blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

welcome to the desert of my soul

bem-vinda ao deserto da minha alma
bem-vinda à aridez da minha alma
bem-vinda à miséria da minha alma

se ainda lá quiseres entrar
há muito espaço para ti

[este texto foi escrito ao som de wp, de Matisyahu]

um por todos

gosto tanto de estar contigo
gosto tanto de ti
papa pepe pipi popo pupu
que era capaz de te amar
se o meu coração tivesse lugar para uma pessoa só

era capaz de amar um clone teu
aos vinte e tal anos de idade
(alguém devia pensar nisso)
assim é difícil entrar tanto na tua vida

é-me difícil entrar tanto na vida de alguém
e não ser de todos

«o pepe papou o papá no popó da mamã»

[este texto foi escrito ao som de Manuel Fúria & os Náufragos, Canção para casar contigo]

terça-feira, 29 de outubro de 2013

há sempre gatos vadios

hoje escrevi um poema de amor
e o meu coração agitou-se

rita pereira vai de férias

a rita pereira, recuperada de lesão, vai de férias sem se preocupar com a violência doméstica em casa do manuel maria e da bárbara. não quer saber das bebedeiras da bárbara nem das violações que fazem manchete nas revistas e jornais nem em se foram chapadas ou socos ou vassouradas ou agressões com um chinelo. a rita pereira vai de férias sem se ralar com os cães e gatos e pulgas e baratas que pode ter no seu apartamento porque só tem um cão (com pulgas?) que já foi capa de revista porque a rita pereira passear o cão (cadela? sei lá) é um acontecimento nacional. a rita pereira talvez vá de férias sem se ralar com o governo que sem programas de ajuda talvez estivesse sem dinheiro para mês e meio de salários, que com programas de ajuda carrega o povo e não descarrega em si, que com programas de ajuda deixa gente na miséria sem casa e sem pão e sem paz e sem povo e sem liberdade. isto é que me preocupa. deixem lá a rita em paz e a bárbara e o manuel maria e os cães, os gatos e os piriquitos e as moscas e parem um bocadinho para pensar no essencial, que é invisível aos olhos. pensar [ainda] não é estar doente dos olhos.

um poema em vez de coração

«No lugar do coração colocar um poema»
Valter Hugo Mãe

o meu coração já foi demasiado grande
para o meu corpo

hoje é pequenino
para o amor que te tenho

tenho um osso saliente
por causa do meu coração grande demais

ainda espero
que me venhas fazer crescer a vida

espero por ti

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

prince of persia

está atenta:
o teu príncipe pode aparecer a pé
e comprar-te um bilhete de camioneta
se não lhe puderes dar boleia

já não há príncipes em cavalos brancos
não estão a deixar de usar animais no circo?

ao teu filho inexistente

«Ouvem-se, em Ramá, lamentações
e amargos gemidos. 
É Raquel que chora, inconsolável,
os seus filhos que já não existem.»
(Jr 31, 15)

às vezes apetece-me dar-te a mão e dizer-te ao ouvido que quero ser o pai do filho que ainda queres ter às vezes queria ser só o pai espiritual do teu filho para ele me escrever um tratado sobre a oração incessante do coração outras vezes não quero dizer-te nada só olhar para ti porque és tão bonita muitas vezes quero só estar sozinho porque não me apetece fazer nada apetece-me ser nada não fosse haver um Deus que dança e na verdade não era mesmo nada

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

dropbox

tenho os meus livros
dentro de caixotes
à espera de uma estante
para os arrumar

tenho a minha vida
dentro de caixotes
à espera de quem a queira
desampacotar

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

puer

corres pela praia até seres parado pelas dores
e sentas-te no chão que agarras com todas as forças
como se encher uns punhados de terra
fizesse de ti o dono do mundo

levas areia à boca e comes
porque comer areia nos faz mais rijos
e imunes às doenças
e tu queres crescer e ser um homem

pensas: um dia vou ser grande e experimentar
a solidão
a angústia
a dor

mas sobretudo
a amizade
a festa
e o brilho nos olhos de uma mulher

[este texto foi pensado em dois autocarros e durante um almoço com uma mulher de olhos que brilham e escrito ao som de Menina, de Márcia com Samuel Úria]

