blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

os dias do fim do ano

são sempre curtos os dias do fim do ano,
falta o tempo para descansar do que passou,
era preciso mais para preparar a vida que falta,
enterrar de vez os amores que passam
e fazer circular ar novo pela casa
para que entrem amores novos
num lugar digno dessas palavras:
amor, salvação, respeito, alegria.
falta o tempo de pedir isso, ao menos:
trezentos e sessenta e cinco dias
para construir uma morada
que albergue a alegria 

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

sétimo tratado sobre a violência

Entre a dor e a raiva, há em nós um pendor
alucinante para a violência das palavras:
a palavra cão não morde, nem a palavra morte mata, 
mas há muitas palavras
que podem estragar uma pessoa por dentro.
Há-de haver, no entanto, um clamor interior
que grita como Deus a Caim:
timshel chatat!
Tu podes dominar o mal
e escolher outro caminho.

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

olhar os lírios

queria ser um lírio
ao fundo dos campos
que servem de paisagem
ao teu sorriso

são livres, os lírios

domingo, 20 de novembro de 2022

Casa Guilhermina

Diz o ditado que em casa da avó Maria
três sortes de pão havia:
pão de milho, duro e mole.
Estive a ouvir o disco novo da Ana Moura,
há por lá uma melodia de fandango,
num interlúdio que cose o álbum.
Chorei. Em pequeno, depois de uma sopa de feijão,
fazia-se silêncio à mesa
e o avô Manel dançava o fandango
com os dedos gastos da terra, sobre a mesa,
e naqueles momentos éramos felizes 

terça-feira, 15 de novembro de 2022

breve autobiografia num parque de supermercado

fazer um homem chorar
com vinte euros a saltar da carteira
e meia hora de conversa sobre a guerra
a que assiste nas mesas de café
acompanhado de vinho e cigarros.
chama-se Pedro Manuel de Jesus Espírito Santo,
o homem. não me quis vir embora
sem lhe saber ao menos o nome.

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

mundos fascinantes

um bar. duas cervejas na mesa de um bar.
uma mulher de camisa branca, linda, a mulher.
um homem a aproximar-se da mulher.
começa a música. trio odemira.
uma canção de desamor e traição, «ana maria».
a mulher e o homem dançam
como se o mundo findasse ali.
se calhar findou.

breve autobiografia teológica

para o Maurício

dizem que Deus é brasileiro.
estudei vários manuais de Teologia,
durante cinco anos,
também para entender o Brasil.
como acontece com o mistério de Deus,
sobre o qual um Professor dizia
que nunca saberemos nada,
só umas coisas para não nos enganarmos muito,
não dá para saber muito sobre o Brasil,
talvez que é um erro bonito,
que é o princípio da poesia.

thanatos

o pior de chegar o fim do mundo
é que depois dele
não teremos a quem contar
o que vimos e ouvimos

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

sabão

o sabonete líquido das casas de banho
aqui no emprego
tem o cheiro do teu perfume

de repente a memória
e as saudades
de ter as tuas mãos pequeninas
abrigadas no meu peito 

domingo, 30 de outubro de 2022

do décimo terceiro livro dos mistérios

Contrariamente ao que dizia
o Professor que ensinava coisas aos homens
sobre o mistério de Deus,
um gato espreitava pela janela
do primeiro andar
com medo da queda 

la puesta del sol

desejar que ao pôr do sol
como pela manhã
o nevoeiro se estenda como manto
sobre os campos
e sobre mim 

sábado, 29 de outubro de 2022

chuva miudinha

tirava o capuz
para que a chuva caísse
livremente sobre o corpo

ainda uma forma de afago,
ainda um verbo para dizer a companhia
que quer faltar 

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

requiem alemão

uma peça a condizer com a noite
uma peça a condizer com o passeio nocturno
uma peça a condizer com o vento
uma peça a condizer com os cães a latir ao fundo
uma peça a condizer com a solidão das almas 

