blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

Pesquisar neste blogue

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Para explicar a destruição

de mim acabarás por levar tudo,
a casa, a vida tranquila, a coragem de sentir,
não levarás o direito de dizer e pensar
o que eu quiser

Para explicar as palavras vãs

quando dizia amor
era de amor mesmo que falava,
o coração em desacerto,
a incerteza,
a dor, às vezes,
as palavras que não chegam,
a vida entregue,
o tanto que ficamos longe
sempre

do amor dizemos muito mais do que devemos
quando ele é apenas acto e presença

Para explicar o mistério da infância

o bebé que adormece no colo
como gota de água que rega
as folhas que crescem
nas margens do coração

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Para explicar um passeio no parque

sento-me naquele banco de jardim
à espera dos milagres quotidianos
que fazem qualquer coisa estalar
por dentro de nós,
a vida passa vagarosa
como o velho de bengala
a passar defronte
caminhando para a vacina da gripe,
peço outra vez o dom
de cair devagar como as folhas dos plátanos

Para explicar a dor

um cavalo morto nas margens do nilo,
o grito de um mártir ao morrer,
os olhos da mulher a quem levaram um filho,
a inutilidade dos corações
que sofrem por amor,
o mais nobre sentimento são

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Para explicar as casas em construção

tão à toa, nós, por vezes,
tão perdidos por aí
à procura de um lugar
onde assentar a cabeça
e descansar em paz,
tão perdidos à procura
da pessoa que é esse lugar
que abriga e acalma,
às vezes encontramo-la
e nem damos por isso
e fugimos rua abaixo
porque a alegria assusta mais
que a solidão voluntária

Para explicar o quinto capítulo do Cântico dos Cânticos

Fui abrir ao meu amado e o meu amado já tinha desaparecido. Fora de mim, corro atrás das suas palavras; procuro e não o encontro, chamo e não me responde.
Ct 5, 6

nestes tempos virtuais
encontrarás o amado
numa sala de chat

na vida de carne e osso
está sempre em fuga
do portão que guarda a tua casa

Para explicar o exercício da escuta

do amor já não espero nada,
vou-me forçando à fé nos milagres
que constroem a sucessão dos dias,
aguardo como cão deitado
aos pés do dono que assiste
sonolento à novela das nove
pela vida que passa depressa demais,
e peço uma turbulência suportável

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Para explicar a suspensão voluntária do juízo

como som metálico
de moedas a rodopiar
sobre o tampo marmóreo
de uma taberna antiga

as nossas vidas em suspenso
à espera da próxima dor
e da alegria que se esconde
nas margens de nós

Para explicar a adolescência

quando apago o candeeiro do quarto
à hora de ir dormir
agarro-me ao ursinho de peluche
que me acompanha desde pequena
e não me abandona nunca
faz sempre o que eu quero
e gosta tanto de mim
e ele segreda-me ao ouvido
que é melhor assim a solidão
do que assumir as rédeas
e o risco de um amanhã novo
da hipótese de que as coisas corram bem
que haja uma companhia que alegra os dias
o meu urso empurra-me para baixo
e eu gosto assim
para quê sonhar?

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Para explicar a distância

vesti as saudades que fui acumulando,
já não há o teu cheiro bom na minha pele
e os abraços que dávamos ao pôr do sol
junto ao cais onde os velhos
desenleavam as redes.
despi as dores que me consumiram
ao longo destes tantos anos
e agora ando assim,
agasalhado entre o alívio e a ternura
das lembranças azuis que ficam
do céu, do mar e do teu sorriso.

Para explicar as moradas

Havia um letreiro à porta da casa
"Deus não mora aqui",
as pessoas passavam
e era-lhes indiferente o letreiro,
Deus habita os corações
de quem O deseja.

Na casa ao lado um letreiro também,
"O amor não mora aqui",
e as pessoas passavam
e seguiam dolorosas,
que casa se ergue sem o amor?

Para explicar as viagens (ii)

Há viagens exteriores demasiado longas
que ensinam a esperar
pelas viagens interiores
que ficam sempre inacabadas

como no poema
vamos morrer inacabados

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Para explicar a arte da escuta

a água do mar
a bater no íntimo
do teu coração

não ouves?

Para explicar o som

um poema
como um grito
num poço de vácuo

Para explicar o desamparo

às vezes a saudade,
às vezes uma apatia inexplicável,
às vezes a ausência,
às vezes um bocadinho livre
sentado no banco do carro
a ver passar a vida dos outros,
às vezes o medo do que há-de vir
porque é o desconhecido,
às vezes a luz do sol contra os vidros do quarto,
às vezes a solidão,
às vezes o saber de tantas companhias ao longe,
às vezes os silêncios habitados,
tantas casas para tantos silêncios,
às vezes nada a dizer,
não há mais nada a dizer

Para explicar a sede

sabemos que corre um rio
por dentro de nós

só não sabemos para onde
nem os sonhos que leva

a vida tantas vezes só isto
aprender a contemplar as águas
e a descobrir a paz nos ruídos das correntes

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Para explicar a pequenez

Para a Paula

queria às vezes o dom
de ter uma alma pequenina
como o coração da mãe
quando o seu filho sofre

o dom de um coração que cresce
quando os filhos crescem
e voltam a andar por si
no mundo dos felizes

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Para explicar a queda de um homem

O mundo está cheio
de homens em queda
como Paulo a cair do cavalo
na verdade a cair no fundo de si
na verdade uma mulher a cair
da altura de um prédio de seis andares
continuando viva com as cicatrizes
e as dores do passado e dos amores que se perdem
pelos quais se força a não chorar
como no poema

Precisamos da poesia
para nos salvar da queda
para ser a mão que ampara
o braço que ajuda a reerguer
o corpo inteiro que abraça
e cura as feridas
a beleza que traz brilho
ao fundo do olhar
e ilumina de novo o mundo

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

a partida de emaús

o que havemos de fazer
quando o coração fica em chamas?
com que amor
calar esse fogo?

