blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quarta-feira, 29 de maio de 2019

Couve portuguesa e pão de milho de Rio Maior

as velhas da praça chamam-me «meu amor»
quando
«oh meu amor leve mais um quilo de cebolas
e meio deste feijão verde da minha horta»
e tu nunca me chamas «meu amor»
quando
«oh meu amor leva-me pela mão
a ver o sol fugir no horizonte»

sexta-feira, 24 de maio de 2019

candeeiros

o vento a levar
o pó do chão e o poema

o vento a querer levar
a possibilidade do amor
a que ainda me agarro

sulfato de cobre

a mulher carrega o pulverizador às costas
como se levasse os filhos

pulveriza as ervas com roundup
e deixa atrás de si um rasto de morte

(eu sou às vezes a erva seca
a que só falta largar o fósforo
para iniciar o incêndio do mundo)

quando leva os filhos às costas
a mulher pulveriza a cidade
com futuro e amor e vida a crescer

sábado, 18 de maio de 2019

a viagem solitária

os meus amigos
pedem às cegonhas
que me acompanhem
em vôo rápido
sobre a estrada

um novo nome
para a companhia

sussurro

em sonhos
dizias-me
que me amas

e eu em sonhos
construía uma casa para nós,
com as minhas próprias mãos,
de tijolo e pedra
e risos e amor

quarta-feira, 8 de maio de 2019

um resto do reino rural

os velhos no largo do coreto
escarravam a vida
desde o fundo das entranhas
e os putos passavam e riam,
não o rapaz raro
que se enojava com os escarros
e o que eles diziam da vida dos velhos,
com poucas alegrias
e cores a angústia e fim de outono,
mágoas regadas a copos de três
e calos nas mãos e torrões de terra
e ainda e sempre a sede,
uma sede insaciável de um amor por vir

terça-feira, 7 de maio de 2019

a vida moderna

saio do trabalho vou para casa sozinho
a cantar o disco novo do salvador
aqueço uma sopa de agriões
no microondas velho que foi da avó
como em frente ao telemóvel
como se os vídeos me dessem vida
adormeço outra vez no sofá
enquanto dá a primeira telenovela
depois do jornal das oito
e os vizinhos berram uns com os outros
acordo às onze com a tua mensagem de boa noite
ainda a tempo de responder
que não estou pronto para morrer de amor

domingo, 5 de maio de 2019

para rezar à noite

Ó Deus
não me deixes ser um poeta escuro
faz de mim
um poeta obscuro

sobre a ausência

um dia escreverei
sobre o amor
hoje a ausência
a noite escura
o vôo nocturno das corujas
a solidão a abrir pústulas
no canto esquerdo
do coração

sábado, 4 de maio de 2019

sobre o perdão

mais do que o corpo
era a carne que nos unia
naqueles tempos
e foi a ferida aberta
nas entranhas do espírito
que dá carne ao corpo
a fazer germinar a raíz
da alegre reconciliação

o sol da primavera

quando o sol chega
para mudar as cores
da areia e dos tons
com que o mar se veste
sou ainda a ilha longínqua
coberta de nevoeiro
e tu o barco a perder força
contra as ondas