blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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terça-feira, 25 de dezembro de 2012

É Natal

 Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος. οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν. πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἕν. ὃ γέγονεν ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων· καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν. Ἐγένετο ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ, ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης· οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιστεύσωσιν δι᾽ αὐτοῦ. οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός. Ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον.  ἐν τῷ κόσμῳ ἦν, καὶ ὁ κόσμος δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω.  εἰς τὰ ἴδια ἦλθεν, καὶ οἱ ἴδιοι αὐτὸν οὐ παρέλαβον.  ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι, τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ,  οἳ οὐκ ἐξ αἱμάτων οὐδὲ ἐκ θελήματος σαρκὸς οὐδὲ ἐκ θελήματος ἀνδρὸς ἀλλ᾽ ἐκ θεοῦ ἐγεννήθησαν. Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας.

Jo 1, 1-14

sábado, 22 de dezembro de 2012

sûr la fin du temps

ὁ οὐρανὸς καὶ ἡ γῆ παρελεύσονται, οἱ δὲ λόγοι μου οὐ μὴ παρελεύσονται. 
 Περὶ δὲ τῆς ἡμέρας ἐκείνης ἢ τῆς ὥρας οὐδεὶς οἶδεν, 
οὐδὲ οἱ ἄγγελοι ἐν οὐρανῷ οὐδὲ ὁ υἱός, εἰ μὴ ὁ πατήρ.
Mc 13, 31-32

 chega o dia
- aquele dia -
e tudo segue igual

os homens fizeram bunkers
e comeram enlatados
como se não houvesse amanhã

chegava um apocalipse estranho,
que nunca se fez anunciar,
que não deu sinais de vida

os velhos coçavam a cabeça
segurando a boina com a ponta dos dedos sujos
e diziam
que já não se fazem apocalipses como dantes

lamentavam 
porque agora os jovens
já não confiam em Deus

dizia um deles, cuidadoso,
já não confiam num deus
mais, já nem confiam no mundo

nos sinais dos tempos
que desde sempre
nos habituámos a ler

 nós e os povos que se extinguiram
num suicídio colectivo há séculos atrás
 
 

domingo, 16 de dezembro de 2012

sûr l'amour

um homem sem barriga
é como um prédio sem tecto
provérbio turco

um dia
pensei escrever a história do meu amor por ti

podia ter cidades gregas
e conversas longas
(o teu sorriso e os teus olhos)

podia ter convites para dançar
e pequenos elogios
 (o teu sorriso e os teus olhos)

podia ter pedidos tímidos
e um mar de rosas tatuado nas costas
(o teu sorriso e os teus olhos)

podia ter ideias para saídas à noite
e cervejas partilhadas
(o teu sorriso e os teus olhos)

mas não tem

não queres
- ninguém quer -
um homem com barriga
mesmo que não lhe chova dentro

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O boi, o jumento e o Papa

O boi conhece o seu dono, e o jumento, 
o estábulo do seu senhor;
 mas Israel, meu povo, nada en­tende.
(Is 1, 3)


Tenho pena, muita pena, que um livro que faz parte do melhor estudo teológico sobre Jesus feito no século XXI, escrito por um dos cinco melhores teólogos católicos do século XX, tenha ficado conhecido apenas por causa de uma questão menor como é a da presença ou não das figuras do burro e da vaca no presépio. Nem tanto por causa da ignorância do jornalista do Público, que deu um novo sentido à palavra "prescindirá" para afirmar que o Papa proibia a presença do burro e da vaca no presépio (essa é uma questão que me interessa como homem que vive na sociedade civil portuguesa; não é tão relevante para mim enquanto teólogo) mas, sobretudo, porque passam quase setenta anos anos da Divino Afflante Spiritu e cinquenta anos do Concílio Vaticano II e ainda continua a ser gritante o afastamento entre o comum das pessoas e a Sagrada Escritura (tanto que muito poucos tinham a noção de que as fontes canónicas [no caso, o segundo capítulo do Evangelho de Lucas] não fazem referência ao boi e ao jumento na cena do presépio).
Outro dado que me chamou a atenção, enquanto teólogo, foi o facto de as pessoas prestarem bastante atenção à suposta palavra de Bento XVI e desatarem a tirar os burros e as vacas dos seus presépios. Isto demonstra um facto curioso. Se é verdade que as pessoas se vão afastando da Igreja institucional, da comunidade cristã enquanto espaço de permanência e fidelidade (se deixam de ser católicos "praticantes" ou, em rigor, fiéis, para passarem a ser católicos culturais, pessoas que se indentificam com algumas verdades do cristianismo e vivem certos valores próprios do ambiente católico mas já não têm ligação a uma comunidade cristã concreta, com a qual deixam de reunir, na liturgia ou fora dela), sobretudo por causa da moral pessoal (em relação à moral social não sinto esse afastamento, e quando o sinto é porque me parece que a Doutrina Social da Igreja não é ainda conhecida e estudada pela maioria das pessoas, a começar pelos próprios católicos), não deixa de se verificar que, pelos vistos, em matéria de liturgia (já explico em que sentido) ainda usam a voz do Papa como algo a seguir.
O facto é que uma certa forma de tradição e de ligação à Igreja permanece por meio destes actos simples de uma certa religiosidade popular cultivada nos tempos litúrgicos mais fortes (Natal e Páscoa, esta última, no caso português, sobretudo no norte do país) e assumiu o lugar de uma liturgia particular que tem o próprio indivíduo ou a família, enquanto grupo homogéneo, como sacerdotes. E em relação a esta liturgia particular as pessoas ainda não perderam a Igreja como referência. Continua a haver um relativo interesse em ouvir o que o Santo Padre diz em relação a estes temas e até em seguir a sua palavra.
Isto pode ser uma oportunidade para a Igreja, se souber perceber que as pessoas ainda continuam a ouvir o Papa e que é preciso que a sua presença nos media se vá tornando menos periférica e mais bem aceite. Pode ser uma oportunidade se a Igreja perceber que, nos próximos tempos, se deve preocupar mais com temas de moral social e, sem medo, temas teológicos e de catequese fundamental que, contrariamente ao que parecia, até interessam às pessoas.
Pode, também, ser uma oportunidade para que as pessoas se aproximem da teologia superior com que foi escrita toda esta obra Jesus de Nazaré, o resultado de uma pesquisa pessoal de décadas. Que, pelo menos, leiam esta última pequena parte da obra Jesus de Nazaré [- A infância de Jesus, São João do Estoril, Princípia, 2012.]

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

la maison (parte ii)

para o Valter
 
ἡμεῖς μωροὶ διὰ Χριστόν
1 Cor 4, 10
 
 
no topo do parque eduardo vii,
pertinho do eleven,
entre umas sebes vivia um homem
 
 
até que decidiram cortar as árvores
para ficarem bonitas
e ele ficou desalojado
 
os dois idiotas riam e diziam
«cortaram os arbustos
e desalojaram o sem-abrigo»
 
já não sabiam o que era mais ridículo
se a existência de um sem-abrigo desalojado
ou que haja pessoas desalojadas
por causa da beleza
(mesmo que vivessem em casas de cartão)

la maison (parte i)

debaixo da ponte
um homem vive
numa casa de cartão e plásticos

todos sabemos
que as pontes servem para ligar
- e as casas? -
não servem também para ligar,
as casas?

as casas também ligam
mesmo que sejam feitas de cartão
                          [e plásticos
porque nos afastam
do frio e da solidão exposta do mundo

domingo, 4 de novembro de 2012

Um Natal para gente adiantada

Sou pouco fã de que se comece já a pensar no Natal, afinal ainda falta bem mais de um mês, e afinal até há um tempo litúrgico previsto para a sua preparação espiritual, sendo que a outra preparação não precisará, certamente, de mais tempo do que essa. De qualquer modo, sei que há sempre quem comece já a pensar nessa altura do ano e quero ajudar essas pessoas. 
Quando estiverem a pensar em dar prendas, pensem em livros. Depois, pensem em livros baratos. E pensem em livros de autores portugueses. Se tiverem um mínimo interesse pela teologia, recomendo-vos o livro Nenhum caminho será longo [Prior Velho, Paulinas 2012], de José Tolentino Mendonça, uma boa reflexão sobre o tema da amizade a partir de um ponto de vista teológico (como toda a obra teológica e ensaística do padre Tolentino, acaba por ser também um bom tratado sobre o que é, ou devia ser, o papel do próprio teólogo no mundo). Além disso, para os interessados em teologia mas que nunca tiveram acesso a obras deste tema, há sempre um livro relativamente barato e que vale a pena ler, para compreender a sociedade ocidental em que vivemos. Chama-se Bíblia Sagrada e pode encontrar-se, de forma relativamente fácil, em diversas traduções e aos mais variados preços.
Se tiverem um mínimo interesse pela literatura, podem sempre oferecer Não é meia noite quem quer [Lisboa, Dom Quixote 2012], o mais recente livro de António Lobo Antunes, o português que devia ter sido Nobel e nunca foi porque não é comuna, ou ainda O filho de mil homens [Carnaxide, Alfaguara 2011], última obra de Valter Hugo Mãe, uma boa reflexão sobre o que ainda nos pode unir neste tempo de escombros.
Por fim, aos interessados em poesia deixo três recomendações, garantindo que é aqui que, em matéria de livros, certamente gastarão menos dinheiro ficando mais bem servidos. Em primeiro lugar, sugiro O comportamento das paisagens, de Pedro Tiago [Lisboa, Artefacto 2011], obra de um autor jovem e que, não por acaso, é meu irmão. Depois, é sempre de ler Como se desenha uma casa [Lisboa, Assírio & Alvim 2011], do recentemente falecido Manuel António Pina . Por fim, a obra mais recente de poesia de José Tolentino Mendonça, Estação Central [Lisboa, Assírio & Alvim 2012], onde se encontra este poema (na p. 25):

Quando Deus vacila em mim

«Deus é impotente e fraco no mundo, e
somente  assim está connosco e nos ajuda.»
Dietrich Bonhoeffer

Quando Deus vacila em mim
sem adornos, ataduras, sem outro pretexto
Quando o sinto a ponto de perder-se
na folhagem a meu lado
compreendo o grande mistério
uma lei face à qual as palavras
não servem

Deus abraça o meu vazio profundamente grato
Abraça a imundície de todos os seus filhos
e continuamente declara-os bem aventurados

Pois Deus sendo casto deixa-se consumir
com a paixão insultuosa
dos devassos

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Rezar Portugal em 2012

O texto que tenho rezado ao pensar em Portugal nos últimos tempos (Gn 18, 16-32):

