele dia estúpido
como tu foste estúpido
a querer provar que o fogo queima
e que escondida nele pode estar
a felicidade e um amor qualquer
não há. no abraço do fogo a morte ri.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

verbo estender

a vida nem sempre
a aprendes
em poemas que se estendem

há tanto mundo
a dizer-se no silêncio

considerações sobre a falta

se às vezes me faltasse o fogo
como a ti às vezes falta o ar

talvez caísse um sinal do céu
ou se erguesse um sinal da terra

para dizer que estamos bem é juntos
ontem hoje sempre para sempre

não há sinais. resta-te ele.
a mim resta-me a solidão

sunset

o que me intriga
é que o homem não venha
com um aparelho para medir
quantos dias cabem
na noite escura