blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quarta-feira, 29 de junho de 2011

Há uma primeira vez para tudo

Recordo a primeira vez em que serviram, publicamente, os meus conhecimentos sobre o cristianismo (que hoje me servem de muito mais - obrigado Faculdade de Teologia, obrigado Secretariado Diocesano do Ensino Religioso, obrigado Agrupamento Professor Noronha Feio e obrigado Agrupamento Amélia Rey Colaço [obrigado minhas e meus colegas, que bem sabem quem são...]). Numa aula de Português do 12.º ano no Externato de Penafirme (obrigado professora [agora colega...] Paula Pombo)...

Livro de Horas
Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!
Miguel Torga

Monge de clausura


E haverá monges que não de clausura?

Sozinho na sua cela, com medo de ter saudades do futuro...

terça-feira, 28 de junho de 2011

Méditation sûr la mort

Não deixo de achar estranho que, uma vez mortos, todos os homens, mesmo os maiores crápulas, ou pessoas que sempre foram alvo de gozo e inveja, sejam vistos como se fossem óptimas pessoas. Judas morreu, e não deixou de ser considerado um traidor. Não esqueçamos que permanece assim referido numa comunidade onde o perdão é um dos pilares fundamentais.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O citador

Hoje, nem sei bem a que propósito, lembrei-me duma entrevista a um de dois vultos nacionais, Fernando Rocha ou Tino de Rans [ao mais incauto leitor, relembro, como já se vai tornando hábito, que a ironia é um recurso estilístico que aprecio sobremaneira], em que o entrevistado se afirmava contra as citações. Mais concretamente, indignava-se porque há pessoas, sobretudo na Academia, ambiente que o entrevistado não apreciava particularmente (agora, parece-me, apesar das capacidades de Fernando Rocha, que a pessoa em questão é Tino de Rans...), que citam muitas vezes outros, o que indiciaria uma incapacidade de pensar pela própria cabeça.
Lembrei esta entrevista quando percebi que na maior parte das minhas intervenções, sejam coisas mais a sério seja mesmo quando se trata de estar a brincar ou simplesmente na parvoeira, aparecem citações de outros. E perceber isso fez-me pensar que o entrevistado (fosse um ou outro dos que referi) não podia estar mais enganado... Citar outros não é sinal de limitação, antes sinal de que se tem mais mundo e de que se vive para além do seu próprio umbigo. Porque não hei-de citar pessoas que falam sobre Deus melhor do que eu, quando se trata de falar sobre Deus? Porque não hei-de citar os que falam melhor do que eu sobre a vida (na sua grande maioria, os poetas que leio, quando não estão a falar sobre Deus...), quando se trata de falar sobre a vida? Porque não hei-de citar os humoristas, quando estou em momentos de humor?
Obviamente que citar, como se aprende na vida académica [aos tunos: aquela que se passa dentro das salas de aula...], exige fazer referência ao autor, exige respeito pelo sentido do que este pretende dizer, exige rigor. Mas antes prefiro sujeitar-me a esse rigor e pôr-me na senda de gente, também acusada de ser "citadora", mas que tem tal grau de inteligência e sabedoria que me faz achar-me, no máximo, digno de os citar, do que "pensar pela minha própria cabeça", sem o auxílio da informação que me é dada pelos outros (o homem é um ser-no-mundo, um "animal social") e não ser mais que um chico-esperto...
Sou um citador, sim, mas é como citador que me sinto «estupidamente feliz».

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Vale a pena ser parvo

Num tempo particularmente stressante como o final do ano lectivo de um trabalhador-aluno como eu, sucedem-se as situações de parvoíce. Umas como forma de aproveitar breves momentos de dolce fare niente, outras resultantes do dito stress, que por via dos nervos a si acoplados cria bloqueios cerebrais que conduzem inegavelmente à parvoeira.
Ao analisar várias situações dessas que têm ocorrido nos últimos dias, pensava que talvez não seja assim tão mau ser parvo. Pelo menos se recorrer aos meus breves conhecimentos de latim, que me levam a recordar que parvus, -i quer, na origem, dizer «pequeno». E isto é bastante curioso, quando ouço um ateu militante chamar infantis aos que têm fé, mas sobretudo quando ligo essa sua afirmação àquela outra de Jesus, «Se não vos tornardes como crianças não entrareis no Reino dos Céus» (Mt 18, 3), ou à de Paulo, «Por causa de Cristo somos idiotas, e vós, sábios em Cristo! Nós somos fracos, e vós, fortes! Vós, honrados, e nós, desprezados!» (1 Cor 4, 10), ou à de João Baptista, «Ele é que deve crescer, e eu diminuir» (Jo 3, 30). Se repetidas vezes caio na parvoíce, talvez seja por uma questão de treino, porque, de facto, duas das orações que mais rezo são a oração do coração, «Senhor Jesus, Filho de David, tende piedade de mim que sou pecador» e esta frase de São João Baptista, seguindo com ela o mesmo ritmo da oração do coração [acerca da oração do coração, recomendo a leitura dos Relatos de um peregrino russo ao seu pai espiritual, com tradução portuguesa das Edições Paulinas]. Quem reza estas duas orações descobre-se mais «infantil», mais pequeno, parvo, mas isso não é mau. Só mostra que os meus vasos de barro transportam um tesouro que é muito maior do que eu, e que por mais que eu quisesse não o conseguiria tapar.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Dia sem poesia...