 וַיָּקֻ֤מוּ מִשָּׁם֙ הָֽאֲנָשִׁ֔ים וַיַּשְׁקִ֖פוּ עַל־פְּנֵ֣י סְדֹ֑ם וְאַ֨בְרָהָ֔ם הֹלֵ֥ךְ עִמָּ֖ם לְשַׁלְּחָֽם׃  וַֽיהֹוָ֖ה אָמָ֑ר הַֽמְכַסֶּ֤ה אֲנִי֙ מֵֽאַבְרָהָ֔ם אֲשֶׁ֖ר אֲנִ֥י עֹשֶֽׂה׃  וְאַ֨בְרָהָ֔ם הָיֹ֧ו יִֽהְיֶ֛ה לְגֹ֥וי גָּדֹ֖ול וְעָצ֑וּם וְנִ֨בְרְכוּ בֹ֔ו כֹּ֖ל גֹּויֵ֥י הָאָֽרֶץ׃  כִּ֣י יְדַעְתִּ֗יו לְמַעַן֩ אֲשֶׁ֨ר יְצַוֶּ֜ה אֶת־בָּנָ֤יו וְאֶת־בֵּיתֹו֙ אַחֲרָ֔יו וְשָֽׁמְרוּ֙ דֶּ֣רֶךְ יְהוָ֔ה לַעֲשֹׂ֥ות צְדָקָ֖ה וּמִשְׁפָּ֑ט לְמַ֗עַן הָבִ֤יא יְהוָה֙ עַל־אַבְרָהָ֔ם אֵ֥ת אֲשֶׁר־דִּבֶּ֖ר עָלָֽיו׃  וַיֹּ֣אמֶר יְהוָ֔ה זַעֲקַ֛ת סְדֹ֥ם וַעֲמֹרָ֖ה כִּי־רָ֑בָּה וְחַ֨טָּאתָ֔ם כִּ֥י כָבְדָ֖ה מְאֹֽד׃  אֵֽרֲדָה־נָּ֣א וְאֶרְאֶ֔ה הַכְּצַעֲקָתָ֛הּ הַבָּ֥אָה אֵלַ֖י עָשׂ֣וּ׀ כָּלָ֑ה וְאִם־לֹ֖א אֵדָֽעָה׃  וַיִּפְנ֤וּ מִשָּׁם֙ הָֽאֲנָשִׁ֔ים וַיֵּלְכ֖וּ סְדֹ֑מָה וְאַ֨בְרָהָ֔ם עֹודֶ֥נּוּ עֹמֵ֖ד לִפְנֵ֥י יְהוָֽה׃  וַיִּגַּ֥שׁ אַבְרָהָ֖ם וַיֹּאמַ֑ר הַאַ֣ף תִּסְפֶּ֔ה צַדִּ֖יק עִם־רָשָֽׁע׃  אוּלַ֥י יֵ֛שׁ חֲמִשִּׁ֥ים צַדִּיקִ֖ם בְּתֹ֣וךְ הָעִ֑יר הַאַ֤ף תִּסְפֶּה֙ וְלֹא־תִשָּׂ֣א לַמָּקֹ֔ום לְמַ֛עַן חֲמִשִּׁ֥ים הַצַּדִּיקִ֖ם אֲשֶׁ֥ר בְּקִרְבָּֽהּ׃  חָלִ֨לָה לְּךָ֜ מֵעֲשֹׂ֣ת׀ כַּדָּבָ֣ר הַזֶּ֗ה לְהָמִ֤ית צַדִּיק֙ עִם־רָשָׁ֔ע וְהָיָ֥ה כַצַּדִּ֖יק כָּרָשָׁ֑ע חָלִ֣לָה לָּ֔ךְ הֲשֹׁפֵט֙ כָּל־הָאָ֔רֶץ לֹ֥א יַעֲשֶׂ֖ה מִשְׁפָּֽט׃  וַיֹּ֣אמֶר יְהוָ֔ה אִם־אֶמְצָ֥א בִסְדֹ֛ם חֲמִשִּׁ֥ים צַדִּיקִ֖ם בְּתֹ֣וךְ הָעִ֑יר וְנָשָׂ֥אתִי לְכָל־הַמָּקֹ֖ום בַּעֲבוּרָֽם׃  וַיַּ֥עַן אַבְרָהָ֖ם וַיֹּאמַ֑ר הִנֵּה־נָ֤א הֹואַ֨לְתִּי֙ לְדַבֵּ֣ר אֶל־אֲדֹנָ֔י וְאָנֹכִ֖י עָפָ֥ר וָאֵֽפֶר׃  א֠וּלַי יַחְסְר֞וּן חֲמִשִּׁ֤ים הַצַּדִּיקִם֙ חֲמִשָּׁ֔ה הֲתַשְׁחִ֥ית בַּחֲמִשָּׁ֖ה אֶת־כָּל־הָעִ֑יר וַיֹּ֨אמֶר֙ לֹ֣א אַשְׁחִ֔ית אִם־אֶמְצָ֣א שָׁ֔ם אַרְבָּעִ֖ים וַחֲמִשָּֽׁה׃  וַיֹּ֨סֶף עֹ֜וד לְדַבֵּ֤ר אֵלָיו֙ וַיֹּאמַ֔ר אוּלַ֛י יִמָּצְא֥וּן שָׁ֖ם אַרְבָּעִ֑ים וַיֹּ֨אמֶר֙ לֹ֣א אֶֽעֱשֶׂ֔ה בַּעֲב֖וּר הָאַרְבָּעִֽים׃  וַ֠יֹּאמֶר אַל־נָ֞א יִ֤חַר לַֽאדֹנָי֙ וַאֲדַבֵּ֔רָה אוּלַ֛י יִמָּצְא֥וּן שָׁ֖ם שְׁלֹשִׁ֑ים וַיֹּ֨אמֶר֙ לֹ֣א אֶֽעֱשֶׂ֔ה אִם־אֶמְצָ֥א שָׁ֖ם שְׁלֹשִֽׁים׃  וַיֹּ֗אמֶר הִנֵּֽה־נָ֤א הֹואַ֨לְתִּי֙ לְדַבֵּ֣ר אֶל־אֲדֹנָ֔י אוּלַ֛י יִמָּצְא֥וּן שָׁ֖ם עֶשְׂרִ֑ים וַיֹּ֨אמֶר֙ לֹ֣א אַשְׁחִ֔ית בַּעֲב֖וּר הָֽעֶשְׂרִֽים׃  וַ֠יֹּאמֶר אַל־נָ֞א יִ֤חַר לַֽאדֹנָי֙ וַאֲדַבְּרָ֣ה אַךְ־הַפַּ֔עַם אוּלַ֛י יִמָּצְא֥וּן שָׁ֖ם עֲשָׂרָ֑ה וַיֹּ֨אמֶר֙ לֹ֣א אַשְׁחִ֔ית בַּעֲב֖וּר הָעֲשָׂרָֽה׃

16Os homens levantaram-se e partiram em direcção de Sodoma, e Abraão acompanhou-os para deles se despedir. 17O SENHOR disse, então: «Ocultarei a Abraão o que vou fazer? 18Ele deve tornar-se uma nação grande e poderosa e Eu abençoarei nele todos os povos da Terra. 19Escolhi-o, de facto, para que dê ordens a seus filhos e à sua casa depois dele, no sentido de seguirem os caminhos do SENHOR, praticando a justiça e a rectidão, a fim de que o SENHOR cumpra a favor de Abraão as promessas que lhe fez.»
20O SENHOR acrescentou: «O clamor de Sodoma e Gomorra é imenso e o seu pecado agrava-se extremamente. 21Vou descer a fim de ver se, na realidade, a conduta deles corresponde ao brado que chegou até mim. E se não for assim, sabê-lo-ei.» 22Os homens partiram dali, e encaminharam--se para Sodoma. Abraão, porém, continuava ainda na presença do SENHOR. 23Abraão aproximou-se e disse: «E será que vais exterminar, ao mesmo tempo, o justo com o culpado? 24Talvez haja cinquenta justos na cidade; matá-los-ás a todos? Não perdoarás à cidade, por causa dos cinquenta justos que nela podem existir? 25Longe de ti proceder assim e matar o justo com o culpado, tratando-os da mesma maneira! Longe de ti! O juiz de toda a Terra não fará justiça?»
26O SENHOR disse: «Se encontrar em Sodoma cinquenta justos perdoarei a toda a cidade, por causa deles.» 27Abraão prosseguiu: «Pois que me atrevi a falar ao meu Senhor, eu que sou apenas cinza e pó, continuarei. 28Se, por acaso, para cinquenta justos faltarem cinco, destruirás todaa cidade, por causa desses cinco homens?» O SENHOR respondeu: «Não a destruirei, se lá encontrar quarenta e cinco justos.» 29Abraão insistiu ainda e disse: «Talvez não se encontrem nela mais de quarenta.» O SENHOR disse: «Não destruirei a cidade, em atenção a esses quarenta.» 30Abraão voltou a dizer: «Que o Senhor não se irrite, por eu continuar a insistir. Talvez lá se encontrem trinta justos.» O SENHOR respondeu: «Se lá encontrar trinta justos, não o farei.» 31Abraão prosseguiu: «Perdoa, meu Senhor, a ousadia que tenho de te falar. Talvez não se encontrem lá mais de vinte justos.» O SENHOR disse: «Em atenção a esses vinte justos, não a destruirei.» 32Abraão insistiu novamente: «Que o meu Senhor não se irrite; não falarei, porém, mais do que esta vez. Talvez lá não se encontrem senão dez.» E Deus respondeu: «Em atenção a esses dez justos, não a destruirei.» 

