blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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domingo, 25 de março de 2012

os olhos da marisa

os olhos verdes da marisa são lindos. tão lindos como eu já não via há muito tempo. a marisa também tem um sorriso bonito e não leva quase nada a mal, nem os devaneios dos bêbados. a marisa dança bem, coisa que eu nunca farei. a marisa é simpática e fica bonita até a fumar. eu era capaz de me apaixonar pela marisa, se acreditasse que ainda há esperança para os gordos no amor. e se ela não andasse a ser cortejada por um amigo do meu melhor amigo, que talvez vá ser meu amigo também. e se eu não fosse um gajo de princípios parvos e desactualizados. 
se ela olhasse para mim com aqueles olhos, com aqueles olhos verdes lindos assim, eu até chorava, porque afinal havia esperança para os gordos no amor. o amor mete-me parvo. perdão, ainda mais parvo.

sexta-feira, 23 de março de 2012

rua principal, garagem e quarto

hoje encaixotei a minha vida

coube tudo em três caixotes:
os livros e os discos e os filmes
os livros de estudo e os livros de oração
os livros que mudaram a minha vida e aqueles em que nem toquei
os discos de que gosto muito e os que nunca ouço
os filmes de que me lembro todos os dias e os outros todos
naqueles três caixotes está um tesouro
naqueles três caixotes está uma vida
naqueles três caixotes estou eu

mesmo que ninguém os quisesse para nada
nem os conseguisse vender a ninguém

quinta-feira, 22 de março de 2012

Um ginásio é como uma igreja

Numa sociedade que rejeita as formas instituídas de religião, porque afirma que estas, ainda que tragam bem, vêm sempre acompanhadas de alguma forma de mal, nunca faltam formas de substituição ritual. Afinal, o Homem é um animal ritual, e se não tem os rituais religiosos encarrega-se de arranjar outros. Desde a maçonaria, aos rituais inventados nos copos de água nos casamentos (por causa dos casamentos civis e das uniões de facto celebradas em festa, que perdem riqueza ritual face às celebrações das religiões instituídas), não faltam exemplos disso. 
Um exemplo que, de há uns tempos para cá, ganha forte vigor é o da religião do bem-estar. O que interessa é o bem-estar, associado a uma felicidade que é qualquer coisa como uma vida perfeita, sem dores e sofrimentos (daí que a religião do bem-estar defenda o aborto e a eutanásia, porque se vem para cá para sofrer mais vale não vir, e se já está a sofrer mais vale ir embora depressa). 
A religião do bem-estar é ainda incipiente, por isso vive agora o seu período de cruzadas: daí a luta contra os tabagistas, que poluem o meio-ambiente e se destroem a si mesmos em nome do prazer; contra os que bebem bebidas alcoólicas, mesmo que com moderação, porque o álcool desidrata; contra os que comem calorias a mais, porque prejudicam o colesterol e os açúcares (estes dois senhores são o diabo desta religião).
A religião do bem-estar folga em criticar outras religiões instituídas, em particular o Cristianismo, porque pede às pessoas uma hora por semana, pede-lhes oração e jejum, pede-lhes esmola. Os senhores do bem-estar gostam de criticar os cristãos porque as suas Igrejas têm propriedades, têm templos visíveis e bem identificados no espaço público. Lamento informar os senhores da religião do bem-estar, mas vocês também têm isso tudo. Para começar, têm um templo, que usa o nome de ginásio (na sua totalidade, estão bem identificados e bem visíveis no espaço público). Como tal, já há propriedade. Pedem às pessoas bem mais do que uma hora por semana, e apenas por causa dum bem-estar que até pode nem vir, não para cultivar uma relação de amor com um Deus pessoal e com os irmãos reunidos em comunidade. Não pedem oração, mas compensam isso com pedidos incessantes de fortes jejuns para perder aqueles quilinhos a mais (ainda por cima, jejuns vazios de sentido espiritual; em vez de um jejum que me faz livre do que afinal descubro supérfluo, faço um jejum que me faz escravo da imagem perfeita de mim). Pedem esmolas, que muitas vezes andam próximas dos quarenta euros por mês.
As pessoas da religião do bem-estar não existem. Porque vivem num mundo que não existe. Onde não há dor nem sofrimento. Onde somos todos atléticos, sem vícios, bonitos e jovens. Sem problemas de alcoolismo e sem infecções respiratórias. Com saúde. Sem prazeres que não sejam os sexuais (sim, que aí a moral dos fiéis pode ser lata; talvez como forma de compensação, mas isso sou eu, um moralista cristão, que sugiro). As pessoas da religião do bem-estar vão morrer mais tristes que os cristãos, com mais angústia, por muito que nos acusem da noção de culpa e de parecermos tristes no nosso dia-a-dia. Os cristãos sabem que vão morrer e os fiéis do bem-estar não.