Para explicar as viagens

os homens são uma máquina de viagens
interiores e exteriores
por milhões de mundos

há viagens que doem
e que os homens rejeitam
as que levam ao fundo de si

há viagens pela alegria
e que os homens rejeitam
as que começam pelo desconhecido

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Para explicar a cor dos prédios

há uma mulher sentada à sombra das árvores
num banco de jardim a ver passar os dias,
olho a mulher do fundo da solidão
que tantas vezes deixo que me abrace,
e no rosto há tantas rugas como nas árvores
de que queria saber ao menos o nome,
nunca tive tempo para estudar a flora
que irrompe livre dos passeios da cidade.
da mulher também não sei o nome
nem a vida que lhe fez as rugas,
ainda não é hoje que vou saber
porque o relógio não se cansa de dar as meias horas
e sou chamado, novamente, pela rotina dos dias

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

os frutos da estação

quando vêm as primeiras chuvas
há um cheiro a terra e, de algum modo,
à infância que ficou lá entre as fazendas e as vides,
as primeiras chuvas trazem o milagre
de uma magnólia a florir
de dentro para fora
como quando algo novo floresce num coração

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

pedras, ratos & canções de amor

havia uma palavra persistente
dentro da cabeça
e o esforço para a tentar mandar embora,
era a palavra incerto,
e o incerto tantas vezes dor,
outras vergonha,
outras medo,
outras a projecção do fracasso
que antecede o que está para vir,
porque o não,
porque a rejeição talvez,
porque a pequenez da minha alma,
porque as complicações da vida.

na cama à noite acontecia a palavra incerto
descansar abraçada à palavra coração
que sempre a acalma

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

lost in translation

não era já o muro o quintal relvado
as escadinhas para o alpendre
que dá acesso à casa
depois a própria casa e as suas divisões
a sala vazia de tudo menos um sofá
e umas garrafas ao canto
a casa de banho abandonada e suja
os lençóis dobrados sobre a cama no quarto
era o silêncio que habitou quem ocupou
aquele lugar
e que deixaram ali como memória
o que lá fomos à procura

estore entreaberto

nasce um dia novo
e é sempre noite em mim,
as moedas perdidas a ramalhar nos bolsos,
um livro de poemas na pasta de couro,
vários cadernos rabiscados a tinta preta,
a possibilidade do amor em suspenso,
as saudades de casa que talvez não saudades de casa,
a memória do conforto de não enfrentar
o que não se conhece,
o horário de trabalho ainda não decorado
num papel já meio amarrotado
e assinado fora da linha,
um abraço apertado à incerteza
e as promessas, tantas, que ficarão por cumprir

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

os castelos altaneiros

há sempre uma palavra ainda por cumprir
escondida nas pedras do buraco grande
da torre do facho
a que ninguém presta grande atenção
porque esse castelo agora tão ao longe
oitenta quilómetros de distância
às pedras com que se erguem
as saudades de casa
de não saber onde e com que pedras
erguer uma casa a que chame minha
o castelo às vezes tão perto do coração
como nunca esperei que fosse acontecer

uma chave de fendas contra a parede

que segredos escondem
os sons que se ouvem pela manhã?
já não os pássaros que cantam
e o barulho dos tractores,
agora uma espécie de gemidos
a sair dos prédios, tremuras,
buzinas ao longe e o som dos carros,
não há os latidos dos cães
nem às vezes o silêncio
com que esperava ainda o amor.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Para explicar o desconhecido

regar o medo que a incerteza traz
com as presenças agora mais próximas
e os pequenos milagres que acontecem
para acalmar os batimentos incertos
e afogá-lo, ao medo, bem fundo no tejo
até que seja luz nova
espelhada no mar da palha
a lembrar que amanhã
é sempre outra coisa
que podemos querer melhor

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Para explicar a cor das nuvens

há uma melancolia qualquer
nas nuvens baixas que aparecem
em dias como este,
nuvens como máquinas de pôr a pensar
nas palavras não ditas,
nuvens como gritos dirigidos
às raparigas de jerusalém
quando se está doente de amor,
essa enfermidade que consentimos
mesmo quando faz doer até aos ossos

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

fazenda

o que busco é a profundidade das raízes
das videiras velhas agora abandonadas,
como se dali viessem as memórias felizes
de uma infância que há-de voltar
transformada e transportada em outras vidas,
como se dali viesse um segredo,
porque se esconde muita sabedoria
nas vinhas velhas deste mundo,
sobre como descer ao fundo de um coração
que se quer conquistar e ao mesmo tempo
deixar livre como tem de ser sempre

terça-feira, 1 de outubro de 2019

folhas castanhas

enquanto no outono
as folhas caem das árvores
como o pequeno príncipe
na areia do deserto
insisto em olhar para outro lado
um horizonte distante
céu a pôr-se laranja por entre nuvens
já não vermelho
porque o amor
é uma casa que se espera de pé

à espera de uma canção

há uma luz que nunca se apaga,
dizias naquela tarde
em que esperavamos a vida
num banco de jardim encravado entre os prédios.
que não serve de nada a luz,
dizia-te eu, porque isto é escuridão tantas vezes,
não há túneis sequer para terem luzes ao fundo,
é tudo muito bonito e há as flores nos campos
mas não me queres como eu te quero,
sei o que isso dói porque me acontece
estar nesse teu papel.
fomos interrompidos por um velho
que pede um cigarro e lume,
uma luz que nunca se apaga.