blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

a flor no centro do claustro

Para a Luísa

como a magnólia a vicejar
no silêncio do claustro do mosteiro

a nossa vida floresce
quando testada como prata no crisol

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

caixa de sapatos

guardo todas as palavras
numa caixa velha que tenho no sótão
para onde vão os poemas impublicáveis
que são tantos

remeto-me agora ao silêncio
de que nunca devia ter saído
e vou morrendo mais um bocadinho

dos vãos projectos

espero a vida numa esquina
de pé e mãos nos bolsos
a mão esquerda no bolso
à procura de não sabe o quê
uma esferográfica uma lapiseira um terço
a mãe direita a segurar um cigarro
como um velho sentado num banco de jardim
aguarda o fim da chuva e o fim dos tempos

a vida uma nuvem branca que passa
a romper o céu limpo
sempre mais além
sempre longe demais

nada a declarar

no lugar do coração uma pedra
no lugar dos sentimentos um vazio
no lugar do amor outra palavra qualquer
talvez o silêncio talvez solidão talvez a inutilidade
no lugar de um homem eu
a ocupar espaço e alimento
aos que merecem cá estar

um dia
no lugar do poema poremos rosas
no lugar do amor poremos isso tudo
que temos andado a adiar

calhaus

a árvore que desponta livre
e destrói a calçada do parque
é por vezes a mais linda

o que fazer com essa beleza?

as nuvens a engolir as casas

pedia o dom de um nevoeiro
que me engolisse o corpo e a alma
como as nuvens às vezes escondem as casas
nestes dias de invernia
porque sou tantas vezes o pior dos homens
a usar com muita perfeição
as ferramentas de magoar e afastar as pessoas
e a encolher os ombros
porque a vida é mesmo assim
e nos exige calendários difíceis
porque a solidão é só uma condição que faz parte
porque a melancolia e o cansaço
até dão jeito aos poemas
na verdade ninguém gosta de histórias felizes
vamos fingindo gostar das crianças e das flores
porque isso nos distrai de ninguém na sala
a quem contar o dia e dar a mão
ninguém à espera à porta para ir connosco
conhecer outro lugar
nenhuma nuvem para nos engolir
e dizer que desaparecer é mais fácil
calar sempre mais fácil
o drama sempre mais fácil
que o esforço de admitir a derrota
e buscar caminhos novos

sábado, 25 de janeiro de 2020

aforismo

em tempo de tantas opiniões
e verdades absolutas
partilhadas sem direito de resposta
sou o lugar da dúvida
uma casa em que não se sabe ainda
o caminho certo para o lugar do repouso

a única certeza é a necessidade de caminhar

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

liber é também livro

só somos verdadeiramente livres
quando escolhemos a quem nos prender

era isto que nos ensinavam os livros antigos
a que já não ligamos coisa alguma
e deixamos na estante da biblioteca
do primeiro andar da casa velha
a ganhar pó entre as folhas

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

como um rio a dividir

olho o rio e os barcos parados
a agitar com o vento
e as ondas pequenas que se levantam
e quase esqueço as casas ao longe
lá do outro lado do rio e das três pontes
e as vidas que acontecem nas casas
vidas que vistas daqui
pareceriam demasiado lentas

para dizer o lume

às vezes vem-me à memória
um livro que ardeu num incêndio
sinto falta desse livro
como dos amigos que tenho
sempre tão mais ao longe

tenho tantas vezes os meus livros
como os meus únicos amigos
e nem esses protejo do lume

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

o novo mundo fica para depois

somos uma coisa sempre adiada,
as perguntas cada vez mais
que as tantas certezas
de que os outros se enchem
e os esvaziam de escutar
e dos diálogos fraternos,
aqueles em que olhávamos o outro como igual
e lhe podíamos chamar companheiro
porque partilhávamos com ele o pão
e as preocupações com o futuro,
agora só apetece o silêncio,
uma ausência total de tudo
que nos lembre que no meio de tanta gente,
como diz o clichê e as canções,
na verdade estamos sós
e tantas vezes dói muito

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

o vento a cortar as pernas

temos medo do mundo
como os poetas da folha em branco
e perdemo-nos nas pequenas consolações
o sol o céu aberto azul
o sorriso da mulher que passa junto ao rio
as canções que trauteamos sozinhos
e quase nos fazem esquecer
deste vento frio que corta até aos ossos
para lembrar esse medo de viver
e de enfrentar as páginas imaculadas
que mais valia deixássemos assim

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

sol em tons de rosa

andamos para aqui
batidos pelos ponteiros do relógio
a perseguir umas migalhas para sobreviver
a consultar uma agenda electrónica
em que apontamos os encontros sempre adiados
os livros que ficam por ler
e a felicidade que passa mais ao largo

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

para dizer um outro nome

há uma luta a fazer ainda
contra as sombras que nos impomos,
uma batalha dolorosa contra nós,
um riso estridente contra a dor que teima,
um abraço dado contra a solidão e o medo,
uma luz contra as trevas que habitam
o fundo da cabeça e das ideias,
uma companhia aceite contra o desejo
absurdo da solidão que atrai e esmaga