blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quarta-feira, 27 de novembro de 2019

vácuo

o grito de desespero
cantado no fundo de um poço
só aumenta a solidão

adveniat regnum Tuum

«venha o Teu reino», pedia,
mas o reino tarda,
o céu um lugar demasiado longe
e isto a teimar em ser outra coisa,
um rosário de penas,
uma chaga a arder por dentro

in the top of a tree

subia aos sicómoros
só para ver cair as folhas
em rodopios lentos
para lembrar que é assim a vida
um rodopio lento
rumo ao chão
em que o vento suporta
e a queda é leve
ou empurra e a queda é brusca

o segredo da arte de viver
é saber conter as quedas
e suportar as dores do mundo

uma voz ao longe

o que ensurdece
não é o silêncio
mas a ausência

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

os velhos não querem morrer

nestes tempos de distância,
das distâncias que criamos
entre a carne que nos constitui
porque estamos tão perto,
separados por só um ecrã,
por só um teclado,
por só uma escrita inteligente
às vezes tão burra,
por só mais uma promessa
feita de forma tão vã
porque saem baratas todas
as promessas por cumprir,
é normal que seja mais fácil
saber da morte daquela prima
que agora estava depositada num asilo
do que da vizinha do lado
que teve um avc no meio da rua
e veio o inem e a guarda republicana
e até o padre que já não a tempo
para o viático
e da família ninguém para lhe dar a mão,
ninguém para chorar e dizer adeus,
talvez à noite um adeus virtual
e as lágrimas de quem lê

comer o livro

um antigo mestre oriental
enganava os seus discípulos
quando lhes transmitia as suas verdades
e lhes dizia com ar sério
que as palavras salvam e mudam e libertam.

o discípulo dizia pão e mantinha a fome,
dizia árvore e não encontrava abrigo,
dizia abraço e continuava só,
dizia amor e nada,
dizia tantas vezes amor e nada

ciprestes velhos

como um gato que vive num cemitério
e passeia vagaroso entre as campas
assim a vida dos desiludidos
vagarosa demais para os milagres
de que a existência insiste em tecer-se
desatenta aos fogos fátuos
que são uma lembrança do medo
que invade até ao fundo
e ao mesmo tempo uma lembrança
do que arde dentro e depois de nós

domingo, 24 de novembro de 2019

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

empalavrar as moradas

o cão tranquilo roía um osso
aos pés do seu dono
enquanto esteve mastigava um livro,
o homem alimentava-se de palavras
porque nelas tantas vezes
o que a vida teima em não dar:
o amor verdadeiro,
o conforto do aconchego,
o abraço que acalma o medo,
a luz que guia e ilumina os caminhos,
as estradas que se abrem com destino,
a presença que serena a dor de estar só,
uma salvação possível que se pode construir
com as próprias mãos,
a fé de que ainda daremos as mãos
ao pôr do sol de um dia bom

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

like a dog from hell

esperar uma palavra,
só uma palavra,
como quem espera pela vida,
e a vida não vem,
teima em passar ao redor
como um animal a farejar a presa
ainda não enfraquecida

terça-feira, 19 de novembro de 2019

isn

percorro silencioso
a casa vazia

memórias gastas
de tristeza pelas paredes

dou passos sem nexo
em redor de mim

para constatar que não ficou nada
memória nenhuma do naufrágio

ninguém para lembrar
como acabou esta história

cinco graus

há o frio lá fora e o vento que corta
mas o que dói mais é o frio cá dentro,
o gelo que se instalou no coração
como celebração macabra das partidas,
do abandono, dos silêncios
com que decidimos construir isto
que já foi outra coisa,
isto já foi realmente outra coisa.
há por vezes uns fogachos de presença,
um aceno ao longe, uma memória
a despertar brevemente o degelo
mas que rapidamente passa
deixando uns pingos de água fria
e incómoda a escorrer pelo corpo,
um corpo que preferia não o ser mais,
porque o que não é não sofre

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Para explicar os rabiscos numa folha de papel almaço

Para Manuel António Pina

demasiado grande este esforço
de desenhar uma casa,
o desenho da casa como um parto
demasiado difícil,
as paredes exteriores da casa
como as dores da mulher
e as suas mãos comprimidas
contra os lençóis e as almofadas,
o pátio da casa como o pai,
demasiado medroso para assistir
ao nascimento,
à espera de boas notícias,
o quarto de casal como um coração
que já tem onde repousar,
o quarto das crianças como as almas juntas
a acreditar no futuro.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Para explicar o vento

ao contrário da nau catrineta
que tinha tanto que contar
não tenho nada a dizer,
semeaste-me milhões de silêncios,
hoje sou o seu dedicado pastor

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

pelecanus onocrotalus

segundo uma lenda antiga
o pelicano fustiga o peito
e dá-se de alimento aos seus filhos

eis-me aqui de coração na mão
para que te sacies

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Pessoa revisitado

o poeta só falava do ridículo
que está contido nas cartas de amor
porque nunca leu a série longuíssima
de cartas de desamor e de abandono
que venho acumulando
numa gaveta escura do quarto
que deixei lá atrás

Para explicar o desterro

tenho-me para aqui deixado
a transportar as saudades
dos teus lábios
e do sorriso que me lançaste
quando parti de ti