Sûr la folie

Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos.
 E serás feliz por eles não terem com que te retribuir; ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos
(Lc 14, 13)


No banco de trás do automóvel, a louca acenava às pessoas que viajavam, serenas, no autocarro. Ria-se e dizia adeus. Tinha de ser rápida, para os pais no banco da frente não perceberem que era louca. Tens de ser bonita, filha, e comportares-te segundo as normas da sociedade. És muito bonita e já não és nenhuma criança para te pores com essas coisas. Mas a louca, uns metros à frente, voltava a rir-se, bonita do alto dos seus cerca de vinte anos, e a dizer adeus. Rápido, antes que os pais vissem. Não nos envergonhes! A louca, ainda que contida pela pressão social, alegrou o meu início de dia, eu que era um dos que ia no autocarro e dei por mim a sorrir de volta (não resisto a mulheres bonitas) e a dizer adeus. Dei por mim também louco e a pensar em Paulo de Tarso. Por causa de Cristo somos idiotas (1 Cor 4, 10), Fiz-me fraco com os fracos (1 Cor 9, 22). O Reino dos Céus é para os loucos. Há um Deus para os loucos e há um Deus para mim. E há um banquete para todos nós, lá onde já não se abrem blocos de reportagem com notícias sobre impostos.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

o mestre corrompido

os teus alunos não podem saber que vais para casa e vês a telenovela todos os dias. os teus alunos não podem saber que gostas da casa dos segredos e que até já votaste naquele da bobadela para ver se ele não saía. os teus alunos não podem saber que não sabes o que é a naifa, que pensas que é um conjunto de baile, não podem saber que para ti dead combo é uma banda de metal da suécia. os teus alunos não podem saber que tu achas que a paula rego da fundação que o estado quis fechar é a ex-ministra da economia do governo do guterres. não podem saber que não fazes ideia de quem é job nem jacob nem paulo de tarso. os teus alunos não podem saber que julgas que a bíblia foi escrita de uma assentada, por um homem sozinho. não podem saber que nunca ouviste falar do valter hugo mãe nem do gonçalo m. tavares nem do lobo antunes (que achas que foi embaixador em berlim) e que pensas que josé saramago era um ceramista dos lados de mafra, primo do josé franco (de quem só sabes o nome por causa do pão com chouriço do sobreiro e das visitas dominicais à ericeira para ver o mar). os teus alunos não podem saber nada disto. nada. nadinha. porque nesse momento iam descobrir que é em ti que o mundo começa a ruir. que é em ti que começa a crise de valores que procuras fora de ti. porque a beleza é um valor. sem beleza, não há bondade. sem beleza, não há verdade. sem beleza, sem bondade e sem verdade só há números. economia. finanças. sem beleza, sem bondade, sem verdade não há pessoas. se não tens beleza para ensinar, então não tens nada para dar. então só tens para dar a crise de valores. a economia. as finanças. zeros e uns, zeros e mil, zeros e zeros. nada. não deixes o mundo ruir a partir de ti. cai de joelhos e contempla o mundo (lembra-te de teilhard de chardin e da sua missa sobre o mundo).

bons e bonitos

todos os mortos foram bons
todos os bebés são bonitos

ou então
não sabemos lidar com os extremos da vida

O peregrino

Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.

Antonio Machado

aceita o desafio e vai
por onde te mandam

o que importa não é a viagem
mas o começo

confia

serve

vai

não estás só

sábado, 15 de setembro de 2012

volvitur orbis

num mundo em transformação é normal os homens verem-se obrigados a voltar com a palavra atrás. eu não sou particular fã disso mesmo quando, como agora, é por uma boa razão que o faço. mas o facto é que confiei na palavra dos meus legítimos superiores, escrevi sobre isso com um ar de quem tem certezas absolutas e essa palavra, por contingências várias, alterou-se. isso é o que me interessa, porque assim vos posso dizer que afinal estou de volta. assim posso agradecer todas as mensagens e demonstrações de carinho e apreço que, continuo a dizer, nunca irei perceber por que existem. assim já posso ir buscar o meu horário (agora é que é, Cândida!) que vou coser com mais dois (esta é para vocês, pessoal dos primeiros ciclos e da secundária!) e que vou seguir com o mesmo espírito de serviço que pedia para a tal pessoa que, supostamente, me viria substituir.
não vos posso prometer nada a não ser eu. com todos os meus defeitos e as minhas poucas qualidades. eu, em toda a minha inutilidade mas também em toda a minha disponibilidade. é esse que vão continuar a ver e é esse com quem podem contar. saudações cordiais a todos e vamos a mais um ano!

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Os novos donos da Igreja

Nos últimos tempos, acompanhando as redes sociais e, dentro destas, grupos de pensamento cristão, tenho reparado que há um novo grupo que cresce cada vez mais e que me preocupa. É um grupo de pessoas que defende uma visão tradicionalista da celebração litúrgica (até aqui nada de mal) e uma visão tradicionalista da teologia (até aqui também nada de mal). Os problemas começam quando estas pessoas mostram que a visão que defendem é considerada por si como a única visão possível da Liturgia e da Teologia.
Como disse, nada contra que tenham uma visão tradicionalista da Liturgia e da Teologia, afinal uma das primeiras coisas que se aprende em Eclesiologia é que a Igreja Católica é um espaço de unidade na diversidade. Mas considerar que uma dada visão sobre uma e outra é a única possível é que já pode constituir um problema. Sobretudo quando essa defesa implica uma crítica aberta e em praça pública contra os Bispos que não concordam com a sua perspectiva (que, por vezes, chega a ser uma crítica ao Papa, se ele não celebra segundo a liturgia tradicionalista ou se defende posições teológicas mais "vanguardistas"; neste último caso, basta que concorde ou se revele próximo de teólogos que o façam).
Outra das coisas que se aprende em Eclesiologia e, também, nas disciplinas de Teologia Fundamental, é que a garantia de comunhão com a Igreja é assegurada pelo trinómio Sagrada Escritura - Magistério - Tradição. E os Bispos foram importantes na fixação do cânone da primeira e são ainda hoje o garante das duas últimas. Criticá-los por princípio, publicamente e, perdoem-me a ousadia, por capricho, por muito que se ache que se possui a verdade do que é a Igreja, é fazer ruir a comunhão eclesial. Ainda para mais quando se faz isso em praça pública e em grupos ligados ao pensamento cristão.
E numa Igreja sem comunhão (e, como tal, sem fiéis) de nada servirá uma Liturgia bem celebrada e uma Teologia firme (se bem que eu, na minha humilde visão de teólogo, considere que é diferente uma Teologia firme de uma Teologia fixa. Afinal, a Teologia não deixa de ser uma ciência...). Uma Igreja sem os Bispos e os padres que não nos convêm (e também há muitos que não me conviriam, pelas mais variadas razões) já não é a Igreja de Jesus Cristo e é preciso ter a noção clara disso.
Desde Jesus que a Igreja sempre foi uma comunidade de Santos e pecadores (para mim, a Igreja é mais um grupo de pecadores assumidos [como rezamos, Domingo após Domingo, no Acto Penitencial, seja em que língua for] do que de santinhos [embora nela haja Santos em todos os tempos, e graças a Deus]). Desde os Apóstolos (os primeiros Bispos) que há Santos e pecadores. Desde esse tempo que nunca foram escolhidos só os perfeitos. E desde esse tempo que é nessa comunidade que Jesus se manifesta.
Se vão descobrindo que já não é nesta comunidade religiosa que encontram Jesus e se este Papa, estes Bispos, estes padres e estes irmãos na fé já não vos servem então que criem um novo grupo religioso. Mas por favor e para o bem da Igreja, não estraguem a comunhão dos que ainda encontram Cristo aqui. Na variedade de pensamento do Magistério, no ensino dos homens pecadores que nos conduzem, na variedade litúrgica onde há muito erro e coisas quase cómicas mas onde ainda continua a surgir, Vivo, o Senhor Jesus, sempre que o sacerdote profere as palavras consecratórias, seja em que língua for.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

não presto para despedidas

Aos colegas do ex-Agrupamento de Escolas Prof. Noronha Feio

O Senhor disse a Abrão:
«Deixa a tua terra, a tua família e a casa do teu pai, e vai para a terra que Eu te indicar.» (Gn 12, 1)

não que isto seja bem uma despedida, afinal não vou morrer nem mudar para outro país nem para um sítio tão longínquo onde nunca nos voltemos a ver, mas é algo que sinto a obrigação de escrever. passei dois anos da minha vida a trabalhar nas vossas escolas, os meus dois primeiros anos de trabalho como professor. sou hoje uma pessoa profundamente grata, porque aprendi aí mais do que ensinei (quando, afinal, a missão de um professor é ensinar...). aprendi muito do que há a aprender sobre o funcionamento de uma escola (aquelas coisas de papéis e terminologias próprias e leis e coisas que nos chateiam). aprendi muito sobre muita gente e sobre as relações entre as pessoas. fiz amigos. ri, brinquei, chateei-me, às vezes, nunca me zanguei a sério, ouvi e falei - enfim, vivi, e que outra coisa se pode fazer durante dois anos?
vai custar mudar de local de trabalho, sim, vai custar, e não muito por causa das escolas em si (dos edifícios), que essas eram, cada uma das seis em que trabalhei, bem diferentes e, diga-se de passagem, nada de especial em termos arquitectónicos ou até em termos do que deve ser o espaço de uma escola como a idealizamos. vai custar mudar de lugar de trabalho por causa das pessoas. porque já tinha criado relações com pessoas. porque apesar da minha inutilidade geral, da minha timidez, da minha falta de capacidades especiais, daquelas que fazem os homens que se destacam, fiz amizades. vai-me custar mudar de local de trabalho por tua causa (de ti que estás a ler isto agora). mas a vida é peregrinação, e vou dar azo à minha condição de peregrino, enquanto vocês vão receber alguém novo, decerto melhor professor do que eu. os dois anos que aí passei foram sempre de serviço, que quem não vive para servir não serve para viver, e é em serviço que vou embora agora. com a graça do bom Deus a disciplina cresceu no agrupamento, muito à conta dos mais pequeninos, e precisa agora de alguém melhor e mais bem preparado do que eu.
obrigado por tudo. abraços aos senhores e beijinhos às senhoras. lembrem-se de mim. lembrem-se de mim quando estiverem no paraíso. ok?

sábado, 18 de agosto de 2012

a vida é um sol que se apaga

aproveitava o verão para
na praia
correr atrás do sol

à noite desistia

o sol era para ele um mistério:

porque aparecia todos os dias
se depois decidia fugir?

porque ia embora
mas deixava o calor
e os corpos molhados e desconfortáveis
à noite?

porque era tão importante para a vida
se um dia vai rebentar,
dizem os cientistas,
e acabar com tudo?

porque não lhe bastava?
porque precisava o rapaz de um Deus?
um Deus que corria com ele atrás do sol
todos os dias
um Deus que é mais que o sol

sábado, 11 de agosto de 2012

Mesinha de centro

Hoje calhei a ver uns bocados de mais uma daquelas entrevistas que dão na televisão à tarde. Comecei a olhar para a televisão porque a entrevistada era bonita. Continuei a dar atenção quando a ouvi dizer que vai ser mãe e, com alegria, começou a descrever o mundo novo em que quer que o seu filho viva. Até fiquei contente quando a ouvi dizer que as pessoas precisam de ter mais filhos e que ficam mais completas se tiverem filhos. Isto, claro, até que ela decidiu estragar a pintura (como aquelas mulheres bonitas para quem passamos uma manhã inteira a olhar, numa esplanada qualquer desta vida, até que ela decide bocejar sem tapar a boca com uma mão, mandar um arroto ou fazer uma alarvidade qualquer do género*). 
Quando a velhice veio à baila, a menina dispara que quando começar a sofrer prefere não ficar cá mais. E isto é muito estúpido, porque o mundo é feito de sapatos bons mas também de sapatos apertados. Tem pistas de atletismo em tartan mas também há outras em terra batida e em alcatrão. É feito de salas largas e desocupadas mas também de salas pequeninas com aquelas mesinhas de centro em que podemos bater e aleijar as canelas (sobretudo quando, para poupar, decidimos atravessar a sala às escuras). Não precisamos de encher o mundo de mesinhas de centro para lhes andarmos a bater, mas devemos ter um mundo com mesinhas de centro: podemos bater nelas, sim, mas dão tanto jeito para meter aquela revista, o cinzeiro ou outra coisa qualquer. Muitas vezes, elas acabam por dar alegria à própria casa.
Isto para dizer: não concebo um mundo sem sofrimento. Rejeito um sofrimento provocado (ao estilo daqueles que dizem que precisamos de pecar para valorizar o perdão ou de sofrer para dar o valor ao sofrimento) mas aceito que a dor faz parte da vida. Faz dar mais valor às alegrias, por pequenas que sejam, faz perguntar pelo sentido (o que não é coisa pouca). 
O mundo não precisa de gente que não queira sofrer. E eu não gosto de mulheres que não querem sofrer.

