a verdadeira poesia
está toda no poema
que ficará por escrever
atenção que não disse
o poema não escrito
ainda não escrito
falei no que jamais
irão escrever
a verdadeira poesia
está toda no poema
que ficará por escrever
atenção que não disse
o poema não escrito
ainda não escrito
falei no que jamais
irão escrever
Ao som da lira
canta-lhes salmos
sobre vitórias na guerra
e derrotas no amor
«o amado não estava à porta.
morrerei de amor».
são tão apaixonantes
os versos de violência
que quase nos esquecemos
dos versos de amor
volta o sol da primavera
e os riscos que os aviões traçam no céu
duas gaivotas sobrevoam
os prédios do bairro social
ninguém as nota na cidade
ninguém teme tempestades no mar
não faço parte de nenhum partido político
e só tenho a quarta classe.
como uma aguadilha com feijões de lata
aquecida num fogão de dois bicos.
sou um andrajo de existência,
palavras caras que aprendi
num dicionário de capa azul,
propriedade do meu filho do meio.
o dicionário tem páginas manchadas de saliva.
o meu filho molha os dedos
antes de buscar as palavras seguintes.
lê muito, o meu filho do meio,
relatórios e manuais que não
consigo entender. nunca leu
o romance que lhe ofereci nos anos.
nunca leu livros de poemas.
não conserva o respeito
pelo cheiro da província.
eu cá ainda sonho
com o som do arado a cortar a terra
e com o poema que isso transporta.
aqui, na cidade, sou um prisioneiro
que as palavras vêm, amiúde, libertar.