blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

sicómoro apodrecido

que nunca cortem a esperança
como cortaram o sicómoro
que havia ao pé da minha casa

agora não me divirto a brincar
com as suas folhas pequenas
que caíam como helicópteros

tenho brincado muito pouco
é essa a conclusão
tenho muito para mudar

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

éter

detesto este cheiro dos hospitais que parece que é injectado na porcaria de todos os corredores, mesmo os que dão acesso a este bar estranho cheio de estetoscópios e batas brancas e azuis e com um micro-ondas a fazer de instalação artística e uma mulher com os lábios todos rebentados da herpes sem haver quem mostre interesse em tratá-la. a mulher do bar do hospital parece daquelas que levou uma injecção de simpatia exagerada, como é comum hoje em dia numa série de serviços, como livrarias e call-centers e lojas de roupa e outros trabalhos em que se ganha uma miséria mas ao primeiro erro se leva um chuto no cu e ala para casa. detesto que nos hospitais ainda haja tantas raparigas bonitas, nas escolas já não há. trabalho numa escola, parece que sim, dá bom dinheiro limpar escolas, disseram-me uma vez, mas tem de se sorrir muitas vezes às senhoras professoras. não gosto nada de andar sempre a caminhar para aqui, é o pai mal-disposto e marcar análises de rotina e ver os amigos operados a pernas e postos a andar num instante, aqui só dá despesa ao estado, vá para casa, e os amigos com uma espécie de avc a arriscarem-se a perder uma vista, não sei se arrancada numa operação cirúrgica feita com a observação de duas estagiárias bonitas como já não há nas escolas. diabo de sítio este que me põe a espirrar e com uma sensação de uma constipação qualquer ou gripe, no autocarro para o imaginário duas velhas discutiam se era ou não a mesma coisa, detesto este cheiro, os hospitais deviam cheirar a flor de laranjeira ou a outra coisa qualquer que nos lembrasse lugares saudáveis e não a isto, a este produto para lavar as mãos quando se tem gripes estranhas com nomes de números e letras.

domingo, 14 de dezembro de 2014

makas antigas

os meus olhos à distância
lêem-te ainda melhor
como se eu à distância
te conhecesse melhor
te sentisse mais
te tivesse mais perto
(este paradoxo que é
sempre o primeiro
dos lugares-comuns)

o meu coração à distância
tem muitas saudades tuas
quase como a água
constantemente
a lembrar-se da fonte
isso é outro lugar-comum
mas não deixa de ser verdade

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

sol espelhado na água

desmontar uma cana de pesca
é como desmontar uma casa.
as várias peças dispersas
por sacos e caixinhas
como as vidas dos que partem
e linhas e anzóis na boca
um gosto estranho que fica
a sangue e ao que vivemos ali

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

do nono livro das questões

que raio é um poeta?
o cão que rói restos de uma mesa
à sombra das árvores
ou o vento que fica
após a partida do metropolitano
um homem em busca
do que nunca encontra
e que perde todo o tempo possível
a calar-se
há pouco poema nos jogos de palavras
a poesia joga-se no que fica por dizer

um outro príncipe, maior

gostava do principezinho, livro de saint-exupéry, quando era algo mais que um manancial de frases de auto-ajuda para as redes sociais. gostava do principezinho quando as pessoas ainda eram capazes de perceber que um livro que começa por dizer que é um livro para crianças porque os adultos não são capazes de o entender é, na verdade, um livro para adultos (os livros para crianças não precisam de avisos à porta). gostava do principezinho quando ele era companheiro de caminho das amizades que se fazem e também das que se destroem, não quando é guia e farol que ilumina amizades a construir. gostava do principezinho quando ainda dava para entender que a queda do rapaz na areia do deserto, «como caem as árvores», é uma metáfora da morte e a morte não cabe em frases bonitas nem em coisas que se dediquem a quem se ama - «que caias como as árvores, um dia, e que morras na areia para doer menos», dirá ela ao seu amado. gostava do principezinho quando era só um livro sobre as coisas que permanecem e sobre as coisas que vão, quando era só a história de um rapaz não-histórico e do seu planeta e da sua busca, quando, enfim, era só um livro. não gosto de filmes sobre livros. não vou gostar deste filme. gosto de livros. não gosto do principezinho de que as pessoas gostam, gosto do meu principezinho às escondidas, lido nas páginas que a minha madrinha me deu pouco antes de cair como caem as árvores, mas não na areia.