*Esclareço apenas que acho que qualquer uma das três atitudes é igualmente intolerável num homem. Embora eu não tenha o hábito de olhar para homens ficando com uma sensação crescente de interesse que se possa desvanecer.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Oratio mea in nocte mea

  שִׁ֗יר הַֽמַּ֫עֲלֹ֥ות רַ֭בַּת צְרָר֣וּנִי מִנְּעוּרַ֑י יֹֽאמַר־נָ֝א יִשְׂרָאֵֽל׃  רַ֭בַּת צְרָר֣וּנִי מִנְּעוּרָ֑י גַּ֝ם לֹא־יָ֥כְלוּ לִֽי׃  עַל־גַּ֭בִּי חָרְשׁ֣וּ חֹרְשִׁ֑ים הֶ֝אֱרִ֗יכוּ לְמַעֲנֹותָם  יְהוָ֥ה צַדִּ֑יק קִ֝צֵּ֗ץ עֲבֹ֣ות רְשָׁעִֽים׃  יֵ֭בֹשׁוּ וְיִסֹּ֣גוּ אָחֹ֑ור כֹּ֝֗ל שֹׂנְאֵ֥י צִיֹּֽון׃  יִ֭הְיוּ כַּחֲצִ֣יר גַּגֹּ֑ות שֶׁקַּדְמַ֖ת שָׁלַ֣ף יָבֵֽשׁ׃  שֶׁלֹּ֤א מִלֵּ֖א כַפֹּ֥ו קֹוצֵ֗ר וְחִצְנֹ֥ו מְעַמֵּֽר׃ וְלֹ֤א אָֽמְר֨וּ׀ הָעֹבְרִ֗ים בִּרְכַּֽת־יְהוָ֥ה אֲלֵיכֶ֑ם בֵּרַ֥כְנוּ אֶ֝תְכֶ֗ם בְּשֵׁ֣ם יְהוָֽה׃

De profundis clamavi ad te Domine
 Domine exaudi vocem meam fiant aures tuae intendentes ad vocem deprecationis meae
 si iniquitates observabis Domine Domine quis sustinebit
 quia tecum est propitiatio cum terribilis sis sustinui Dominum sustinuit anima mea et verbum eius expectavi
 anima mea ad Dominum
 a vigilia matutina usque ad vigiliam matutinam expectet Israhel Dominum
 quia apud Dominum misericordia et multa apud eum redemptio
 et ipse redimet Israhel ex omnibus iniquitatibus eius

Do fundo do abismo clamo a ti, Senhor!
Senhor, ouve a minha prece!
Estejam teus ouvidos atentos
à voz da minha súplica!
Se tiveres em conta os nossos pecados,
Senhor, quem poderá resistir?
Mas em ti encontramos o perdão;
por isso te fazes respeitar.
Eu espero no Senhor! Sim, espero!
A minha alma confia na sua palavra.
A minha alma volta-se para o Senhor,
mais do que a sentinela para a aurora.
Mais do que a sentinela espera pela aurora,
Israel espera pelo Senhor;
porque nele há misericórdia
e com Ele é abundante a redenção.
Ele há-de livrar Israel
de todos os seus pecados.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

talvez isto seja um adeus

se da minha vida fazem parte vómitos, poemas, mesmo que sobre o osso da pila, missas católicas bem celebradas, preocupação com o correcto crescimento das crianças, abnegação, atenção aos mais fracos, conversas com aqueles a quem ninguém liga, a consciência de que a linha que separa a normalidade da loucura é muito ténue, uma forma de amor por mulheres que não passa por querer uma ama, interesses culturais desrespeitados pelos meus amigos, esforços não notados, uma certa atracção pela loucura, gosto pela liberdade, fé católica, noção de que o estado novo foi uma nódoa, repito, uma nódoa, na história de portugal, a certeza de que a penitência é mesmo um sacramento e é possível o perdão, a noção de que não sou perfeito nem certinho, a falta de desejo de ser perfeito e certinho ou pelo menos de fingir que sou perfeito ou certinho porque assim é que se engatam gajas, a percepção dos problemas não resolvidos pelos meus amigos em relação à adolescência que não tiveram, porque foi triste, um certo asco a pessoas que têm a mania que sabem tudo sobre tudo, que acham que os outros não sabem nada e não fazem nada de jeito (a começar por um senhor chamado adolfo, que gostava muito de fazer isso; pensa no que isto pode querer dizer, se fores capaz), a humildade de reconhecer que sou uma merda, repito, uma merda, então talvez seja o momento de te dizer adeus. vai, amigo, liberta-te e vai viver a tua vida perfeita e feliz onde passas a vida a criticar toda a gente. adeus, talvez nos vejamos um dia. adeus. talvez um dia a minha vida deixe de ter estas coisas. talvez um dia a tua vida passe a ter estas coisas. talvez um dia eu abra os olhos. talvez um dia abras também os olhos, repito, talvez um dia abras os olhos, que pior que o cego que não quer ver é o que acha que vê muito bem e não vê um boi à frente dos olhos. talvez um dia respeites as pessoas que conseguem pôr por escrito aquilo de que não conseguem falar. talvez um dia respeites as pessoas, em geral. talvez um dia deixes de falar sobre as pessoas que gostam de ti só para as criticar e deixes de dar o rabinho às chefias. talvez um dia voltes a ser católico. nesse dia, podemos reencontrar-nos.

n.a.: provavelmente, nunca vais ler isto. mesmo que leias, provavelmente não vais perceber nada do que aqui está escrito. não vais querer perceber nada do que aqui está escrito. afinal, isto está escrito. não tem a ver com aviões nem com fazendas, que são as únicas coisas de valor que há no mundo, enquanto trabalhares com aviões e tiveres fazendas (no dia em que trabalhares com esterco, finalmente ele vai ter o valor que há muito lhe é devido no mundo). entrei de luto, perdi um amigo e perdi-me a mim. adeus, até um dia.

sábado, 21 de julho de 2012

programas de tv

antónio tinha um programa de tv sobre o tarrafal, em cabo verde. quando faleceu, os cabo-verdianos agradeceram-lhe porque fez publicidade ao seu país, que é um bom destino turístico. urbano tinha um programa de tv sobre teoria geocêntrica. quando faleceu, copérnico agradeceu-lhe pelas férias nos calabouços de roma. josef tinha um programa de tv sobre gulag. quando faleceu, os opositores do regime agradeceram-lhe a oportunidade de poderem conhecer tão bem a sibéria. adolfo tinha um programa de tv sobre judeus. quando faleceu, eles agradeceram-lhe porque, os poucos que sobraram, puderam voltar à terra prometida. josé tinha um programa de tv onde inventava coisas sobre portugal. quando faleceu, todos lhe agradeceram porque foi um grande comunicador e um historiador notável.

neste texto não há nada de estranho? há. a parte do josé é real... mas há mais: o josé que inventava histórias sobre portugal foi ministro do antónio, que, no seu programa de tv, falava sobre os benefícios de umas férias no tarrafal, em peniche ou em caxias, a fazer terapias de sono, a ficar em pé durante dias e a passar fome, apenas porque não se concordava com ele. o josé foi ministro da educação e nesse período educou umas pessoas à bastonada e mandou outras estudar na guerra em áfrica. o josé, trinta e tal anos depois, enquanto inventava coisas sobre portugal a ver se as pessoas se esqueciam dos belos gestos que teve, conseguiu afirmar que o seu amigo antónio era um democrata.

eu sei que sou mau. mas quando morrer digam mal de mim. não façam de mim o homem bom que nunca fui. não transformem fascistas em democratas. nunca. não digam que fascistas foram grandes homens e gente importante. nunca.

terça-feira, 3 de julho de 2012

solidão

a noite as árvores a chuva miudinha os pingos nas costas o tabaco as caixas multibanco a fazer barulho os talões as ameixas no chão as mensagens de telemóvel as chamadas de números desconhecidos que só dão música clássica a angústia um fundo de tristeza que não deixa de estar temperado com alegria a melancolia o atraso de vida aos vinte e cinco anos de idade a caminho dos vinte e seis

sábado, 30 de junho de 2012

nunca estás quando eu quero

nunca estás quando eu quero. hoje queria que cá estivesses para te perguntar como ias reagir se tivesses de ir ao casamento do teu ex-namorado, com quem partilhaste a vida durante cinco anos. está para me acontecer uma coisa parecida e gostava de saber a tua opinião, como ias reagir. queria saber se também ficou tudo bem resolvido entre ti e ele, mas se mesmo assim não ia ser estranho estares lá naquele dia. queria saber que tipo de alegria seria a tua. queria saber se ias chorar. queria saber se ias chorar de alegria ou de tristeza, ou de um misto das duas. mas não vou ficar a saber. não estás cá. ninguém está cá. não está ninguém para me ouvir quando eu preciso. ninguém me ouve, logo a mim que ouço a todos. espera: Tu, ó Deus, enches por completo os espaços!

