blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

Pesquisar neste blogue

sexta-feira, 27 de junho de 2014

água ardente

o saco de plástico
cheio de água
ao fundo das escadas
é tão inútil
quanto eu
e aquele auto-conselho
que me dei num banco de jardim
numa noite quente
«nunca te deixes apaixonar
por mulheres casadas»

quarta-feira, 25 de junho de 2014

das nuvens

a vida é um mistério
que vem sem manual
(a palavra mistério
não implica necessariamente
algo escondido.
pode referir-se
a uma coisa que se desvela
como quando a mulher
se despe para ti)
o amor é, dizem,
a chave do mistério
o amor é um lugar
onde se pode chorar
esse segredo
nunca o contes
a ninguém

segunda-feira, 16 de junho de 2014

regrettings

quando olho para trás
não me lamento do dia
em que te aconselhei
a pôr a auto-ajuda no cu

acho que às vezes
ainda me vou lembrar de ti
como da arca velha em casa da avó
mas nada mais do que isso

edifício nós

está uma noite
estranhamente quente
enquanto no pátio
quatro oliveiras jovens
dançam efusivas
é uma graça poder olhá-las
não ter uma casa
é um milagre
que às vezes acontece

holon

o cansaço que vem de dentro
custa mais a resolver
os comprimidos que se usam
para aliviar as dores
de duas voltas a pé
pela capital
deviam minorar também
os efeitos da angústia

quarta-feira, 11 de junho de 2014

renovação

Depois de uma tarde a tratar do jardim
a nossa vida
importa menos
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

era o mesmo jardim
todos os dias
os mesmos gestos repetidos
as mesmas alfaias
para cortar plantas
e sulcar a terra

ao mesmo tempo
um mundo sempre novo
que vem de dentro
das covas abertas
a flor nova que brota
transforma todas as coisas

segunda-feira, 9 de junho de 2014

rejeitados

estes os que resistem
à cura preciosa do tempo
foram anos e anos
de um longo caminho
percorrido a pé
com um destino
nem sempre bem traçado
estes os que ninguém quer
talvez se queiram a si mesmos
é esse o primeiro passo
para que sejam
parte de um mundo de homens

dezanove e vinte e três

na carruagem azul
trocava mensagens de ódio
com o seu amor

hoje não sabia mais nada dele
nem o nome
sabia que o odiava
com todas as forças

é linda demais
para ser assim trocada por outro

bendito o dia em que escreveu
nos contactos do telemóvel
amor e um coração
é tudo o que agora precisa de saber

a sombra

debaixo da escada
escondido
um lírio em flor

sumol

há uma coordenação mecânica
que se exige aos homens
que pisam uvas nos lagares

é esse gosto musical
que passa para os seus vinhos
e se perde nos outros
que são triturados em máquinas

the man with a bag on his back

a via do amor é estreita
e cheia de pedras e silvados
caminhos longos
que se fazem de mala às costas
com muitos mantimentos
agasalhos e um saco-cama

quando cair o frio da noite
abriga-te
debaixo das folhas dos pinheiros

quando o sol se levantar
faz-te de novo ao caminho
com as tuas botas calçadas
umas botas cheias de pó

calçada de carriche

a vida é feita
de escolhas e imperfeições
sobe àquele monte
onde se vê o mundo

quando atingires o cume
continua a subir

terça-feira, 3 de junho de 2014

vinte e um ciprestes

não és o lugar da esperança
és o sítio onde se espera
um sinal

das cores (roxo)

em todos os meus sonhos
o mesmo pé de jacarandá

todos os meus sonhos
cheios de flores roxas
que colam os pés

todos os meus sonhos
o teu vestido roxo
no meio da pista
na festa do liceu

somos todos um bocado doutores

já não há lágrimas
quando à noite a casa vazia
a solidão é um estado
que não se escolhe
mas se aprende a aceitar
é como as profissões
como tudo enfim
neste tempo de escombros

junto ao rio escolho pedras
que estejam gastas pela água
com elas hei-de fazer uma casa
que ponha fim às nossas solidões

o onomá

não te falte o tempo
para dizer os nomes dos rios
nem dos barcos que lá navegam

ontem esqueceste as palavras
que se usam para dizer o amor
e outros sentimentos
que fazem doer

só sabes os nomes dos rios
e outras coisas inúteis

nós

a idade das árvores
calcula-se contando
os nós do seu tronco

a idade dos homens
calcula-se contando
os nós na garganta

segunda-feira, 2 de junho de 2014

uma canção para pavlov

eram três da manhã no quarto escuro
e gemias com medo da escuridão
vinhas ter comigo como se isso
de alguma forma te defendesse
acho que não defendeu
não sou forte o suficiente
para defender quem quer que seja
antes de me acordares em sobressalto
sonhava com a forma de te fazer brilhar os olhos
sem ter de pôr músicas de dança
(talvez te fizessem falta
umas horas de televisão
deitada sem sapatos num sofá
que não é só teu)