ginja de óbidos, fáchavôr

no domingo vou
almoçar com ela
a santana
frango assado
às onze da manhã

café aquário

descobre entre cafés
bolos e água fresca
a beleza esquecida
dos rituais de acasalamento
das aves

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

never easy

os desamores dão sempre jeito
a quem escreve melancolia
dizia uma frase escondida
no fundo de um velho baú
de quem nunca teve estratégias
para encontrar paixões novas
e ignorava os conselhos dos amigos
e dos manuais de cavalheirismo
preferia sempre os caminhos solitários
que estão cheios de erros
e se descobrem inúteis
a não ser para encontrar a melancolia
e a angústia, sempre a angústia

sábado, 6 de dezembro de 2014

rusga na rua da amargura

é grande o aparato policial
na rua da amargura
grupo de operações especiais
carros a apitar
metralhadoras nas mãos dos polícias
e os velhos à porta da taberna
de mãos na parede enquanto são revistados
um velho que pensa na vergonha de estar assim
cu voltado para um polícia
e a revista que começa
com coisas perigosas a saltar dos bolsos
carteiras de couro ruças
navalhas canivetes corta-unhas
trocos para copos de vinho
boletins do euromilhões
uma cautela da lotaria
papéis suados
um lenço de papel
e a fotografia de uma mulher que já morreu
enrolada em papel de parede com florzinhas
que tem lá escrita a palavra amor
esse homem acompanhou os agentes à esquadra
porque o amor é a pior das drogas

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

quarta oração da noite

Às vezes luto com Deus,
às vezes danço.
Uns dias discuto com Deus,
noutros descanso.

Não me canso
de olhar para o Céu
e em Deus buscar respostas
ao que a vida deixar por dizer
e às vezes é tanto.
Um silêncio vale mais que mil palavras,
disso poucos se conseguem lembrar.

c. r. & f. no populus

uma verdade escondida:
os poetas pertencem ao povo
e à terra remexida por arados
mais do que às palavras,
tanto quanto as palavras
são da terra por lavrar.
os poetas são lavradores
de enxada na mão
e suor no rosto e no peito
a escavar fundo no silêncio
procurando tesouros escondidos.

as letras dos nomes: v.

teria saudades dos teus olhos grandes e do teu riso envergonhado se não me lembrasse deles tantas vezes, nos dias em que recordo as coisas que nos pagámos e a vez em que me deste a mão e me levaste a dançar. também não sinto falta das vezes, muitas, em que te fiz rir porque me rio muitas vezes eu a pensar nisso. devia ter saudades daquilo que não dissemos de nós, do íntimo de nós, um ao outro. podia ser que isso nos tivesse aberto caminhos que ainda agora estaríamos a percorrer. não abriu. não sei se o lamento. é que não sinto saudades tuas, ainda estás demasiado presente em mim.

as letras dos nomes: i.

um dia engoli um livro de auto-ajuda e dei por mim a cuspir frases parvas como aquela que diz que a gente só se desilude quando se deixa iludir. iludiste-me demasiado tempo, engano possível quando se tem olhos falantes e mãos pequeninas e um corpo de mulher que baralha a maioria dos homens. anos e anos passados a considerar amizades e eventualmente algo mais e a contar coisas que não falei a mais ninguém e a ouvir tretas alegadamente íntimas mas na realidade inventadas, vindas de um lugar qualquer de consolo e companhia e insegurança. chegou o dia em que me cansei de te defender do perigo do desconhecido que sempre são os outros, infelizmente o mesmo em que abracei a minha solidão. é por isso que hoje isto é solidões pelas esquinas, um calendário no placard do quarto antigo em que vou descontando, como todos os condenados, os dias que faltam para ter férias outra vez e finalmente reencontrar amigos que não me procuram só para lhes fazer companhia quando a saída é com pessoas que eles não sabem quem são. uma vez escrevi-te numa toalha de mesa que o que mais procuro é um sentido para a morte. ontem escrevi essa frase logo abaixo do meu calendário porque ainda é isso que me vai valendo.