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

coisas que não acho sexy numa mulher

aqui deixo, para o caso de interessar a alguém, uma lista de coisas que não acho sexy numa mulher - que é o que interessa (traduzo para português: coisas que me fazem deixar de sentir/baixar drasticamente o nível de atracção por alguém que até me agrada numa primeira análise):

- escrever segundo o aborto ortográfico de 90.
- dar erros ortográficos, em geral, e não saber onde e quando se põem hífenes nas palavras, em particular.
- bocejar sem pôr a mão à frente.
- gostar de paula fernandes, luan santana, anselmo ralph e cantores românticos da lusofonia em geral (a menos que completemente este gosto com alguma coisa que valha mesmo a pena. abaixo do joão só não conta).
- gostar de autoajuda, signos, tarô, estupidez em geral.
- ter as mãos desproporcionalmente grandes em relação ao corpo.
- ter toques pirosos no telemóvel (grilos, abelhinhas, toques pré-definidos, salsa, house music).
- preferir a foz ao baleal.
- preferir o norte ao sul.
- preferir o sotaque do norte aos sotaques do sul.
- ficar muito ofendida por ouvir alguém dizer asneiras.
- não dizer asneiras.
- não rir alto.
- ter vergonha de estar com os meus outros amigos.

(lista para ir completando - não necessariamente aqui - ao longo de uma vida. por factores sentimentais esta lista pode ser sujeita a diversas alterações)

sábado, 19 de outubro de 2013

rio de janeiro. outubro de mil novecentos e treze

a festa vai ser feita
de samba e bossa
e alegria e melancolia
e saudade
e amor
e mulheres muitas mulheres
e amigos e vinho e álcool
e praia
e homens que sabem o que escrever

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

no alto da montanha

uma história antiga falava nos velhos que eram levados pelos familiares mais novos para o cimo de um monte onde aguardavam a morte sem estar à vista daqueles que ainda tinham muito que viver e não se queriam confrontar com essa realidade tão última e marcante. as encruzilhadas dos caminhos dos homens, depois de um momento em que a morte foi aceite como parte da peregrinação humana, e que como tal não deve ser escondida, trazem-nos a um momento em que os papéis quase se invertem. hoje são os velhos que vêem os seus filhos e netos em situações péssimas. hoje são os velhos que devem estar a começar a preparar a bagagem para levar os filhos e os netos ao alto do monte, já que cá em baixo não temos mais nada, não encontramos emprego, não encontramos sentido. alguém que mude isto, por favor, meu Deus, muda isto, sou demasiado novo para ir subir a um monte e esperar por morrer.

cidade dos homens grandes (i)

percebes que já cresceste o suficiente quando consegues dizer «tenho um livro para te emprestar» em vez de «isto é o que deves ler ao teu filho inexistente».

as primeiras chuvas em mim

quando chove apetece-me sempre ir para a rua correr. correr até ficar todo molhado, até chegar ao ponto em que não faz diferença estar vestido ou nu, até chegar ao ponto em que a minha avó me ia ameaçar com uma vide porque estava em risco de pneumonia. a chuva lembra-me os tempos felizes de uma certa adolescência em que não interessavam os guarda-chuvas dos adultos, aquela adolescência perdida a que importa voltar, a das primeiras erecções e da descoberta de si próprio, a do tempo em que todos os amores eram platónicos e por isso era tão fácil ter desejo por mulheres, a do tempo em que a vergonha era tanta que a única coisa que interessava para além de mim era mesmo a chuva. hoje já sou grande e as pessoas grandes não fazem o que lhes apetece, não vão correr para a chuva, limitam-se a ficar à janela a vê-la cair enquanto se lembram de uma certa ideia de adolescência perdida que nunca foi. as pessoas grandes ficam à janela a ver a chuva a pensar no que poderiam ter sido e nunca virão a ser.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

carros japoneses

para me tirar do sheol que venha a princesa morena com asas de anjo. que venha a princesa com a sua coroa que se transforma em arma de guerra para destruir os que estão do lado do mal. que venha a princesa com a coragem que não tenho para a luta, com a arte de defender o bem. que venha a princesa com a capacidade de me espantar com a beleza, com os gestos delicados que a fazem mulher, com o brilho nos olhos que me fascina. que venha a princesa sem perfeição. que venha a princesa de coração aberto ao amor e sem medo de ouvir «és tão linda». que venha a princesa sem castelo nem palácio nem sequer carro próprio: vamos bem os dois a pé, peregrinos que somos. que venha a navegante da lua de quem já nem recordo o nome.