quarta-feira, 21 de março de 2012

a árvore que vive de pé

queria ser austero como um cipreste
e nunca vestir roupa de gala
viver à porta de um cemitério
onde o meu trabalho era só apontar para o céu
e onde vivia em silêncio
o silêncio que guarda os grandes mistérios

no dia da poesia faço silêncio

comemora-se hoje o dia mundial da poesia. aqui no blog, porque gosto de vários poetas e não quero escolher uns em favor de outros nem pôr um post demasiado extenso, assinalo a efeméride com esse silêncio e mando-vos a vocês, a cada um, ir hoje ler poemas. comprar livros de poesia. aprender a gostar de poesia.

sábado, 17 de março de 2012

à tarde os homens traçam a perna

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este sabes que é por tua causa

era hora do lanche e ele, como sempre, foi até ao café, porque ao menos havia pessoas diferentes e gente a passar. sentou-se na esplanada, por causa da lei do tabaco, e traçou a perna, como tanto gostava de fazer. pôs-se na sua condição de observador. divertiu-se a ouvir as conversas dos outros, sobre férias de verão em viseu, o drama da pele seca e os comportamentos dos alunos de hoje em dia, enquanto comia o croissant duro de três dias, mas vendido ao preço de um fio de ouro acabadinho de fazer. uns colegas ainda se sentaram com ele, mas as conversas foram só de ocasião, e eles estavam com pressa e foram embora. de repente, quando já não esperava, viu passar uns indivíduos de colete para dentro do café. não percebeu bem quem eram, mas aquela sua atracção natural pelo abismo, que dizem ser sinal de maturidade dos homens, fê-lo ir atrás deles. eram uns senhores de um serviço do estado, que tinham ouvido dizer que uns aparelhos do estabelecimento não andavam a trabalhar bem e aquilo tinha de ser encerrado. o homem do café desatou a chorar, enquanto a mulher tentava subornar os senhores de colete. os homens disseram que as leis são para cumprir e que pelo que eles viam havia umas arcas que já não trabalhavam faz tempo. puseram toda a gente na rua e deixaram um papel na porta. «avaria no equipamento». ele adorou toda a situação, mas depois ficou triste. já não tinha onde ir lanchar e pensar em como é bom subir as dunas de salir no verão, não ter a pele seca e saber que os alunos de hoje em dia são como os de antigamente, e são filhos dos amigos dele. já não tinha onde poder traçar a perna e ver pessoas.