quarta-feira, 20 de junho de 2012

não importa a viagem

o que interessa não é a viagem mas o começo
HAROLDO DE CAMPOS

para lá das tuas confusões
está a minha dificuldade com o compromisso
está a minha distância em relação ao espaço

li «os verdadeiros viajantes são
os que partem por partir»
digo, os verdadeiros homens são
os que se sabem peregrinos

gosto de fechar a porta da casa
sem saber se vou voltar

e isso nunca irás compreender

segunda-feira, 18 de junho de 2012

democracia e outras "cracias" piores

não é com prazer que o digo, mas hoje, finalmente, cheguei a esta conclusão: o meu melhor amigo é fascista. demorei a perceber isso, talvez por não querer acreditar que fosse verdade. hoje sei que é. ele tem um grande sentido de superioridade moral (de quem acha que é o melhor no trabalho, que os outros são todos uma cambada de preguiçosos que não fazem nada e que isto está mal porque as pessoas gostam de se divertir; de quem passa a vida a criticar as pessoas do sul da europa em desfavor das pessoas do norte europeu [quem mais vi eu a fazer isto, terá sido na alemanha dos alvores do século passado?]). ele toma muitas decisões por capricho e avalia as situações de acordo com o seu capricho (quando ele se está a divertir é porque é o "descanso do guerreiro", quando os outros se estão a divertir são calões e não sabem fazer outra coisa). ele acha que viver sempre para os outros é mau, que não devemos ser demasiado bons porque isso amolece os outros. devemos pôr-nos a nós mesmos em primeiro, e só quando algo for conveniente é que devemos servir os outros. e eu começo a ter dificuldade em lidar com uma pessoa assim. é difícil ser amigo de uma pessoa com uma visão política tão radical e tão perigosa, tão xenófoba, tão nazi. se alguém souber como se pode ajudar alguém a resolver o fascismo de um amigo, agradeço a preciosa ajuda.

domingo, 3 de junho de 2012

jacarandás


quando as árvores de flores roxas
chovem na cidade

as ruas transformam-se
numa procissão dos passos

mas só para aqueles que na cidade
ainda olham para o chão

e para os que olham para o céu
e vêem: as árvores chovem flores roxas

sexta-feira, 18 de maio de 2012

beijos incómodos

"adeus, e beijinhos". "adeus. um beijinho também para ti, junto ao umbigo, do lado esquerdo". "és tão parvo". "sou?". "sim". eu sei. fiz isto de propósito. quero-te deixar na dúvida - gosto da dúvida. vais ficar a pensar se eu não queria algo mais, a mandar-te beijinhos para o umbigo, do lado esquerdo. vais ficar a pensar até que ponto, eu, tão bom observador, não te vi já de alguma forma o umbigo e não o acho bonito ou, pelo menos, especial. vais olhar para o teu umbigo antes de ir para a cama, e adormecer com as mãos lá de volta, do lado esquerdo. vais-te lembrar de mim. até que comeces a olhar com atenção para as imperfeições do teu umbigo - não há umbigos perfeitos, ou ganham cotão ou são daqueles saídos e feios, que revelam falta de cuidado das mães para com os seus rebentos. aí, vais achar que eu só te queria provocar e deprimir ainda mais, já que era, até te ter mandado beijinhos para junto do umbigo, do lado esquerdo, a única pessoa que gosta de ti, e talvez até a menos importante para ti, que não passava o tempo a criticar esses quilos a mais e o cabelo demasiado comprido. "afinal, até este me critica. não tem coragem de falar no meu duplo queixo nem nos meus cabelos espigados mas de certeza que acha o mesmo... o meu umbigo é feio, sim, olho-o e é feio, mas ele não deve ter reparado nele. isto é só mais uma indirecta. estou gorda e feia, e não vêem que estou feliz assim". não, ficas a saber, não. este não critica. este só vai mais longe do que os outros. só arrisca mais que o resto dos homens. só se preocupa mais com as pessoas, contigo, mais do que muitos dos que te levaram para a cama e nem se lembraram que te podiam beijar junto ao umbigo, do lado esquerdo. só quer viver num mundo de risco, de momentos fora do comum, de coisas diferentes. só quer viver num mundo de pessoas que cospem, que coçam os tomates, que riem alto, que cantam e falam sozinhas na rua. mando-te beijinhos para a barriga, perto do teu umbigo, porque não quero um mundo todo muito higiénico e civilizado, onde não haja lugar para olhares que brilham e sorrisos e gargalhadas e olhares arregalados para quem age de forma diferente. um mundo muito higiénico e civilizado não é um mundo de pessoas.

domingo, 6 de maio de 2012

corações avariados

não sei amar como os outros homens. não consigo encontrar ninguém que possa amar como eu quero e que me deixe amar os outros como eu quero. devo ter o coração estragado. o amor estraga os corações, incha-os até que rebentem. há quem diga que a falta de amor seca os corações mas isso deve ser bem mais fácil. morro por amor mas quando depois me apetece ter umas breves ressurreições acabo por estragar tudo. eu não presto. se não morrer não posso amar. se não te deixar viver a ti não posso amar. se não te deixar viver em mim não posso amar. se continuar a ter medo de estragar um coração (será que há mecânicos de corações?) não posso amar.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

o céu é só para os padres

Depois do grande Papa João Paulo II, os Senhores Cardeais elegeram-me, 
simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor.
Consola-me saber que o Senhor sabe trabalhar e agir
 também com instrumentos insuficientes. 
E, sobretudo, recomendo-me às vossas orações.
Bento XVI

certos dias tenho pena de saber ler. certos dias tenho pena de viver num mundo onde as pessoas têm tantas ferramentas para comunicar e, dessa forma, dizerem o que pensam e o que sentem e partilhar isso com quem quiser ler de maneira, digamos assim, eterna. certos dias tenho pena disso tudo porque há pessoas que escrevem coisas que magoam muito outras que têm dois dedos de testa, mesmo quando não se apercebem de o estar a fazer. 
passei cinco anos da minha vida no seminário, e esse tempo, além de outras coisas que me deu, também me permitiu criar laços com padres e com outros que se preparam para o ser. e são estes últimos, e os que são padres há pouco tempo (e que, portanto, ainda conheci na categoria de pessoas que se preparavam para ser padres), que me preocupam mais e que, como dizia, inconscientemente (acredito eu) me magoam e magoam a grande maioria dos cristãos conscientes que há no mundo.
esta gente nova deixou de saber falar sobre a especificidade da missão do padre. não percebem que o que eles têm é uma missão específica, o que é distinto de uma missão diferente, principalmente se entendermos por diferente mais elevado, melhor. enchem a boca para dizer que são os que o Senhor escolheu, que são os que se entregaram totalmente a Deus, que se entregaram ao serviço da Igreja para sempre e outras barbaridades do género. enchem a boca para dizer que são os melhores que a Igreja tem (mesmo que depois completem estas afirmações com o paleio do servo que é indigno de ser chamado a entregar-se totalmente a Deus, ser escolhido por Deus e servir a Igreja para sempre). e este tipo de afirmações magoam-me, e certamente magoarão a grande maioria dos cristãos conscientes da sua missão.
na semana passada, o meu pai andou com uma grande dor de costas, por causa de uma mesa que teve de carregar, sozinho, à conta de uma reunião com pessoas da Igreja. na minha casa é impossível encontrar pessoas na tarde de sábado porque estamos todos a dar catequese. eu faço, neste momento da minha vida, perto de duzentos e cinquenta quilómetros por dia para dar aulas de emrc. a minha mãe dá, feitas as contas, um fim-de-semana por mês para ajudar a formar catequistas na diocese onde vivemos. mas nós, porque não há quem nos ponha as mãos na cabeça quando nos ajoelhamos, não nos entregamos totalmente a Deus. não somos escolhidos por Ele. não estamos eternamente ao serviço da Igreja. nem sequer conciliamos o tempo para esse serviço com o tempo para ganhar dinheiro para poder comer, pagar contas e ainda para ajudar a sustentar os padres que, esses sim, se entregam totalmente a Deus e ao Seu serviço.
a sorte é que ainda me resta um consolo. no fim, se fizer por merecer o Céu, não me vou encontrar com eles. porque, nessa hora, das duas uma: ou eles têm razão e eu, como todos os que não forem ministros ordenados, vou, no máximo, chegar ao purgatório (porque nunca consegui atingir esse estado de vida que me permitisse a união com Deus, que como é sabido é incompatível com o estado laical, particularmente no caso dos que contraem matrimónio); ou eu tenho razão, e a arrogância vai continuar a ser um pecado bem grave, e essas pessoas vão estar no inferno. total e eternamente.
esta tralha toda para dizer: amigos que vão ser ou são padres recentemente, resolvam estes problemas de linguagem (prefiro acreditar que é só um problema de escolha das palavras ou de organização das mesmas) enquanto forem novos. é que, de facto, sem padres não há Igreja, porque não há Eucaristia, mas se não houver pessoas que se reúnam na Eucaristia (e a arrogância de se achar radicalmente diferente, para melhor e mais puro, pode afastar as pessoas), não vale a pena haver padres.

terça-feira, 24 de abril de 2012

O que é um monstro?

vai perguntar ao teu senhor
que coisa é uma candeia

Nos últimos anos, têm-se multiplicado projectos em que se transforma lixo em arte (dentre estes, gostaria de salientar o Recicl'Arte, por ser coordenado por duas pessoas que são minhas amigas). Se quisermos olhar mais fundo, iluminados por uma candeia, que ajuda a ver melhor, mesmo de dia (como a que Diógenes usava na Acrópole de Atenas), percebemos que isso pode ser importantíssimo.
Ninguém dá nada pelo lixo. É uma coisa incómoda, feia, suja. Não tem utilidade nenhuma, por isso habitualmente se queima ou se enterra. A nossa sociedade habituou-se a criá-lo mas depois não tem destino para lhe dar. Torná-lo numa obra de arte, e assim fazer dele uma coisa que possibilita uma experiência de encontro com a beleza (se a arte não quiser proporcionar isso, então mais vale que acabe), é olhá-lo com olhos novos. Tornar lixo numa obra de arte é acreditar em causas perdidas, é não desistir, é ver para além do que os olhos vêem.
A arte feita com lixo, em si, continua a não ter, para mim, ainda assim, muito interesse. O que tem mais interesse é levar esse espírito para a vida. Digo isto porque, infelizmente, hoje há pessoas que são como lixo - os monstros. A nossa sociedade criou-as e tornou-as incómodas, feias, sujas. Não têm utilidade nenhuma, por isso as marginalizamos antes de as queimar ou enterrar. Inventámos o conceito de cidadania, que apregoamos por toda a parte, para poder fazer isso (não esquecer que o cavalo de Calígula era cidadão, chegando até a ser cônsul, mas nunca poderia ser uma pessoa...). Queremos bons cidadãos mas esquecemo-nos de procurar boas pessoas. O que podemos fazer, então? Aprender com as pessoas que transformam lixo em obras de arte. Aprender a olhar com olhos novos para quem ninguém olha. Aprender a não desistir de ninguém, a ver para além do que os olhos vêem. Aprender a fazer do outro - de cada um dos outros que se cruzam connosco - uma obra de arte, uma coisa que permita uma experiência de encontro com a beleza. Porque um monstro, como uma garrafa de plástico, pode transformar-se numa peça magnífica. Tenhamos nós candeias para a ver.