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

domingo, 4 de setembro de 2022

dois sopros

o que habitamos
é a noite.
ao amanhecer
abriremos as janelas da casa
ao brilho claro da manhã 

quarta-feira, 27 de julho de 2022

quarta-feira, 20 de julho de 2022

a construção da casa

um amigo é outro nome
para dizer a casa
onde te sentas a descansar
às vezes em festa
outras em silêncio 

segunda-feira, 4 de julho de 2022

caruma

atirar as beatas para longe
dos montes de caruma
que o vento acumula no parque:
mais uma vez, conter a ignição
do incêndio de todas as coisas,
ao mesmo tempo fechar os olhos
e pedir em silêncio
que o fogo interior e terno
do amor
não se queira apagar dos corações 

um gato assustado

de repente, avanças com medo
na tua própria casa,
para não assustar o gato
que encontraste na rua
e se eriça quando passas.

na nossa vida há sempre um lugar
para a aprendizagem lenta do afecto 

sexta-feira, 1 de julho de 2022

leur souffle

é estranha ao mundo
a vida para lá dos portões grandes
de madeira tratada

mas eu conheci o silêncio
e há sempre em algum lugar de mim
saudades do mosteiro

quarta-feira, 29 de junho de 2022

le printemps

passamos os dias a esperar o verão
sem parar um minuto
para agradecer
o dom do vento que faz
na primavera

terça-feira, 21 de junho de 2022

mulher de lot

a minha flor preferida
é a flor de sal
que o sol cria
em dia de solstício 

what we have lost

resgatar a minha vida
perseguindo os lugares
das fotos em sépia
que me deixaste em herança:
ainda é o teu amor, ó mãe,
que busco pelas vielas

terça-feira, 14 de junho de 2022

cuidado com o cão

passávamos em frente a um portão velho,
um dos muitos portões velhos na aldeia esquecida
e lia-te um aviso gravado em azulejo:
«cuidado com o cão».
agradecias-me o alerta,
abraçavas-me e dizias
«cuidas de mim»,
uma das frases mais belas
com que me expressaram amor,
um dos mais belos nomes do amor,
cuidar de alguém

domingo, 5 de junho de 2022

terra brasilis

uma sirene da polícia ao fundo
e penso, de repente,
que os ira cantariam
«feliz aniversário, envelheço na cidade»,
o que não serviria de consolo
ao prevaricador perseguido

cândido

passar na vida
sabendo que não é crime
colher limões
se a tranca der para a estrada

a vida que está ao acesso de todos
é para usufruto de todos
e para fazer crescer o mundo

quarta-feira, 1 de junho de 2022

civitas

versos roubados a uma mulher,
à mulher que amo:
os carros que passam na estrada 
da cidade
ao longe
soam ao mar bravo
batendo contra as rochas junto ao cais

segunda-feira, 23 de maio de 2022

el tiempo que te doy

notícias de meteorologia
prometem calor
para os próximos dias.

hoje só chove, aqui dentro de mim,
as nuvens cobrem o rosto
e faz frio até à medula

os dedos entrelaçados

confiar no poema
mais do que na capa do livro:
um exercício de fé na vida
que custa às vezes tanto
quando amanhece nublado

há um mistério indizível
no céu que rasga as nuvens

domingo, 22 de maio de 2022

ana de día

para que casa fugir
quando não tens casa,
um lugar onde deixar a roupa
os livros os discos os filmes,
deitar o corpo e descansar?

segunda-feira, 16 de maio de 2022

dieta de worms

há um momento na tua vida
em que, como Lutero na assembleia
a que foi chamado,
olhas pela primeira vez as tuas pernas
e não as reconheces:
somos muitas vezes um lugar
fora do nosso corpo

segunda-feira, 9 de maio de 2022

os nomes do fogo

há sempre versos que quero roubar
e fazer meus:
poder dizer que o que arde,
a chama que nasce e dá nome ao lume,
há-de morrer iluminando,
sendo uma enorme fonte de luz
que atrai os olhares em redor

domingo, 8 de maio de 2022

sobre a manhã

assisti ao calor
ao som das cobras nos silvados
ao vôo das cegonhas
ao ruído dos bicos das cegonhas
a afugentar os pássaros dos ninhos
tudo visto de fora
como quase sempre

quinta-feira, 28 de abril de 2022

jardim botânico de curitiba

há uma flor nova
a nascer no centro da estufa
do jardim botânico,
por entre ervas daninhas

este ano, e depois o outro,
e depois mais outro,
romperá por entre as ervas:
uma casa para a beleza

