blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

à noite os homens choram

i

durante o dia, ele era um homem bastante forte. carregava sacas de batatas às costas e grandes quantidades de sacos do supermercado ao mesmo tempo. aproveitava-se da sua condição de patrão e maltratava os empregados e até os clientes. no fundo, queria mostrar tudo o que lhe tinham ensinado nos anos que passou na tropa, que a vida não se compadece dos fracos e que não se pode ser manso e educado com as pessoas senão elas amolecem. a verdade é que por causa das suas atitudes já ninguém gostava dele, nem sequer a mulher, que só mantinha aquela relação porque havia filhos, e esses tinham mais a ganhar com uma família estável, mesmo que infeliz. o homem andava com problemas - para se ser tão malcriado só se pode ter grandes problemas - mas com apenas um a afligi-lo a sério (que não, não era o facto de ninguém gostar dele por ser mal educado; essa atitude ele achava-a necessária e certa). o problema dele, o que o preocupava mesmo, manifestava-se à noite, quando a mulher ficava a tratar de papéis da contabilidade e ele recolhia sozinho à cama. deitava-se, abraçava-se à almofada e chorava amargamente. o seu verdadeiro problema era não haver ninguém que o amasse. nenhum homem bonito e atraente e jovem. todos os carnavais ele se mascarava de mulher, com uma cabeleira loira e uns saltos altos, para ficar como na verdade se queria e a ver se despertava a atenção de alguém, de algum homem que lhe quisesse dar amor. mas nunca chamava a atenção de ninguém, só se tornava cada vez mais ridículo. e isso doía-lhe como mil mortes. chorava, gemia, mas tinha de limpar as lágrimas antes de ter companhia, porque os homens são fortes. a mulher não o podia ver chorar - os homens são fortes. no dia seguinte, acordava cedo, e voltava à sua vida de carregar batatas ao ombro e tratar mal as pessoas, porque os homens são fortes.

ii

quando fechava a porta e entrava no quarto, abria-se em pranto. todos os dias, sabia que ela tinha outro. isso, em si, não o fazia chorar, porque ele sabia que ela até era feliz. o que o fazia chorar era a dúvida. será que o outro também saberia daquele brilho nos olhos dela? saberia ele daquele sorriso? saberia dizer-lhe poemas de cor, daqueles que falam do amor verdadeiro? quereria ele levá-la à praia e passear de mão dada à beira-mar ou seria antes dos que preferem passear em centros comerciais, a tirar fotografias e a entrar em lojas onde fingem não estar enfadados? será que ele vestia fato de treino aos domingos para ficar sentado no sofá a ver comédias românticas e a beber cerveja? isto, sim, amargurava o homem, porque apesar de tudo ele pensava que podia ser melhor. afinal, ele conhecia aqueles olhos, aquele sorriso, aquelas mãos, não começava logo a olhar-lhe para as mamas. nunca viu nela uma máquina de sexo. depois de se pôr não sei quanto tempo a pensar nisto, enxugava as lágrimas, porque os homens não podem ser piegas. voltava-se e adormecia.

iii

os ataques de tosse só lhe davam à noite, e faziam-no chorar. durante o dia não podia estar doente, porque os homens são rijos e fortes e não têm dores de cabeça nem tosse nem febre nem expectoração. substituía os remédios por mezinhas porque ir ao médico não é de homem e os nossos avós é que sabiam da vida. a tosse vai-se tornando cada vez mais forte, contrariando o efeito dos limões com mel e açúcar. começa a vir acompanhada de muita expectoração e começa a fazer falta um escarrador, como se usava no tempo dos nossos avós que nunca andaram na escola e a sabiam toda. o homem cada vez chora mais. tanta tosse já faz suar. mas há que ser forte. rezar. pensar noutras coisas. ser um homem. amanhã vai estar tudo bem. amanhã está tudo bem.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

oração do católico escolhido para fazer de Job

meu Deus,
eu me abandono a Ti.
deixa que venham todas as dívidas,
deixa que venha toda a solidão,
deixa que morram pessoas à minha volta,
deixa que adoeçam pessoas importantes para mim.
manda todas as operações,
manda todas as facturas,
manda todas as cartas com coisas para pagar,
manda todos os recibos com baixos salários.

mas deixa a minha a fé,
deixa o meu amor por Ti,
deixa a minha esperança na Ressurreição,
deixa a minha confiança na moral que me propões,
deixa-me acreditar no Amor.
deixa-me acreditar que é possível contemplar o Teu rosto,
porque estás Vivo, és o Vivente.