terça-feira, 17 de abril de 2012

"forever" is dead

quando acabaste comigo, disseste-me que era porque não acreditavas num amor para sempre, nem que o nosso amor pudesse ser sempre tão bom como na altura era. até hoje continuei a pensar nisso, pelo menos sempre que pensava em ti. afinal, deixaste a nossa pequena vila e fugiste para a grande cidade à procura de um emprego que durasse mais de seis meses, e eu pensei que lá ias tu em busca de um emprego para sempre. noutro dia, liguei a televisão num daqueles canais de notícias e lá ias tu de cartaz na mão à frente de uma daquelas manifestações que agora estão na moda. no teu cartaz, li que estás indignada porque o estado pode ter de acabar com as pensões de reforma. eu soltei um riso irónico, porque pensei que também achas que as reformas deviam ser para sempre. na internet, procurei o teu nome e descobri que andavas a debater em fóruns ambientais sobre o fim do petróleo, que achas que ainda vamos a tempo de evitar - para ti, até o petróleo devia ser para sempre. foi nesse momento, em frente ao meu computador, que decidi desistir de ti. a única coisa que para ti não é para sempre é a mesma que para mim não consegue deixar de ser. nesse instante, percebi que tinha de mudar o objecto da minha afeição, porque seria certamente capaz de viver num mundo sem petróleo e sem reformas e sem empregos mas não ia aguentar nem um minuto num mundo sem amor, e amor para sempre. levantei-me e fui à janela ver casais de velhos a passar lá fora. são, enfim, os únicos que ainda acreditam no mesmo que eu.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

memórias

já não me lembro do teu nome. sei que moras em évora, numa casinha branca à moda do alentejo, já a sair da cidade. sei que andaste comigo na escola durante cinco anos, e te sentavas muitas vezes ao meu lado porque sabias que podias olhar sempre para o meu caderno. sei que o teu cabelo cheirava a laranjas boas e nunca tinhas unhas partidas nem pintadas. sei que ias para casa sozinha e tinhas a chave debaixo de um tapete azul. sei que não estudaste e decidiste ir embora. sei que és casada e tens três filhos. ainda hoje não percebo por que deixaste espinho e foste para évora. só sei que foi depois daquele passeio de moral à serra da estrela onde me deste a mão e um beijo para meter ciúmes àquele rapaz loiro de lisboa que também lá estava. hoje posso dizer-te que na altura não percebi isso, achava que estavas mesmo a gostar de mim e que isto ia ser para sempre, como nos filmes. tínhamos catorze anos e podia ser sempre assim. isto, mantenho. não é por ter agora quarenta e três que vou deixar de achar que não devíamos ter catorze para sempre. depois desse beijo, nunca devias ter ido embora. nunca devias ter ido tentar um lugar na repartição de finanças de évora só porque não havia lugares aqui no norte. nunca te devias ter ido embora. devias ter-me dado tempo para te dizer que esse beijo mudou a minha vida e que sou louco por ti. que ainda hoje não arranjei ninguém e continuo à tua espera. mas a verdade é que não deste. foste para évora, assim de um dia para o outro, e pronto. não foi? não foi... ai! caraças! pois é, já não me lembro do teu nome. dar nome é uma coisa é possuí-la, e eu sei que nunca te vou ter para mim.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

saudades

fico até às tantas à tua espera naquele bar de sempre, onde conversávamos sem parar e ríamos até eu ter de te mandar para a cama. tenho saudades tuas, do teu sorriso e dos teus olhos e da tua cara de surpresa perante as minhas parvoeiras. tenho saudades de ti tão frágil, e de mim a ter tanto cuidado com cada palavra para não te quebrar de alto a baixo. tenho saudades da tua humildade em luta com a minha e de dizeres que és a maior ignorante do mundo para eu te dizer que não, e de te dizer que sou a maior besta do mundo e que sou um insensível para tu me dizeres que talvez não seja bem assim. tenho saudades de, naqueles bancos a imitar rústico mas feitos de fórmica, me dizeres coisas que nunca disseste a mais ninguém, e de eu te poder dizer coisas que não digo a mais ninguém, como se as estivesse a dizer a mim próprio. tenho saudades do cigarro fumado debaixo daquele candeeiro ao pé do teu carro, onde tinha de te enfiar como a um porco no camião do matadouro, para me deixares e ires até casa (não sei se alguma vez soubeste disto, mas eu depois de entrar no meu carro fingia sempre que estava a arrumar uns papéis e umas coisas para te ver sair primeiro que eu e ter a certeza que ias mesmo embora e me deixavas. cheguei a perseguir-te até casa para garantir que não ias tu atrás de mim). tenho saudades de inventar coisas para ti, que depois dizes que em tantos anos nunca ninguém te tinha feito. tenho saudades dos compromissos que fazemos, mesmo quando só um de nós os cumpre. tenho saudades. e tenho medo, porque se tenho tantas saudades tuas talvez seja porque este amor (o que vai de mim para ti) já não é só o que há entre amigos, por muito que esse me chegue e sobre, e já vá muito para além do que eu mereço de quem quer que seja - por várias razões: as principais são ser algo sem sentido, irrealizável, ridículo e estúpido. e porque esse tipo de amor, com o qual nunca vou saber lidar, pode estragar tudo. até as saudades.

(este é um texto de ficção. qualquer tentativa de ver nele a realidade da vida do seu autor é estupidez e perda de tempo)

o biblós

hoje encontrei uma ex-livreira que anda a aprender a encadernar livros. esse encontro, que não teve nada de especial e no qual só aconteceu ficar a saber que a senhora está a aprender a arte de encadernar livros por causa da falta de vergonha da minha mãe (a falta de vergonha às vezes pode ser uma coisa positiva, como neste caso; pior é quando se é um bicho-das-cavernas-pouco-mais-que-solitário como eu), pôs-me a pensar em duas coisas. 
por um lado, em como deve ser feliz (e em como é, sem sombra de dúvidas, viciante) uma vida em torno dos livros, tanto que quem uma vez trabalha com eles nunca mais os consegue largar. é maravilhoso amar um livro: amar o seu conteúdo, o que transmite, o que faz pensar, o que faz sentir, e amar o livro em si, como artefacto, como obra de arte, como utensílio precioso.
por outro lado, também dei por mim a pensar na situação dos ex-livreiros. as pessoas só se lembram que há livreiros, e que eles são bons e até ganham prémios, quando estes têm necessidade de fechar as suas livrarias. nesse momento, sim, é muito importante para todos que haja ali aquela pessoa que é tão simpática e tão boa a vender livros, quando durante anos a fio ela teve de se aguentar quase por milagre porque ninguém lá ia comprar nada. para a maioria das pessoas, uma livraria deve ser como uma loja de ferraris. é muito bom que a nossa terra tenha uma, para podermos dizer que existe, mas nunca lá entramos, porque não podemos comprar o que lá se vende. no caso dos ferraris, porque não temos dinheiro. no caso dos livros, porque não vale a pena perder tempo com isso, que é mas é coisa de intelectuais ricos ou de gente que não sabe o que é a vida e perde tempo que poderia ocupar preciosamente a trabalhar nas obras ou no campo, onde se sua a sério.
de facto, e era aqui que queria, mesmo, chegar, a verdade é que vivemos num país de pessoas que não lêem. repito, que não lêem. e não estou a falar sequer de ler livros bons, embora isso me preocupe. estou a falar de ler um contrato, ler uma notícia de jornal inteira, sem deixar passar aquela frase que serve de chave de leitura para o artigo, ler a porcaria de um status de uma rede social até ao fim e interpretá-lo melhor do que uma pessoa de dois anos. ler, nem que seja, um talão do multibanco, o rótulo de um pacote de batatas fritas (um dia, contaram-me de um senhor que lia tudo quanto podia, que até apanhava coisas do chão para ler. quando paro em frente a uma montra ou me apanho a ler coisas recolhidas do chão ou coladas em postes e caixotes do lixo, lembro-me de como deve ser sábio esse homem). 
as pessoas acham que ler não é importante e não serve para nada. acham que a matemática é mais importante que saber ler, escrever e pensar. as pessoas acham que a internet e os computadores substituem os livros, como se eles fossem só papel e tinta inúteis. as pessoas acham que não se pode amar um livro. as pessoas acham isto tudo mas depois também julgam que as livrarias, que são lojas, não devem fechar, mesmo que nunca lá vão comprar nada, porque, na verdade, nem sabem muito bem o que se lá vende.

nota do autor: este texto parece acabado à pressão, e foi. estava a ficar demasiado grande e depois ninguém ia ter paciência para o ler.

domingo, 8 de abril de 2012

Desejos de uma Santa Páscoa!

τότε οὖν εἰσῆλθεν καὶ ὁ ἄλλος μαθητὴς ὁ ἐλθὼν πρῶτος εἰς τὸ μνημεῖον καὶ εἶδεν καὶ ἐπίστευσεν·

Então, entrou também o outro discípulo, o que tinha chegado primeiro ao túmulo. Viu e acreditou.

Jo 20, 8

domingo, 25 de março de 2012

os olhos da marisa

os olhos verdes da marisa são lindos. tão lindos como eu já não via há muito tempo. a marisa também tem um sorriso bonito e não leva quase nada a mal, nem os devaneios dos bêbados. a marisa dança bem, coisa que eu nunca farei. a marisa é simpática e fica bonita até a fumar. eu era capaz de me apaixonar pela marisa, se acreditasse que ainda há esperança para os gordos no amor. e se ela não andasse a ser cortejada por um amigo do meu melhor amigo, que talvez vá ser meu amigo também. e se eu não fosse um gajo de princípios parvos e desactualizados. 
se ela olhasse para mim com aqueles olhos, com aqueles olhos verdes lindos assim, eu até chorava, porque afinal havia esperança para os gordos no amor. o amor mete-me parvo. perdão, ainda mais parvo.

