blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

(um) tubo de ensaio

veste a bata branca
e entra no laboratório.
fecha a porta à chave.
procura uma receita
para misturar a alegria e a angústia
na dose certa.
pode ser que a encontre.

já tentou uma solução aquosa
para aproximar o coração da boca
certos dias
mas não encontrou.
continua a calar demais.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

manuscrito perdido na praia ocidental

à falta de respostas
resta-me ouvir
as tuas perguntas

sou uma não-existência
o meu nome
é ninguém

não é nos teus longos cabelos
pintados que me encontro
é no brilho pequenino
de um olhar que fala mais
que quatro homilias da ressurreição

duas manhãs (sangue)

há uma rosa que cresce
quando nos campos
pela manhã brilha
o sol

agarraste-a pelo caule
e ficaste a sangrar
dois espinhos cravados
culpados
dois homens que te tiveram
e não te amam mais

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

sola de couro

in memoriam Luís Timóteo Fonseca

na festa de um baptismo
batias palmas
e fazias barulhos estranhos
com as solas dos sapatos
era a tua forma de rir
de estar sempre a rir

hoje foi-se o meu inventor preferido
de alcunhas.
camiões do vinho,
piolhos verdes,
pombas,
gorazes vermelhos,
tantas, tantas

havemos de nos reencontrar no céu
rir, rir muito,
bater palmas,
fazer barulhos com a sola dos sapatos

(não me importava de ter ido
no teu lugar. fazias cá bem mais falta.
eu não faria falta a ninguém.
mas isso não interessa agora.
«há caminhos que escolhemos
e caminhos que nos escolhem»)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

viaduto à chuva

cai um homem
de um viaduto de sete metros
e não lhe dói

doem mais as quedas interiores
boas e más
a de Paulo ao encontrar Jesus
a do homem que sabe que morrerá
     [sem amor

brasília

vou morrer
sem te ter
sequer um dia
(há alguém que
tenha outra pessoa?)

serei sempre só
o teu príncipe desencantado

à frente dos prédios altos
não há lugar
para estacionar
cavalos de pau

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

entremanhã (peregrinação)

todos os dias
notícias e anúncios
de mortes

bem-aventurados
os que partem para o céu

todos os dias
homens que partem
emigrantes e peregrinos

bem-aventurados
os que partem por partir

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

das minhas profundezas

há uma aflição no olhar
quando percebo que
não sei falar com Deus
nunca soube
talvez um dia saiba

há muitas coisas estranhas
que me comovem
o brilho nos olhos de uma mulher
a história de um louco
uma pessoa que reza de joelhos
vidas desfeitas
grandes alegrias
comédias românticas num sábado à tarde
não saber rezar

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

catorze ponto dois

no meio do deserto
nasce uma flor
a tua flor favorita

o amor é esse milagre
que, às vezes, nos acontece

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

solidões

o homem de cama
recebe a visita dos pombos
que alimentava no parque.
eles sentem a sua falta,
as pessoas não.
nem o homem que lhe vende o milho
nem a senhora que lhe vende o pão
nem os que têm o seu sangue
nem a sua mulher morta.
somos uma cidade de solidões ambulantes
a cumprir horários e caminhos.
já não sabemos nada de ninguém
nem o nome.
até quando haverá pombos
que se lembrem de nós?

the search (one o one)

quando te procuro
é a mim que procuro

se deixei de esperar por ti
é porque já não é
em ti que me encontro.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

pó das batatas

a pergunta que te quero fazer
há tanto tempo
é a mesma que faço
tantas vezes
nas minhas orações.
por que é que gostas de mim?
o que vês em mim que nem eu vejo?
por que não desistes de mim?
por que gostas de estar comigo?

ao meu lado na camioneta
para o bombarral
um homem sujo
cheira a pó das batatas
um cheiro tão da província
um cheiro tão da infância.
não sei o que ele pergunta nas orações
nem se teria alguma coisa a perguntar-te.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

terceira casa em ruínas

i

tento ver o mundo
a partir de uma janela da casa
mas não dá
uma trave caiu do tecto
e bloqueia a visão

na casa em ruínas
não se vê o mundo
mas vê-se o céu
(é o efeito positivo
dos tectos desabados)

ii

num dos cantos da casa
que talvez tivesse sido uma adega
ou outro lugar de reunião
um depósito pequeno
que me transporta
para o antigo armazém
para o intenso cheiro a vinho
para uma certa escuridão
papéis de facturas de garrafões de vinho especial
o chão sempre húmido e mal lavado
bombas de puxar água e funis

hoje o armazém também está em ruínas
ainda não lhe caiu o tecto
mas às vezes vê-se lá o céu
(ou outro lugar da minha infância
quando ainda havia
quem me pegasse pela mão
e me levasse a fazer coisas)

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

transparente (dois)

estava eu em algés, num dos meus momentos de solidão ambulante entre autocarros, quando vem ter comigo um homem a perguntar o melhor caminho a pé até à cruz quebrada. só lhe soube dizer que devia tomar o caminho interior, entre os prédios, que é mais abrigado. o homem quis continuar a falar. diz que vai sem destino. cruz quebrada, são pedro, cascais, subir a serra da malveira, andar até cair para o lado e morrer.
a mãe morreu-lhe em setenta, quando ele tinha acabado de voltar do ultramar, entretanto caiu de um sétimo andar numa obra em alverca, não morreu porque Deus não quis, casou, teve filhos, a mulher morreu, os filhos não querem saber dele. está sem nada nem ninguém. a segurança social quer analisar o processo mas demora dois meses e a santa casa só o aceita se houver dinheiro a receber. restam-lhe duas alternativas, andar por andar ou atirar-se para a frente de um comboio. a segunda hipótese não lhe agradou porque era dia e havia muita gente a ver. resta-lhe andar.
estendeu-me a mão, apertei-lha, dei-lhe quase um abraço e desejei-lhe força. ele pôs-se ao caminho, eu fiquei a rezar. não havia mais nada que pudesse fazer. não num país que trata assim as pessoas.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

skenopoiós

preciso de ti,
fazedor de tendas.
chove na cidade
e não tenho um abrigo.

preciso de ti,
fazedor de tendas.
dizem que há um Homem
que te fez cair
como à mulher
que se atirou de um arranha-céus
e sobreviveu.
um Homem que te mudou.

mostra-me esse Redivivo
que fez de ti um idiota,
o esterco do mundo,
(ao mesmo tempo)
o fundador da universalidade.

tu, Paulo,
ensina-me a tua profissão.
ensina-me a fazer tendas
e a amar esse Jesus de Nazaré.