as letras dos nomes: c.

talvez, ao longe, ainda gostes de mim. ao longe continuo a não conseguir gostar de ti, não dessa forma, mesmo nos dias em que me esforço por isso. deve ser falta de química, física, fisico-química, coisas que exigem batas e presenças prolongadas frente a bancadas forradas de azulejo branco e cuidados laboratoriais. sinto falta daquela sensação esquisita na barriga que dá quando o sol se põe ou quando nasce ou, apenas, quando se esconde e ao mesmo tempo se mostra por trás das nuvens junto à praia. acredito que saibas isso tanto quanto que não sei ler os teus sinais, nunca soube, por muito que faças por deixá-los bem visíveis pelas ruas. o amor, ou isso a que chamam amor, não se escolhe, por muito que o queiramos. há nisto tanto de cliché como de verdade. entretanto liga-nos uma certa compaixão que vai criando laços entre as pessoas sós.

obliteração

um poema para Miguel Araújo Jorge e António Zambujo

pelo amor é que vamos sempre
diz o lugar comum
e a rapariga sentada no eléctrico
de bilhete na mão a desfazer-se
com o poder que o suor nervoso
sempre transporta
é o pica que não chega
para fazer um furinho no papel
com um alicatezinho esquisito
ou uma caneta que não já não escreve
mas faz imenso jeito
quando a maquineta de furar
fica perdida num bolso
três bancos depois o pica passa
boa tarde um furo obrigado e boa viagem
e ela obrigada obrigada risos
e a cara a avermelhar-se
não é hoje ainda que te levo a passear
no jardim do bairro
não é hoje ainda que brinco
com a tua maquineta de fazer furos em papéis
e com as tuas mãos bonitas

sono (às vinte e três e cinquenta e nove)

muitas vezes quando me dá o sono não sei o que hei-de fazer. custa muito estar sozinho por estas esquinas e ligar-me ao mundo apenas por meio de pilhas de livros por ler, que separo meticulosamente das de livros lidos, e por miríades de aparelhos electrónicos que teimam em dar sinais de vida só com avisos de porcarias por pagar e de porcarias que posso pagar se aproveitar a maravilhosa promoção de não-sei-quantos por cento que inventaram especialmente a pensar em mim, caro consumidor. está um frio da gaita que me dá particularmente nas mãos quando as ponho fora do edredon, vindo da infância, à procura de qualquer coisa, talvez uma lanterna, que nunca encontro, e na cabeça que não consigo pôr por baixo dos lençóis porque isso me asfixia e me assusta. pensar que não estás cá outra vez, que na verdade, bem vistas as coisas, nunca quiseste estar aqui comigo, só faz crescer esse frio do catano, como se o frio me comesse por dentro em forma congelada e depois ultrademolhada, como o bacalhau. o frio ia entrando e congelando os olhos e a língua e a ponta dos dedos das mãos e o fígado e o estômago e os rins, por esta ordem exacta ou por outra ordem qualquer, e depois alguém sádico como tu, que não estás cá nem nunca quiseste estar, ia demolhar os meus órgãos raquíticos e comê-los cozidos e temperados com azeite e sal. uma vez li numa revista de actualidades e coisas sentimentais que o frio se mata com calor de aquecedores a óleo ou de fogueiras mas comigo isso nunca deu porque me chego sempre perto demais da fonte do calor, sempre gostei de chegar perto das fontes, e isso dá-me cores vermelhas nas pernas e nas bochechas e depois dizem-me que andei outra vez a beber de mais. hoje voltei a não beber nada que me faça mal segundo as normas morais das pessoas certas que dormem com este e aquele para subir no emprego e isso aumenta-me o frio. muitas vezes dá-me o sono e entretenho-me a escrever, é a minha forma de contar carneiros, nunca percebi suficientemente de pecuária para os distinguir das ovelhas só pela forma como saltam cercas nos sonhos. hoje foi desses dias, porque olhei para o lado e tu não estás, na verdade nunca quiseste estar aqui.