blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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sábado, 4 de agosto de 2018

a minha canção

cada palavra tua,
cada foto, cada frase pirosa
que partilhas nas redes sociais,
só o partilhares frases pirosas,
estupidamente é um punhal ainda
cravado e escarafunchado
bem no centro do meu coração
quando não devia,
no fundo sei que nem pensas em mim,
nem quando um louco se senta
ao teu lado num banco de jardim,
às vezes um louco sentava-se
ao nosso lado em bancos de jardim
ou pedia tabaco, lembras-te?,
nem quando dá o 'luz vaga' na rádio
ou quando ouves os morphine ou os portishead.
não pensas em mim em noites quentes como esta
em que aproveito o suor para esconder as lágrimas
que continuas a provocar-me

domingo, 29 de julho de 2018

sobre o início

ao longo dos séculos
filósofos e cientistas
estavam errados:
no início era a alta montanha

quarta-feira, 4 de abril de 2018

os cinquenta dias

no tempo pascal os cristãos
devem fazer festa
e não socumbir à tristeza
o que às vezes custa muito
porque teimas estranhamente
a doer bem fundo em mim

terça-feira, 20 de março de 2018

a expansão do atlas

makas de sempre
não saber o que é o amor,
será jindungo, quindim,
a conversa do candongueiro
no caminho de casa,
o rádio velho a passar koladeras,
aquele peixe frito na hora
nas kombas dos mais velhos,
a dança da rapariga linda
no pátio dos vizinhos
que te desconcentra de tudo,
o amor às vezes as notas
no porta-luvas para gasosa
dos caríssimos senhores agentes,
muitas vezes tu a ires embora,
eu a mandar-te embora,
nós a não mais sairmos juntos
para ouvir buraka, dançar,
uma imperial fresca e bifanas,
nós a já não nada.

quarta-feira, 14 de março de 2018

fraca coragem

isto é só um poema
a preto e branco
com uns versos
em tons de sépia
e uma mulher que ri
de costas descobertas
são palavras gratuitas,
todas as palavras o são,
isto não é arte

sexta-feira, 2 de março de 2018

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

o aniversário do poeta

Quando Ruy Belo faria oitenta e cinco anos

a infância era mais fácil
quando todos corríamos pelo adro
e os mais velhos subiam
à torre mourisca
para tocar os sinos da matriz
e pôr toda a aldeia na rua
depois a vida a vir a sério
as contas para pagar
as viagens a dissertação de doutoramento
defendida no angelicum
sob a protecção de são tomás
as aulas dadas à noite
como de noite era mais belo o eufrates
a memória do vento a conduzir as folhas
pelas duas ruas da minha cidade
o efeito das árvores da minha cidade
sempre marcadas em mim

smartphone love

troco mensagens contigo,
mulher,
todas as noites
para ignorar
que o meu coração secou,
não é mais capaz de amar

bicicletas

Procurava o mistério de Deus
nas cartas de Etty Hilesum:
durante quarenta anos de deserto
os israelitas não tinham bicicletas

domingo, 28 de janeiro de 2018

idolátrica

esperava um anjo
saído de uma canção
do ben harper
só porque me disseste
que era linda
essa canção do ben harper
e naquele tempo
podiam sair anjos, flores,
luz, o amor, a salvação
de tudo o que achasses lindo.

ontem vi-te e não te falei.
não tenho coragem,
continuo igualmente estúpido,
a mesma besta insensível.
voltei a casa ao som do ben harper,
uma hora de waiting on an angel
e a canção a ser realmente linda
enquanto cantava o refrão aos berros
a despejar saudades tuas pelo carro
mas já sem esperar que dela saiam anjos.
na verdade, sem esperar que nada seja lindo
só por me lembrar de ti.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

essere

o desejo batido
de ser o poema,
ser poema,
a não concretizar-se nunca,
a utopia a ter lugar

janelas estreitas

ao entardecer
espreitava por debaixo das casas
buscando alguma vida ainda,
alguma luz ainda
no meio da escuridão
e às vezes nada,
nem luz nem sopro
nem som algum,
talvez memórias
de um outro tempo escuro.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Costel, afagador de soalhos

Costel, romeno, afagador de soalhos. O meu patrão, também dono de uma sex shop, distribui catálogos da loja aos clientes enquanto descarrego as máquinas da carrinha e vai à cartola de vinho da casa molhar o bico, sempre mais de um copo de vinte centilitros, enquanto estou no meio do pó das madeiras ou a polir o chão. De vez em quando o meu patrão vem ter comigo e grita «tu é burro, tu é nhurro», sempre com os érres muito enrolados, como se o meu mal fosse ser atrasado mental e não apenas vir de um país estrangeiro. Uma vez perguntaram-me se era médico, engenheiro, quem sabe músico ou artista plástico, aqui todos os emigrantes do Leste são médicos ou engenheiros ou professores de qualquer coisa, e eu era apenas tratador de cavalos. Tenho saudades dos cavalos muitas vezes, não gritavam comigo sem razão.