assim a vida

domingo, 24 de abril de 2022

sahara

a memória da areia imensa
a lembrança da sede
uma sede imensa
é o que fica da viagem
ao deserto
em que encontrei
uma rosa de pedra

do sétimo livro das instruções

devíamos falar de amor
como um pai
que do cimo de uma bicicleta
instrui o filho
a olhar os pássaros
na relva

quarta-feira, 20 de abril de 2022

dezanove anos

é cruel a passagem dos dias:

nenhum dos meus alunos
identifica a memória tão viva
do genérico da arca de noé

ontem à noite
chorei com saudades
do talento de um amigo

sábado, 16 de abril de 2022

estufa fria

dava-te a mão
e um beijo no rosto
via-te feliz
à procura do amor
entre as folhas lindas
das plantas exóticas

sábado, 9 de abril de 2022

do livro dos silêncios

precisava de silêncio
um lugar para descansar a cabeça
e os padeiros corriam a aldeia
em algazarra
como em festa

quarta-feira, 6 de abril de 2022

fumo denso

ando a fumar demasiado
porque o último trago
de cada cigarro
deixa o teu sabor
na minha boca

as cores

há dias que amanhecem negros
e muito nebulosos:
muitos hojes, esses dias

e há um verso em branco
que ainda havemos de escrever:
que seja já amanhã

terça-feira, 5 de abril de 2022

sexta-feira, 1 de abril de 2022

bloco de notas sob sol da primavera

alguns dias está muito escuro
na cadeira em que te sentas
e há sombras a impôr-se
e a invadir lentamente a cabeça

mas quero que saibas
que és luz
hoje ainda apesar da sombra és luz
amanhã serás luz mais brilhante
em mim

segunda-feira, 28 de março de 2022

spes

ao raiar do novo dia
vão revigorar as plantas
e vais revigorar também
mais linda
a partir de dentro

la llorona

ao redor do mundo
há biliões de tarefas
a acontecer em simultâneo.
algures, num pequeno ponto
perdido entre uma cidade do interior,
uma aldeia e uma vila do litoral
e a cidade capital do país,
um ponto traçado com rigor
a régua e esquadro
e assinalado com um marco geodésico
nos corações dos amantes,
uma mulher e um homem
partilham a tarefa de chorar,
não sabem se choro de tristeza ou de alegria,
vão inventando um choro novo de amor
em caminho e construção,
a esperar o futuro

domingo, 27 de março de 2022

um anjo à cabeceira

o anjo protector
toca para nós
canções de amor:

ao amanhecer do dia
não cessarão de soar
as trombetas

quinta-feira, 24 de março de 2022

chuvas de março

quando o frio entra nos ossos
e a chuva ameaça destruir os cultivos
há ainda uma promessa:
não me largarás a mão.

há ainda um mundo inteiro
para construirmos juntos

segunda-feira, 21 de março de 2022

comemorativo

queria contar o frio
que envolve uma ratazana morta
à beira da estrada

mas é dia de comemoração
e dos poetas
as pessoas querem
versos de amor

sábado, 19 de março de 2022

segunda-feira, 14 de março de 2022

paragem

o mundo parou de girar
quando servi cenouras
no teu prato
e surgiu um brilho nos olhos

vi a beleza toda ali
e demos um beijo
que parece ser
para sempre

domingo, 6 de março de 2022

ornitologia

queria escrever um poema
sobre acordar de manhã
com o sol a bater forte na janela
ter companhia aqui mesmo ao lado
e o som dos pássaros lá fora

mas não dá,
sempre fui demasiado lento
para identificar as aves
pelo seu cantar,
uma forma de inutilidade
para a vida

sexta-feira, 4 de março de 2022

nove horas, vento lá fora

quando amanhece
e surgem novas as antigas obrigações
continuas a ser tu
a razão dos meus poemas
e do que me faz mexer por dentro

meia-noite, vento lá fora

o bom de fechar os olhos
quando vem a hora de dormir
é que para lá do som do vento,
mais nítido agora,
vem também muito clara
a memória das noites abraçado a ti
e o teu cheiro começa a habitar-me

virá a noite
e em seguida a manhã
uma oportunidade mais
para incarnar a memória
para te prender a mim num abraço
e ser teu