sexta-feira, 23 de março de 2012

rua principal, garagem e quarto

hoje encaixotei a minha vida

coube tudo em três caixotes:
os livros e os discos e os filmes
os livros de estudo e os livros de oração
os livros que mudaram a minha vida e aqueles em que nem toquei
os discos de que gosto muito e os que nunca ouço
os filmes de que me lembro todos os dias e os outros todos
naqueles três caixotes está um tesouro
naqueles três caixotes está uma vida
naqueles três caixotes estou eu

mesmo que ninguém os quisesse para nada
nem os conseguisse vender a ninguém

quinta-feira, 22 de março de 2012

Um ginásio é como uma igreja

Numa sociedade que rejeita as formas instituídas de religião, porque afirma que estas, ainda que tragam bem, vêm sempre acompanhadas de alguma forma de mal, nunca faltam formas de substituição ritual. Afinal, o Homem é um animal ritual, e se não tem os rituais religiosos encarrega-se de arranjar outros. Desde a maçonaria, aos rituais inventados nos copos de água nos casamentos (por causa dos casamentos civis e das uniões de facto celebradas em festa, que perdem riqueza ritual face às celebrações das religiões instituídas), não faltam exemplos disso. 
Um exemplo que, de há uns tempos para cá, ganha forte vigor é o da religião do bem-estar. O que interessa é o bem-estar, associado a uma felicidade que é qualquer coisa como uma vida perfeita, sem dores e sofrimentos (daí que a religião do bem-estar defenda o aborto e a eutanásia, porque se vem para cá para sofrer mais vale não vir, e se já está a sofrer mais vale ir embora depressa). 
A religião do bem-estar é ainda incipiente, por isso vive agora o seu período de cruzadas: daí a luta contra os tabagistas, que poluem o meio-ambiente e se destroem a si mesmos em nome do prazer; contra os que bebem bebidas alcoólicas, mesmo que com moderação, porque o álcool desidrata; contra os que comem calorias a mais, porque prejudicam o colesterol e os açúcares (estes dois senhores são o diabo desta religião).
A religião do bem-estar folga em criticar outras religiões instituídas, em particular o Cristianismo, porque pede às pessoas uma hora por semana, pede-lhes oração e jejum, pede-lhes esmola. Os senhores do bem-estar gostam de criticar os cristãos porque as suas Igrejas têm propriedades, têm templos visíveis e bem identificados no espaço público. Lamento informar os senhores da religião do bem-estar, mas vocês também têm isso tudo. Para começar, têm um templo, que usa o nome de ginásio (na sua totalidade, estão bem identificados e bem visíveis no espaço público). Como tal, já há propriedade. Pedem às pessoas bem mais do que uma hora por semana, e apenas por causa dum bem-estar que até pode nem vir, não para cultivar uma relação de amor com um Deus pessoal e com os irmãos reunidos em comunidade. Não pedem oração, mas compensam isso com pedidos incessantes de fortes jejuns para perder aqueles quilinhos a mais (ainda por cima, jejuns vazios de sentido espiritual; em vez de um jejum que me faz livre do que afinal descubro supérfluo, faço um jejum que me faz escravo da imagem perfeita de mim). Pedem esmolas, que muitas vezes andam próximas dos quarenta euros por mês.
As pessoas da religião do bem-estar não existem. Porque vivem num mundo que não existe. Onde não há dor nem sofrimento. Onde somos todos atléticos, sem vícios, bonitos e jovens. Sem problemas de alcoolismo e sem infecções respiratórias. Com saúde. Sem prazeres que não sejam os sexuais (sim, que aí a moral dos fiéis pode ser lata; talvez como forma de compensação, mas isso sou eu, um moralista cristão, que sugiro). As pessoas da religião do bem-estar vão morrer mais tristes que os cristãos, com mais angústia, por muito que nos acusem da noção de culpa e de parecermos tristes no nosso dia-a-dia. Os cristãos sabem que vão morrer e os fiéis do bem-estar não.

quarta-feira, 21 de março de 2012

a árvore que vive de pé

queria ser austero como um cipreste
e nunca vestir roupa de gala
viver à porta de um cemitério
onde o meu trabalho era só apontar para o céu
e onde vivia em silêncio
o silêncio que guarda os grandes mistérios

no dia da poesia faço silêncio

comemora-se hoje o dia mundial da poesia. aqui no blog, porque gosto de vários poetas e não quero escolher uns em favor de outros nem pôr um post demasiado extenso, assinalo a efeméride com esse silêncio e mando-vos a vocês, a cada um, ir hoje ler poemas. comprar livros de poesia. aprender a gostar de poesia.

sábado, 17 de março de 2012

à tarde os homens traçam a perna

i

este sabes que é por tua causa

era hora do lanche e ele, como sempre, foi até ao café, porque ao menos havia pessoas diferentes e gente a passar. sentou-se na esplanada, por causa da lei do tabaco, e traçou a perna, como tanto gostava de fazer. pôs-se na sua condição de observador. divertiu-se a ouvir as conversas dos outros, sobre férias de verão em viseu, o drama da pele seca e os comportamentos dos alunos de hoje em dia, enquanto comia o croissant duro de três dias, mas vendido ao preço de um fio de ouro acabadinho de fazer. uns colegas ainda se sentaram com ele, mas as conversas foram só de ocasião, e eles estavam com pressa e foram embora. de repente, quando já não esperava, viu passar uns indivíduos de colete para dentro do café. não percebeu bem quem eram, mas aquela sua atracção natural pelo abismo, que dizem ser sinal de maturidade dos homens, fê-lo ir atrás deles. eram uns senhores de um serviço do estado, que tinham ouvido dizer que uns aparelhos do estabelecimento não andavam a trabalhar bem e aquilo tinha de ser encerrado. o homem do café desatou a chorar, enquanto a mulher tentava subornar os senhores de colete. os homens disseram que as leis são para cumprir e que pelo que eles viam havia umas arcas que já não trabalhavam faz tempo. puseram toda a gente na rua e deixaram um papel na porta. «avaria no equipamento». ele adorou toda a situação, mas depois ficou triste. já não tinha onde ir lanchar e pensar em como é bom subir as dunas de salir no verão, não ter a pele seca e saber que os alunos de hoje em dia são como os de antigamente, e são filhos dos amigos dele. já não tinha onde poder traçar a perna e ver pessoas.

ii

com um excerto de um poema de Luís Filipe Parrado

- olha lá, andas aí com as mãos e depois vais metê-las no folhado?
- então, hoje está frio, que a noite cai, e quando traço a perna cria-se ali calor naquele sítio e meto lá a mão para aquecer.
- já te expliquei que não se come sem lavar essas mãos.
- mas... eu lavei as mãos!
- pois, para depois andares com elas aí nas virilhas e depois as levares à boca.
- pai, não me chateies, eu até tenho estas calças novas e lavadinhas e tudo, também.
- não quê? meu filho, um homem quer-se de mãos lavadas. não há nada que as mulheres mais gostem que um homem de mãos lavadas. escreve o que eu te digo.
- pai?
- escreve o que eu te digo.
- pai!!!
- sim?
- não quero ser médico. quero escrever.
- à mão?
- quero ser escritor. daqueles a sério, que escrevem romances que mudam a vida das pessoas.
- ah, então isso é sério.
- sim, pai, já fiz chorar uma pessoa. já fiz rir muitas pessoas. como médico, nunca me senti verdadeiramente a salvar ninguém.
- meu filho, 
«Antes
de te sentares
à mesa
lava bem
essas mãos»

 iii

quando traço a perna ao pôr-do-sol ele diz-me que fico linda. quando uso rabo de cavalo ele diz-me que fico linda. quando ponho aquele batom ele diz-me que estou linda. quando uso aquele eyeliner diz-me que estou linda. quando trago aquela blusa e a saia creme diz-me que estou linda. quando uso saltos altos diz-me que estou linda. de inverno, diz-me que estou linda. de verão, diz-me que estou linda. até no outono me diz que estou linda. na primavera, então, estou tão linda. quando me rio, diz-me que estou linda, diz-me que o meu sorriso é lindo e que nem a chorar deixo de ser linda. digo que o quero, digo que o amo. e ele não me diz nada. cabrão.

quarta-feira, 7 de março de 2012

de manhã os homens riem

i

sete da manhã na cidade grande. os transportes públicos já fervilham de gente e preparam-se para receber mais aventureiros. o homem passa os torniquetes e encontra gente de todo o tipo. bonitos e feios, lavados e sujos, ricos e pobres, sãos e loucos. os segundos despertam-lhe sempre um sorriso. não porque ele seja pessoa de fazer pouco dos menos capacitados. a questão é outra. o homem encontrou o amor e isso mudou-lhe o olhar. fê-lo conseguir ver mais além. fê-lo ver o que os outros não vêem. mostrou-lhe que naquilo que parece frágil pode haver uma coisa mais para adorar. e isso fá-lo, todas as manhãs, rir para aqueles a quem já ninguém ri.

ii

«ganhei o euromilhões», gritava ele pelas ruas, enquanto deixava o café do bairro depois do pequeno-almoço. «a minha vida vai mudar», dizia a um amigo que encontrou na rua, a caminho do emprego. nunca acreditara que o dinheiro pudesse trazer felicidade e mudar a vida das pessoas, mas tanto dinheiro ia mesmo fazer diferença. o amigo perguntou-lhe se, com o prémio, não ia fugir dali, que a vida está difícil e isto não presta. mas o homem respondeu que não, que tinha de ficar por cá. o dinheiro só lhe podia mudar a vida se não fosse embora. o que ele queria era usar o dinheiro para lhe dar tempo para as pessoas. afinal, o que a falta de dinheiro lhe roubava eram as pessoas, a mulher e os filhos e aqueles amigos a sério. o euromilhões tinha-lhe devolvido as pessoas e era por isso que ele agora ria como nunca.

iii

sou só mais uma mulher comum. não me queixo de ser gorda nem tenho ciúmes das que são mais magras do que eu. não prendo o meu homem a mim só por ir para a cama com ele. não tenho filhos. pago os impostos e não me queixo de não ser rica. não pinto as unhas, mas já tenho de pintar o cabelo, que a genética tem destas coisas. trabalho das nove às cinco numa repartição pública onde sou feliz. saio sexta à noite com as amigas, naquelas saídas só de mulheres. vou ao teatro com o meu marido e fico a pensar que já tenho idade e estatuto para ter um amante. afinal, até nem sou feia. tenho uns dentes bonitos e uns olhos, ui, os meus olhos. quando de manhã me olho ao espelho rio-me, porque sou só uma mulher comum. que não quer ser mais do que isso.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

à noite os homens choram

i

durante o dia, ele era um homem bastante forte. carregava sacas de batatas às costas e grandes quantidades de sacos do supermercado ao mesmo tempo. aproveitava-se da sua condição de patrão e maltratava os empregados e até os clientes. no fundo, queria mostrar tudo o que lhe tinham ensinado nos anos que passou na tropa, que a vida não se compadece dos fracos e que não se pode ser manso e educado com as pessoas senão elas amolecem. a verdade é que por causa das suas atitudes já ninguém gostava dele, nem sequer a mulher, que só mantinha aquela relação porque havia filhos, e esses tinham mais a ganhar com uma família estável, mesmo que infeliz. o homem andava com problemas - para se ser tão malcriado só se pode ter grandes problemas - mas com apenas um a afligi-lo a sério (que não, não era o facto de ninguém gostar dele por ser mal educado; essa atitude ele achava-a necessária e certa). o problema dele, o que o preocupava mesmo, manifestava-se à noite, quando a mulher ficava a tratar de papéis da contabilidade e ele recolhia sozinho à cama. deitava-se, abraçava-se à almofada e chorava amargamente. o seu verdadeiro problema era não haver ninguém que o amasse. nenhum homem bonito e atraente e jovem. todos os carnavais ele se mascarava de mulher, com uma cabeleira loira e uns saltos altos, para ficar como na verdade se queria e a ver se despertava a atenção de alguém, de algum homem que lhe quisesse dar amor. mas nunca chamava a atenção de ninguém, só se tornava cada vez mais ridículo. e isso doía-lhe como mil mortes. chorava, gemia, mas tinha de limpar as lágrimas antes de ter companhia, porque os homens são fortes. a mulher não o podia ver chorar - os homens são fortes. no dia seguinte, acordava cedo, e voltava à sua vida de carregar batatas ao ombro e tratar mal as pessoas, porque os homens são fortes.