Não é dia,
é noite escura.
Mas a poesia
é noite escura.

Adília Lopes


Murmúrios do mar


Paga-me um café e conto-te a minha vida

O inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
de uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro

Outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu não, tu nunca choraste
por amores que se perdem

Os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
e temos saudades desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo
tudo o que seremos depois

«Pago-te um café se me contares
o teu amor»

José Tolentino Mendonça in A noite abre meus olhos

"Lá" é um lugar que existe

Mesmo não sendo grande fã do autor em causa, não posso deixar de sugerir ao estimado leitor do blog a leitura deste artigo de José Luís Peixoto para o Expresso, depois escrito no site do Secretariado da Pastoral da Cultura. O tema interessa-me demais para não sugerir.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Escrever como um idiota

Esta semana, uma amiga pediu-me que lhe escrevesse sobre uns assuntos que não tinha muito claros (no caso, os temas da moral e da pessoa). Ao escrever o texto para lhe entregar, reparei que quando se está a falar dos assuntos mais sérios (e não duvido que os temas da moral e da pessoa sejam assuntos sérios...) é ténue a linha que separa a seriedade da loucura. Se fosse há uns tempos, diria que isso tem apenas haver com a minha tendência natural para a parvoíce, que me leva a não aguentar muito tempo sem descambar para a estupidez... Hoje, porque trabalho sobre o idiota em São Paulo, percebo que andar no limbo que separa a idiotia da seriedade é a condição natural de quem trabalha os temas mais profundos (o que não significa que não se mantenha a minha tendência natural para a parvoíce...).
De idiota já se haviam mascarado os actores do teatro grego, depois o próprio São Paulo (alguns autores afirmam também Jesus como idiota, ainda antes e como modelo para Paulo de Tarso), depois tantos e tantos na Rússia (os chamados «Santos Idiotas por causa de Cristo», da Ortodoxia Russa)... Todos tinham o mesmo objectivo: fazer da aparente loucura o maior sinal de credibilidade, na medida em que só parecendo loucos, doentes, aquilo que tinham para transmitir podia ser ouvido sem que isso trouxesse consequências imediatas para quem produz as afirmações. De resto, é o que permite que se chegue ao mais fundo das questões, porque a loucura (ainda que apenas aparente, como instrumento retórico e de pensamento) deixa o homem ir além da razão simples, e o homem é mais que razão. Não por acaso, é na boca do idiota da sua história que Dostoiévski põe a que considero a mais bela intuição de O Idiota: «a beleza salvará o mundo».
O problema aqui é que aos dias de hoje não chegaram idiotas destes, daí que espante o texto que rapidamente oscila da seriedade para o humor, ou mesmo para a loucura, o texto em que aparece o comentário «Não diga isso senão ainda vai preso!», a pessoa que fala sem medo no território inimigo, etc.. Os dias de hoje trouxeram o predomínio da razão "pura", que despreza outros auxílios (da fé, da Beleza contemplada [a tal que faz cair de joelhos, indo, assim, além da simples racionalidade], dos sentimentos e não só das sensações, etc.), e com ela vem o medo das consequências do que se diz.
Os idiotas do teatro sabiam que cumprir a sua função os deixaria a dormir ao relento e a ser comparados às prostitutas e aos pedintes, aos mais baixos da sociedade. Paulo sabia que cumprir a sua função o obrigaria a ser nómada no Mediterrâneo e que o levaria à prisão, onde passou os últimos dias em Roma. Os Santos Idiotas por causa de Cristo, sobretudo nas épocas da modernização da Rússia e da implantação da República Soviética, sabiam que continuar a agir como tal os levaria aos Gulag e à morte. Mas o fim que levava qualquer destes a apresentar-se como idiota sobrepôs-se aos meios.
Assim, percebo, cada vez mais que, mesmo (e isto já se torna o refrão deste blog...), se não agir, escrever, pensar como um idiota não atingirei o meu fim, que só pode ser um: o martyrion, o testemunho verdadeiro da fé que professo. Como com Córdula, antes tarde do que nunca!