quarta-feira, 2 de março de 2022

o erro mais bonito

errar bonito é o princípio da poesia,
dizia o poeta

erro demasiado todos os dias,
não queria ser um poema assim

luce

adormeci a ver preços de isqueiros
que sejam dignos
de servir como ignição
ao incêndio do mundo

terça-feira, 1 de março de 2022

parque de merendas

há silêncio na aldeia.
sento-me num banco de jardim
à espera do som dos sinos,
aqui bem perto mesmo um sino,
ao longe uma corneta a imitar os sinos de fátima,
e, como sempre, para pensar em ti,
agora mais devagar,
e aprender a amar as tuas imperfeições.
só assim se constrói um amor perfeito.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

lágrima (ii)

a guerra começou
ao raiar da manhã

e as mães fecham-se para dentro
com o medo dos filhos de farda,
o homem que amam de farda
com uma arma na mão
apontada à cabeça de outro homem,
alguém amará também esse homem,
a mira a desviar-se do coração do outro homem,
um choro contido pela bala que não quer sair
e destruir outro que é em tudo igual a si

lágrima (i)

acordo a meio da noite
e com o coração em sobressalto
choro de alegria

o ser humano é 
uma máquina perfeita
para glorificar a imperfeição

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

milagres

aqui faz frio
e as vozes que lá vêm
escutam-se ainda
muito ao longe

virão os dias quentes
tardes partilhadas ao sol
uma hipótese para o novo

as figueiras
hão-de florir

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

doação

 take my hand, I'm a stranger in paradise



dou-te a mão enquanto dormes
e cantam pássaros num dia de sol
dentro do meu coração

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

amor tem m no nome

habituei-me a não esperar nada,
uma vida batida pelos horários,
os toques no emprego,
as viagens de regresso a casa
sempre iguais, ao som das mesmas canções,
sempre muito iguais e as mesmas, as canções,
o jantar com o pão sobre a mesa,
mesmo quando ninguém toca o pão sobre a mesa,
o tempo perdido num lugar nenhum
antes de dormir sozinho

e quando já não esperava nada
vieste tu
bater à porta do meu coração
e ser luz e riso

in illo tempore

à mesa do jantar
a mãe perguntava
se os filhos podem ser
alistados para a guerra

um nome retorcido
para o mistério do amor

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

moinho de ferro

quando à noite caminho
na aldeia sob o ladrar dos cães
há um aconchego que traz
o teu cheiro no meu casaco
que protege do frio
e me abraça e diz
que estás aqui,
estás sempre aqui comigo

rosas de pedra

não era uma flor a germinar
era uma pedra
no lugar do coração

todos os dias, manhã cedo,
tirava água do poço
que iluminava aquele deserto
e regava a pedra,
chorava também muito
sobre a pedra,
exigia à pedra que ganhasse vida
e se tornasse flor viva,
coração vivo a acelerar

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

a passagem das horas

no fim dos tempos,
quando vier o fim dos tempos,
pedirei como dom uma pedra
que se transforme em coração salvo

cova de dominique

o canto das gaivotas ao longe
a confundir o ruído do amado
que vem pelo mar
e a aumentar o desejo da amada
que o espera ao rés das águas

assim em ti os sons da cidade
quando chego

domingo, 16 de janeiro de 2022

encomendação do corpo

para a tia Guilhé

os sinos da aldeia
hoje tocam por si

o fim é só o início
de uma História nova
em Deus

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

arquétipo

no princípio
era o mar
a crescer para dentro da terra
e os homens
a fugir
para algum lugar
mais dentro
de si

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

fluminis

faltam sempre palavras
para dizer o rio e as suas correntes

faltam sempre palavras
para dizer a cor das nuvens

faltam sempre palavras
para dizer o som da chuva

faltam sempre palavras
para explicar o vento na face

faltam sempre palavras

salgueiro, carvalhal, bombarral

no passeio solitário
pela aldeia esquecida
o que procuro ainda
é a noite

um lugar muito branco de olhos verdes

«Mas tu cresces abundante como um ano bom»
Daniel Faria

apesar da distância
às vezes tão grande
que ainda nos separa
há um ponto ao fundo
da minha boca
que, fechando os olhos,
sabe sempre a ti