ii

quando fechava a porta e entrava no quarto, abria-se em pranto. todos os dias, sabia que ela tinha outro. isso, em si, não o fazia chorar, porque ele sabia que ela até era feliz. o que o fazia chorar era a dúvida. será que o outro também saberia daquele brilho nos olhos dela? saberia ele daquele sorriso? saberia dizer-lhe poemas de cor, daqueles que falam do amor verdadeiro? quereria ele levá-la à praia e passear de mão dada à beira-mar ou seria antes dos que preferem passear em centros comerciais, a tirar fotografias e a entrar em lojas onde fingem não estar enfadados? será que ele vestia fato de treino aos domingos para ficar sentado no sofá a ver comédias românticas e a beber cerveja? isto, sim, amargurava o homem, porque apesar de tudo ele pensava que podia ser melhor. afinal, ele conhecia aqueles olhos, aquele sorriso, aquelas mãos, não começava logo a olhar-lhe para as mamas. nunca viu nela uma máquina de sexo. depois de se pôr não sei quanto tempo a pensar nisto, enxugava as lágrimas, porque os homens não podem ser piegas. voltava-se e adormecia.

iii

os ataques de tosse só lhe davam à noite, e faziam-no chorar. durante o dia não podia estar doente, porque os homens são rijos e fortes e não têm dores de cabeça nem tosse nem febre nem expectoração. substituía os remédios por mezinhas porque ir ao médico não é de homem e os nossos avós é que sabiam da vida. a tosse vai-se tornando cada vez mais forte, contrariando o efeito dos limões com mel e açúcar. começa a vir acompanhada de muita expectoração e começa a fazer falta um escarrador, como se usava no tempo dos nossos avós que nunca andaram na escola e a sabiam toda. o homem cada vez chora mais. tanta tosse já faz suar. mas há que ser forte. rezar. pensar noutras coisas. ser um homem. amanhã vai estar tudo bem. amanhã está tudo bem.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

oração do católico escolhido para fazer de Job

meu Deus,
eu me abandono a Ti.
deixa que venham todas as dívidas,
deixa que venha toda a solidão,
deixa que morram pessoas à minha volta,
deixa que adoeçam pessoas importantes para mim.
manda todas as operações,
manda todas as facturas,
manda todas as cartas com coisas para pagar,
manda todos os recibos com baixos salários.

mas deixa a minha a fé,
deixa o meu amor por Ti,
deixa a minha esperança na Ressurreição,
deixa a minha confiança na moral que me propões,
deixa-me acreditar no Amor.
deixa-me acreditar que é possível contemplar o Teu rosto,
porque estás Vivo, és o Vivente.

Meditação existencial

«Tornámo-nos, até ao presente, como o esterco do mundo e a escória do universo» (1 Cor 4, 13). Esta é a minha meditação quaresmal (no sentido de um desejo de humilhação que ponha Deus no seu lugar e a mim no meu), a minha meditação existencial, porque sei que serei feliz assim, como foram Paulo de Tarso e Francisco de Assis, e uma meditação para este momento concreto da minha vida, pois ao cabo de muitas reuniões de coisas sérias em escolas percebo que um professor também já não é nada mais que isto, que esterco do mundo, que um idiota [1 Cor 4, 10] (com a agravante de que a maioria não o é, nem quer ser, día tòn Christón), que uma pessoa que causa «escândalo para os judeus e idiotice para os gregos» (1 Cor 1, 23), mesmo num tempo em que já não se sabe quem são uns e outros e em que todos são desculpados, porque é a sociedade que é assim - somos livres e cada um deve fazer o que lhe dá na real gana; depois medem-se as consequências - e porque a psicologia explica e desculpa tudo - na verdade somos todos doentes. Depois pedem-me para ensinar valores, como se eu transformasse pedras em pão. Pedem-me para ensinar valores, pensando que eu ensino valores pouco elevados, como os deles. Mas o que eu quero ensinar são só valores elevados, valores a sério, como estes: «Queiram ser o esterco do mundo e a escória do universo».

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

noventa e cinco por cento inútil

noventa e cinco por cento das coisas que sabemos não servem para nada. afinal, somos pó e ao pó havemos de voltar. o crítico de cinema joão lopes apanha o metro na estação de roma. os caracóis podem dormir três anos seguidos. Deus é mistério, e podemos perder as ilusões quanto a saber muito sobre Ele, porque o mais que podemos é não nos enganarmos muito ao falar sobre o mistério. a mística cristã e a mística oriental de cariz budista têm três coisas em comum e outras três em que divergem. as cinzas usadas na quarta-feira de cinzas são feitas com os ramos do domingo de ramos do ano anterior. o crítico de cinema joão lopes usa uns óculos para ler que são parecidos com uns que comprei na h&m por seis euros e tal. os meus ganham pó, por andarem nos bolsos do meu casaco. afinal, de todas estas informações, a mais importante é que sou pó e ao pó hei-de voltar.

Os dias de penitência

Num tempo que é, para tanta gente, de penitência forçada, de sacrifícios impostos pela economia, hoje punha-me a pensar no sentido que tem a penitência quaresmal que hoje começa a ser proposta aos cristãos. Afinal, não são já tantos os sacrifícios que temos de fazer? Não é já tanto o que temos de deixar de comer? Não são tantas as coisas exteriores supérfluas que já tivemos de deixar?
A minha resposta, sinceramente, é não. Porque essas coisas deixámo-las por imposições exteriores. Os sacrifícios da Quaresma fazêmo-los por imposições interiores, para que o exterior diga do que vai dentro de nós. Faz sentido jejuar e fazer abstinência porque só assim Deus cresce e eu diminuo. Até é também verdade que assim muitas vezes me apercebo que eu, que penso que até faço grandes sacrifícios e poupo muito, na verdade tenho mais, bem mais, que muita gente. Percebo que ainda preciso de me limpar de muita tralha. E isso é bom. Como proposta para este início de Quaresma, deixo uma versão musical do De profundis, uma boa oração para a Quaresma, e depois o dito Salmo em português (fica ainda, aqui, o link para o texto original do Salmo).


1Cântico das peregrinações.
Do fundo do abismo clamo a ti, SENHOR!
2Senhor, ouve a minha prece!
Estejam teus ouvidos atentos
à voz da minha súplica!
3Se tiveres em conta os nossos pecados,
Senhor, quem poderá resistir?
4Mas em ti encontramos o perdão;
por isso te fazes respeitar.
5Eu espero no SENHOR! Sim, espero!
A minha alma confia na sua palavra.
6A minha alma volta-se para o Senhor,
mais do que a sentinela para a aurora.
Mais do que a sentinela espera pela aurora,
7Israel espera pelo SENHOR;
porque nele há misericórdia
e com Ele é abundante a redenção.
8Ele há-de livrar Israel
de todos os seus pecados.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Oração ou decisão unilateral?

Comecei por estes dias a rezar para que a Igreja faça de Messiaen Beato, Santo, ou Doutor da Igreja (esclareço que é uma oração que até tem fundamento, uma vez que não sou o único a achar isto; é uma opinião partilhada com pessoas que vivem verdadeiramente a música, a começar por Eurico Carrapatoso). E percebi que preciso de rezar cada vez mais, não vá alguém criar antes disso uma Igreja Católica Romana de São Olivier Messiaen, para fazer concorrência à Igreja Ortodoxa Africana de São John Coltrane...
Já agora, esta última Igreja fez-me lembrar da lista de Igrejas Evangélicas do Brasil. Que deve ser vista, por motivos de riso.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Fazer teologia sem palavras

Sendo uma das fontes da Teologia a Sagrada Escritura, é difícil conceber uma teologia sem palavras (a menos que nos estejamos a referir a uma teologia estrita do silencio). No entanto, isso está ao alcance humano. Olivier Messiaen vem prová-lo. É possível fazer teologia sem palavras, só com o som de um órgão. O senhor devia ser rapidamente qualquer coisa: Santo, Doutor da Igreja, Servo de Deus. Vale a pena ouvi-lo a fazer teologia (neste caso, vale a pena ouvir teologia escrita por ele).

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Don't worry

Ainda não nos tiraram o sol nem o riso

Por isso ainda há aquele restinho de esperança,
quanto baste,
para podermos ser felizes aqui.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Habemus Papam, de Moretti


Depois de um longo período sem ir ao cinema (confesso que o cinema "comercial" não me agrada muito, e falta-me o tempo [e o "tempo"] para ir à procura de outros filmes), fui esta semana ver Habemus Papam, de Nanni Moretti. E foi uma experiência que valeu a pena. Se é verdade que, sendo um filme que retrata os problemas de um Papa recém-eleito, se esquece do dado da fé (como reconhece a Rádio Vaticano), não deixa de ser verdade que é uma bela reflexão sobre a condição humana. O filme apresenta uma boa meditação sobre o drama do Homem perante as grandes decisões e as grandes responsabilidades, refere-se, com o suficiente grau de humor, às insuficiências da psicanálise (o Papa em tratamento acaba por agravar os seus problemas descobrindo que também sofrerá de deficit parental), consegue, falando da Igreja, não se assumir contra esta (ainda que também não se assuma a favor). Além disso, está bem filmado, tem muito bons actores e nota-se que houve cuidados sérios na investigação preparatória necessária à realização de um filme destes (o que vai rareando nos dias de hoje em todos os tipos de arte). Se assumo que não será um dos filmes da minha vida (mesmo entre os filmes que tratam de temas próximos da fé, e considerando apenas os relativamente mais recentes, não está ao nível, por exemplo, de Maria Madalena, do também italiano Abel Ferrara), acho que foi um filme importante para a minha vida. Por isso recomendo a todos que o vão ver. Se forem ao cinema Alvalade, como eu, há um bónus, que é verem o filme numa sala de cinema bonita e com boas condições, onde estará provavelmente pouca gente, o que significa menos barulho e desrespeito pelos outros, menos gente a comer pipocas de boca aberta, a atender telemóveis e a ver mensagens a toda a hora. Deixo ainda o link para o site oficial do filme, que pode sempre ajudar.