Meditação existencial

«Tornámo-nos, até ao presente, como o esterco do mundo e a escória do universo» (1 Cor 4, 13). Esta é a minha meditação quaresmal (no sentido de um desejo de humilhação que ponha Deus no seu lugar e a mim no meu), a minha meditação existencial, porque sei que serei feliz assim, como foram Paulo de Tarso e Francisco de Assis, e uma meditação para este momento concreto da minha vida, pois ao cabo de muitas reuniões de coisas sérias em escolas percebo que um professor também já não é nada mais que isto, que esterco do mundo, que um idiota [1 Cor 4, 10] (com a agravante de que a maioria não o é, nem quer ser, día tòn Christón), que uma pessoa que causa «escândalo para os judeus e idiotice para os gregos» (1 Cor 1, 23), mesmo num tempo em que já não se sabe quem são uns e outros e em que todos são desculpados, porque é a sociedade que é assim - somos livres e cada um deve fazer o que lhe dá na real gana; depois medem-se as consequências - e porque a psicologia explica e desculpa tudo - na verdade somos todos doentes. Depois pedem-me para ensinar valores, como se eu transformasse pedras em pão. Pedem-me para ensinar valores, pensando que eu ensino valores pouco elevados, como os deles. Mas o que eu quero ensinar são só valores elevados, valores a sério, como estes: «Queiram ser o esterco do mundo e a escória do universo».

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

noventa e cinco por cento inútil

noventa e cinco por cento das coisas que sabemos não servem para nada. afinal, somos pó e ao pó havemos de voltar. o crítico de cinema joão lopes apanha o metro na estação de roma. os caracóis podem dormir três anos seguidos. Deus é mistério, e podemos perder as ilusões quanto a saber muito sobre Ele, porque o mais que podemos é não nos enganarmos muito ao falar sobre o mistério. a mística cristã e a mística oriental de cariz budista têm três coisas em comum e outras três em que divergem. as cinzas usadas na quarta-feira de cinzas são feitas com os ramos do domingo de ramos do ano anterior. o crítico de cinema joão lopes usa uns óculos para ler que são parecidos com uns que comprei na h&m por seis euros e tal. os meus ganham pó, por andarem nos bolsos do meu casaco. afinal, de todas estas informações, a mais importante é que sou pó e ao pó hei-de voltar.

Os dias de penitência

Num tempo que é, para tanta gente, de penitência forçada, de sacrifícios impostos pela economia, hoje punha-me a pensar no sentido que tem a penitência quaresmal que hoje começa a ser proposta aos cristãos. Afinal, não são já tantos os sacrifícios que temos de fazer? Não é já tanto o que temos de deixar de comer? Não são tantas as coisas exteriores supérfluas que já tivemos de deixar?
A minha resposta, sinceramente, é não. Porque essas coisas deixámo-las por imposições exteriores. Os sacrifícios da Quaresma fazêmo-los por imposições interiores, para que o exterior diga do que vai dentro de nós. Faz sentido jejuar e fazer abstinência porque só assim Deus cresce e eu diminuo. Até é também verdade que assim muitas vezes me apercebo que eu, que penso que até faço grandes sacrifícios e poupo muito, na verdade tenho mais, bem mais, que muita gente. Percebo que ainda preciso de me limpar de muita tralha. E isso é bom. Como proposta para este início de Quaresma, deixo uma versão musical do De profundis, uma boa oração para a Quaresma, e depois o dito Salmo em português (fica ainda, aqui, o link para o texto original do Salmo).


1Cântico das peregrinações.
Do fundo do abismo clamo a ti, SENHOR!
2Senhor, ouve a minha prece!
Estejam teus ouvidos atentos
à voz da minha súplica!
3Se tiveres em conta os nossos pecados,
Senhor, quem poderá resistir?
4Mas em ti encontramos o perdão;
por isso te fazes respeitar.
5Eu espero no SENHOR! Sim, espero!
A minha alma confia na sua palavra.
6A minha alma volta-se para o Senhor,
mais do que a sentinela para a aurora.
Mais do que a sentinela espera pela aurora,
7Israel espera pelo SENHOR;
porque nele há misericórdia
e com Ele é abundante a redenção.
8Ele há-de livrar Israel
de todos os seus pecados.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Oração ou decisão unilateral?

Comecei por estes dias a rezar para que a Igreja faça de Messiaen Beato, Santo, ou Doutor da Igreja (esclareço que é uma oração que até tem fundamento, uma vez que não sou o único a achar isto; é uma opinião partilhada com pessoas que vivem verdadeiramente a música, a começar por Eurico Carrapatoso). E percebi que preciso de rezar cada vez mais, não vá alguém criar antes disso uma Igreja Católica Romana de São Olivier Messiaen, para fazer concorrência à Igreja Ortodoxa Africana de São John Coltrane...
Já agora, esta última Igreja fez-me lembrar da lista de Igrejas Evangélicas do Brasil. Que deve ser vista, por motivos de riso.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Fazer teologia sem palavras

Sendo uma das fontes da Teologia a Sagrada Escritura, é difícil conceber uma teologia sem palavras (a menos que nos estejamos a referir a uma teologia estrita do silencio). No entanto, isso está ao alcance humano. Olivier Messiaen vem prová-lo. É possível fazer teologia sem palavras, só com o som de um órgão. O senhor devia ser rapidamente qualquer coisa: Santo, Doutor da Igreja, Servo de Deus. Vale a pena ouvi-lo a fazer teologia (neste caso, vale a pena ouvir teologia escrita por ele).

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Don't worry

Ainda não nos tiraram o sol nem o riso

Por isso ainda há aquele restinho de esperança,
quanto baste,
para podermos ser felizes aqui.