blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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terça-feira, 29 de janeiro de 2013

doce solidão

hoje só queria ter com quem falar
alguém a quem mandar uma sms
uma carta
um fax
um telex
um telegrama
sinais de fumo

mas não posso
foste embora
e não estás cá para mim

a culpa é minha.
desde que decidi ficar sozinho
para ser para os outros
o que não tenho para mim

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

perdeu-se um coração

sabes?
faz falta às redes sociais
a partilha de imagens a dizer
que se perdeu um coração

no meio de animais
e pessoas desaparecidas
esquecemo-nos sempre disso
«perdeu-se um coração»

um homem perdeu o coração
junto do rio arnon
- que já ninguém sabe onde fica -
e não há quem monte uma expedição
para o resgatar

"procura-se coração perdido"
dir-se-ia pelos vales
e grande seria a festa
por um só coração que se encontra

diriam
«sabes?
achei um coração
o maior dos tesouros»

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

[desconstrução de frases feitas sobre um país: 3]

"Portugal, o país de Fátima". Apesar de 90% da população se dizer católica só 30% vai à Missa dominical e frequenta os sacramentos. A taxa de divórcios dobra a taxa de casamentos religiosos. O Santuário de Fátima enche nas peregrinações aniversárias, sobretudo com gente que fala alto, atende telemóveis e fuma no recinto do Santuário durante as celebrações.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

[desconstrução de frases feitas sobre um país: 2]

"Portugal, país do fado". Vendem-se mais cd's do Tony Carreira sozinho num ano do que da Amália, da Mariza, do Camané, da Ana Moura e do António Zambujo juntos em três.

[desconstrução de frases feitas sobre um país: 1]

"Portugal, um país de poetas". 90% da população alfabetizada mais rapidamente diz o nome de cinco concorrentes à casa dos segredos do que o de três poetas.

domingo, 6 de janeiro de 2013

São João e a ribeira

Passando por São João da Ribeira às nove da noite e a oitenta e tal à hora só se dá pelos semáforos, muitos, demais, e nada, mesmo nada, pela presença do poeta. Não há um café com o nome dele, uma rua que o refira e que fique junto à estrada principal. A internet diz que há lá uma escola que se chama Centro Escolar Poeta Ruy Belo e eu nem sei se me ria se chore com essa notícia. Talvez seja melhor rir, já que dão o nome de um poeta destes a uma escola onde ele não vai ser lido. Mas talvez me apeteça chorar... É triste que na terra onde Ruy Belo nasceu seja preciso esclarecer que o homem que dá o nome à escola é o poeta. É triste que na terra de Ruy Belo não saibam quem ele é. É triste que no país de Ruy Belo não saibam quem ele é. É triste que neste país de poetas saibamos mais rapidamente dizer o nome de cinco concorrentes à casa dos segredos ou a um desses concursos miseráveis da televisão do que o de três poetas decentes.

 
Nota do autor: aqui há tempos vi uma reportagem num jornal regional sobre a visita do "ministro" da (des)educação e ciência (experimental) a um centro escolar da zona de Rio Maior que descobri agora ser este de São João da Ribeira. Nessa notícia diziam que o "ministro" foi aplaudido pelos presentes. Fiquei ainda mais triste com a ideia de terem dado o nome de Ruy Belo a um sítio daqueles. Não foram, não serão, capazes de dignificar minimamente o nome do patrono da escola. Pelo menos começaram bastante mal.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

dois de janeiro

o dia dois de janeiro devia ser um dia mundial para os humoristas, fosse eu a favor de dias mundiais do que quer que fosse. isto porque neste dia me lembro sempre de uma das maiores aproximações ao humor do senhor meu pai, que religiosamente todos os dias dois de janeiro aproveita para dizer que «temos de ir ali ao largo para ver passar um homem com quantas orelhas quanto dias tem o ano». 
por que não ir ao largo dia um para ver uma pessoa com tantos narizes quanto dias tem o ano, ou dia dez para ver uma pessoa com tantos dedos das mãos quanto dias tem o ano ou no dia trinta e dois do ano para ver uma pessoa com tantos dentes quanto dias tem o ano (sendo que, no oeste português, é difícil que passe uma pessoa com dentição completa, pelo que é melhor passar por lá antes; quem sabe se não logo na primeira semana)? esta é, como a maioria das piadas populares, uma graça bastante fraquinha.
no entanto serve muito bem como piada de início de ano, pelo que continuo a defender que por causa dela o dois de janeiro devia ser o dia mundial dos humoristas. serve bem como piada de início de ano porque sempre é melhor do que as graçolas de início de ano que andam por aí agora, todas sobre crise e economia e finanças. antes prefiro começar o ano a rir-me por me deixar apanhar na marotice de quem me quer fazer ir até ao largo ver uma coisa nunca vista que na verdade é o mais normal que existe (ou por haver quem ache que alguém vai cair nessa hábil ratoeira) do que a rir-me porque vou ficar mais pobre e continuar a ser roubado (no fundo, o que as pessoas que fazem essas graças querem é lembrar-nos de que estamos em crise de economia e das finanças, como se não o soubéssemos já e como se não sofrêssemos suficientemente com isso).
este ano, em que isto parece que vai ser mesmo mau, é que precisamos mesmo de nos rir de outras coisas. este ano é que precisamos de chorar por causa de outras coisas, de conversar sobre outras coisas. este ano é que precisamos da cultura (dos livros, dos filmes, dos discos, da pintura, da escultura) nas praças outra vez. este ano é que precisamos da teologia nas praças outra vez. precisamos outra vez dos tempos em que havia bulha no mercado por causa do filioque e não dos zero vírgula cinco por cento de não sei quê do gaspar.