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Para explicar a espuma dos dias

saímos diariamente para o trabalho
e as rotinas mesmas dos dias
pagamos as contas da água luz e gás
levamos os filhos à escola
cumprimos os limites de velocidade
respeitamos a vez na fila das finanças
vamos ao centro de saúde ver de uma dor
dor forte no peito que não se explica
seguimos as indicações do chefe
ficamos até mais tarde na repartição
quando há papelada para expedir
mas há um lugar qualquer de adolescência
em que ainda deixámos os afectos

um lugarzinho de conforto
um lugarzinho de recusa
um lugarzinho de egoísmo
um lugarzinho de empatia nula
um lugarzinho de não querer saber dos outros
um lugarzinho de não agradecer
um lugarzinho de não responder
um lugarzinho de não educação
um lugarzinho de não ser ainda
um lugarzinho de não ser nunca

Para explicar os tempos idos

Fala-se hoje de amor
como antes se bebia água das fontes,
perde-se espaço para outras palavras,
amizade, alegria, esperança,
os sorrisos, uma gargalhada solta,
a mesa farta sem hora de fechar a refeição,
também o ódio, o desespero, a solidão,
as porradas da vida, a fuga,
a partida com rumo incerto,
as saudades de casa,
não sentir a casa como minha,
as saudades da casa que vou deixando,
os afectos de que vamos desistindo
todos os dias e nas noites de insónia,
cabe tanto de tudo isto quando dizemos amor
sem querer dizer amor,
já gastámos as palavras, dizia o poeta,
e pelos vistos mantemos o vício de as gastar,
talvez porque do mundo se pode fazer uma ficção,
esperar por príncipes, princesas,
a pessoa perfeita que não há,
e toda a ficção é amável,
mas das palavras não:
a palavra angústia continuará sempre
a transportar as dores do meu mundo,
é talvez isso que expressamos
ao querer falar de amor

domingo, 10 de novembro de 2019

de cordis

Pois, onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração.
Mt 6, 21

explicação breve
do jogo da vida:
não tenho tesouro
nem tenho coração

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

how to draw a perfect circle

a vida não são círculos perfeitos,
não sei fazer círculos perfeitos
à mão desarmada,
tenho mãos inúteis para as artes visuais,
o corpo em geral inútil para a arte de viver,
dentro do corpo um coração inútil
para merecer o dom do amor,
dentro da cabeça um cérebro inútil,
incapaz de ideias que salvem a humanidade,
que salvem ao menos uma pessoa,
entro na vida pedindo tantas licenças
e já derrotado por tudo isto
de não saber desenhar círculos perfeitos
e sentir que se soubesse
perdia sempre ao jogo do galo

errar ao espelho

como homens no cimo de árvores,
como uma gaivota longe do mar,
como os dias claros em que se vê a lua,
como o frio cortante sob o sol de inverno,
como o olhar de um mendigo à procura do pão,
como a ternura do amador diante da amada,
como a distância que separa os corações,
como um solo de guitarra num disco dos smiths,
como uma luz ao fundo a guiar os caminhos,
como um silêncio a acalmar a dor
ou um abraço a calar os medos,
como os erros bonitos que são o princípio de tudo isto

a voz das ondas

o mar batia contra as paredes da casa,
uma violência nova a cada onda,
lá dentro um homem a tentar dormir,
encolhia-se na cama a querer conter o medo,
não eram só as ondas que assustavam,
era a solidão a bater contra o coração
e o desejo de um silêncio absoluto
que calasse as ondas e o medo

terça-feira, 5 de novembro de 2019

página quinze do diário de bordo

hoje é um dia de sol,
para nos distrair da viagem
feita de dias iguais

os lugares vazios

o desejo era jogar o coração
como uma ficha de póquer,
mas onde o repousar?

há por aí tantos baldios,
lugares à espera de nós,
erva a crescer livre
e uma tramangueira incómoda
no meio da fazenda abandonada,
com que olhos ver o terreno limpo,
com que mãos erguer a casa
que chamaremos a nossa casa,
onde poderemos reclinar a cabeça?

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

o portão verde da escola

todas as segundas-feiras
há uma aluna que me abraça
antes e depois das aulas

dizem que comandada
por um sussurro teu
para me veres sem jeito
como sou sempre

sobre os oitenta quilómetros deixados a oeste

deixei o coração na minha casa
tenho saudades da casa
e saudades do coração

domingo, 3 de novembro de 2019

Para explicar os reinícios

há sempre uma angústia contida
no acto de recomeçar uma tarefa,
é mais fácil a segurança de adiar,
abandonar a tarefa no seu tempo,
é mais fácil desistir dos encontros,
convencermo-nos que é bom assim,
que interessa é gostar de nós
cada um de si, bem entendido,
que os outros vêm com um defeito qualquer,
que são o inferno o mal a dor
e nós não, nós a virtude o bem
a alegria de uma noite descansada
a ver televisão sem companhia,
no fim de tudo a solidão dói na mesma
e contradiz a autoajuda do mundo

Para explicar o encontro em Jericó

Zaqueu no sicómoro é o fruto da nova estação
Santo Ambrósio

escondi-me no cimo da árvore
e no meio da turba
o teu olhar de amor
voltou-se para mim

chamaste pelo meu nome
e estremeci por dentro
porque as vidas não ficam iguais
quando o amor nos olha

vendi tudo a casa os bens
as seguranças que acumulei
e segui-Te a Ti
e ao amor que me tens

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Para explicar a glória dos Santos

Raquel chorava os seus filhos,
tu não precisas de os chorar,
sabes que eles estão lá
onde as túnicas são brancas
porque lavadas no sangue do Cordeiro
e onde tudo é Amor,
e por isso os teus filhos estão aqui,
contigo, em ti.