blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quinta-feira, 27 de março de 2014

forrest (ted)

é nas coisas pequenas
que se vêem os homens grandes

«não sei falar com Deus», dizes
e caíste de joelhos

julliete (mary)

as mulheres mais bonitas
mesmo que tenham a cara gasta pelo tempo
são as que não se cansam
de procurar

os olhos mais bonitos
são aqueles que encontram
a verdade

marion (gretchen)

na imagem escura
sobressai o teu corpo louro
o teu cabelo louro
os teus olhos grandes
os teus lábios bonitos
a tua cara de menina
a tua voz que atrai

na luz dos teus olhos
ia até ao fim de um mundo que não há
bastava que fizesses um sinal

código de procedimento sentimental

entre tantos quilos de papel produzido
sem utilidade aparente
nunca os legisladores se puseram
à tarefa de um código de processo sentimental
uma coisa com decretos para dizer quem se ama
decretos para que essa pessoa nos ame
(o amor é muito mal distribuído, dizes tu)
um manual de procedimentos
para cortejar uma mulher
um manual de instruções
para ligar e desligar amores
trocar de amores

mas os legisladores são
burros preguiçosos
não sabem que é aqui
que estaria o seu verdadeiro filão.

terça-feira, 25 de março de 2014

aline

acordes de bossa em tom menor
sons de todo o mundo
do primeiro mundo
de todos os mundos

quando ouço a tua voz de menina
é que me lembro que não sou do mundo
nunca fui. não sou nada.
talvez uma guitarra antiga me queira.

sílex

de pés descalços o caminho é mais longo
mas é sem sapatos que sais para os montes
à minha procura

há uma gruta escavada
num rochedo antigo
aberta à mão
por um monge com voto de silêncio
e umas barbas negras compridas

é lá que me escondo
quando é o silêncio
que quero habitar
só tu sabes

é lá que me procuras
é lá que me encontras
para ouvir as palavras
que não te vou dizer
as palavras não ditas nunca ditas

sobre Deus só podes calar
sobre mim às vezes também

de perfectione

o autorádio toca uma melodia perfeita
e tu conduzes, perfeita.
sempre que descubro mais de ti
fico mais encantado
como o pobre peregrino
que chega à catedral de compostela.
és perfeita, desenhada para mim
por um Deus que dança
(só um Deus que dança te pode ter criado)
o teu defeito é que não me amas
nem poderias amar
não sou digno de ti,
não chego nem para metade do amor
de que precisas.

quinta-feira, 13 de março de 2014

mors

in memoriam + José Policarpo (1936-2014)


uma palavra que assusta: morte
uma palavra que se troca por outras tantas vezes
como se omiti-la apagasse o que ela representa

há-que pegar os bois pelos cornos
no dia em que morre alguém
que faz parte de ti, que és tu,
de uma forma que só agora entendes

as mãos que eram do teu avô
e a cor de uma pele que o sol gastou
e a forma como se sentava
e as palavras que dizia e não escrevia

e o sorriso tão natural
às vezes, risos desbragados,
o pecado mortal social dos cigarros
uma gestão brilhante dos silêncios

há uma cerveja que fica agora por beber
já ficou há muito tempo
agora não interessam
as palavras não ditas

uma palavra que dá sentido: ressurreição
devíamos usá-la sempre, em todas as frases.

quarta-feira, 12 de março de 2014

vísceras (15, 17)

um corpo é um esconderijo
para muitas coisas más
bichos estranhos que nos rebentam por dentro
seres antropofágicos que se riem da dor humana
da dor dos homens que ainda sofrem
seres que se alimentam de células
e lágrimas e preocupações e estima e amor
seres feios a destruir a maior beleza do mundo
a ganhar força na fraqueza alheia
a criar limitações aos limitados

um corpo é, às vezes, um esconderijo
para um amor, um sorriso, um olhar,
uma palavra, um abraço, uma melodia feliz.
isso devia ser sempre. ser só isso sempre.

terça-feira, 11 de março de 2014

soprano (dois tenores, barítono, dois contraltos)

a noite cai melhor
por trás das árvores despidas
nos dias de calor
em que o céu é azul laranja branco

a noite cai melhor
quando há companhia
para olhar as estrelas
de barriga para o ar
e rir com provérbios antigos
«noite estrelada, manhã cagada»

a noite cai melhor
quando há alguém a quem dar a mão
para ver o pôr-do-sol
(dar-te um beijo)
não há ninguém
às vezes é mau, outras não

a noite cai melhor
quando perdemos o medo das ruelas escuras
que percorremos em busca
não sabemos bem do quê

a noite cai melhor
quando caminhamos ao encontro da fonte
e finalmente lá chegamos
(joão da cruz)

sexta-feira, 7 de março de 2014

sicómoros

a solidão não é uma coisa boa
não é uma coisa que se escolha
não há solidões felizes
quando há tantas formas de companhia
era um homem a tentar convencer-se
que escolheu estar sozinho
não escolheu
às vezes no quarto à noite
sentia falta de uma mulher
que já não queria esperar mais
não há princesas encantadas
(talvez haja princesas-sapo
ou princesas-rã. mas nunca ninguém as viu)
às vezes sentia falta de um deus
mas não sabia rezar
não sabia falar com deus
às vezes no quarto à noite
sentia-se longe de casa
estamos sempre tão longe de casa
somos só peregrinos a caminhar juntos