muro de pedra

a palavra tem dois grandes defeitos. 
o primeiro é fazer-se carne, elemento palpável, audível, sensível. a palavra quer fazer-se objecto autónomo do seu autor, elemento que vale por si enquanto algo que quer ser de quem o ouve, de quem o lê. isto torna-a fonte de mal-entendidos, fonte de pedidos de desculpas, fonte de confusões - por muito que seja tantas vezes fonte de beleza, fonte de amor, fonte de salvação.
o segundo é revelar-se, tantas vezes, em meios que não estão preparados para a receber. meios em que vêem dela o que querem ver, meios em que ainda não se sabe separá-la do seu autor, meios em que se acha que tudo é autobiográfico - quando, na verdade, sabemos que tudo é e não é autobiográfico ao mesmo tempo, no sentido em que o autor escreve, fala, a partir do mundo que conhece mas é livre de criar mundos, conversas, vidas. resumindo, a palavra ainda não se consegue isolar do que a escreve ou diz, pelo menos tanto quanto era preciso.
mas é apesar destes defeitos que gosto de a trabalhar, contribuindo para o muro de pedra que ficará à vista de todos os homens que passam.

melancholia

a melancolia
não é bem tristeza

é o estado dos que vivem na noite
sem ninguém que os acompanhe de perto

é o estado dos que sabem que vão morrer
por muito que a vida seja alegre

é o estado dos que olham a beleza do mar
e a vêem fugir

é o estado dos que olham para o céu azul
até que venha a nuvem negra

é o estado dos que riem à chuva
antes que venham os espirros

[este texto foi escrito ao som do álbum Almost Visible Orchestra, de noiserv]

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

sol na montanha

sento-me ao vento junto das antenas e contemplo o mundo. daqui vê-se o tejo e o atlântico que nos leva para longe e as lezírias e as várzeas e os pomares. daqui vê-se a alma dos homens que recebem notícias que saem destas antenas. as antenas transformam o monte em mundo, as antenas cumprem o desejo de Jesus e fazem o monte mexer-se para dentro dos camiões e dos carros e das casas. daqui vê-se aquelas casinhas onde pessoas têm máquinas que mostram onde andam os aparelhos que o meu avô via quando olhava para o céu e dizia serem os aviões da tropa. aqui passeiam os espíritos dos monges brancos e negros que permanecem entre as ruínas do antigo retiro do mundo. aqui se lembram os carros de bois e os burros albardadados que levavam gelo aos reis. aqui se lembram as vitórias solitárias dos que vencem o monte em cima de duas rodas incentivados por mensagens escritas a cal. aqui me lembro que te devia trazer cá para comigo veres o mundo, não para to oferecer, como o diabo, mas para te lembrares sempre que há uma beleza que salva e que podemos fazer parte disso. aqui estou eu, só eu, o vento - sempre o vento - e, hoje, o sol a brilhar.

domingo, 6 de outubro de 2013

sanguis

durante o banho
corre do peito do apaixonado
um fio de sangue
que apareceu sem avisar

é aí que o poema
se faz carne
e se realiza o que dizem ser
o milagre do amor

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

notas soltas sobre poesia

o poema é:
o lugar da alegria
do espanto com a beleza
da presença escondida
     do Deus que passeia pela brisa da tarde
     e dança

também é:
a arte onde ainda cabem a angústia
a melancolia
a tristeza
o desencanto
(tudo o que a autoajuda tirou
do mundo dos homens)

nada em meu nome

não há nada que eu diga
que seja meu

ninguém que diga
tu és meu

terça-feira, 1 de outubro de 2013

sinal d'O que está

a mim cabe-me apenas estar.
estar para o que é
estar para o que poderá ser de bom
estar para o que poderá ser de mau
apenas estar
(e já não é pouco)

a arte do encontro

na mente um texto de Antoine de Saint-Exupéry

vou andando devagarinho
para criar em ti
a dor boa da espera

poucas pessoas me merecem a chuva

quando ando à chuva
até molhar os ossos
é que percebo como sou feliz

nem todos me merecem a chuva
é esse caminho do risco
que te faz especial