ii

com um excerto de um poema de Luís Filipe Parrado

- olha lá, andas aí com as mãos e depois vais metê-las no folhado?
- então, hoje está frio, que a noite cai, e quando traço a perna cria-se ali calor naquele sítio e meto lá a mão para aquecer.
- já te expliquei que não se come sem lavar essas mãos.
- mas... eu lavei as mãos!
- pois, para depois andares com elas aí nas virilhas e depois as levares à boca.
- pai, não me chateies, eu até tenho estas calças novas e lavadinhas e tudo, também.
- não quê? meu filho, um homem quer-se de mãos lavadas. não há nada que as mulheres mais gostem que um homem de mãos lavadas. escreve o que eu te digo.
- pai?
- escreve o que eu te digo.
- pai!!!
- sim?
- não quero ser médico. quero escrever.
- à mão?
- quero ser escritor. daqueles a sério, que escrevem romances que mudam a vida das pessoas.
- ah, então isso é sério.
- sim, pai, já fiz chorar uma pessoa. já fiz rir muitas pessoas. como médico, nunca me senti verdadeiramente a salvar ninguém.
- meu filho, 
«Antes
de te sentares
à mesa
lava bem
essas mãos»

 iii

quando traço a perna ao pôr-do-sol ele diz-me que fico linda. quando uso rabo de cavalo ele diz-me que fico linda. quando ponho aquele batom ele diz-me que estou linda. quando uso aquele eyeliner diz-me que estou linda. quando trago aquela blusa e a saia creme diz-me que estou linda. quando uso saltos altos diz-me que estou linda. de inverno, diz-me que estou linda. de verão, diz-me que estou linda. até no outono me diz que estou linda. na primavera, então, estou tão linda. quando me rio, diz-me que estou linda, diz-me que o meu sorriso é lindo e que nem a chorar deixo de ser linda. digo que o quero, digo que o amo. e ele não me diz nada. cabrão.

quarta-feira, 7 de março de 2012

de manhã os homens riem

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sete da manhã na cidade grande. os transportes públicos já fervilham de gente e preparam-se para receber mais aventureiros. o homem passa os torniquetes e encontra gente de todo o tipo. bonitos e feios, lavados e sujos, ricos e pobres, sãos e loucos. os segundos despertam-lhe sempre um sorriso. não porque ele seja pessoa de fazer pouco dos menos capacitados. a questão é outra. o homem encontrou o amor e isso mudou-lhe o olhar. fê-lo conseguir ver mais além. fê-lo ver o que os outros não vêem. mostrou-lhe que naquilo que parece frágil pode haver uma coisa mais para adorar. e isso fá-lo, todas as manhãs, rir para aqueles a quem já ninguém ri.

ii

«ganhei o euromilhões», gritava ele pelas ruas, enquanto deixava o café do bairro depois do pequeno-almoço. «a minha vida vai mudar», dizia a um amigo que encontrou na rua, a caminho do emprego. nunca acreditara que o dinheiro pudesse trazer felicidade e mudar a vida das pessoas, mas tanto dinheiro ia mesmo fazer diferença. o amigo perguntou-lhe se, com o prémio, não ia fugir dali, que a vida está difícil e isto não presta. mas o homem respondeu que não, que tinha de ficar por cá. o dinheiro só lhe podia mudar a vida se não fosse embora. o que ele queria era usar o dinheiro para lhe dar tempo para as pessoas. afinal, o que a falta de dinheiro lhe roubava eram as pessoas, a mulher e os filhos e aqueles amigos a sério. o euromilhões tinha-lhe devolvido as pessoas e era por isso que ele agora ria como nunca.

iii

sou só mais uma mulher comum. não me queixo de ser gorda nem tenho ciúmes das que são mais magras do que eu. não prendo o meu homem a mim só por ir para a cama com ele. não tenho filhos. pago os impostos e não me queixo de não ser rica. não pinto as unhas, mas já tenho de pintar o cabelo, que a genética tem destas coisas. trabalho das nove às cinco numa repartição pública onde sou feliz. saio sexta à noite com as amigas, naquelas saídas só de mulheres. vou ao teatro com o meu marido e fico a pensar que já tenho idade e estatuto para ter um amante. afinal, até nem sou feia. tenho uns dentes bonitos e uns olhos, ui, os meus olhos. quando de manhã me olho ao espelho rio-me, porque sou só uma mulher comum. que não quer ser mais do que isso.