blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Habemus Papam, de Moretti


Depois de um longo período sem ir ao cinema (confesso que o cinema "comercial" não me agrada muito, e falta-me o tempo [e o "tempo"] para ir à procura de outros filmes), fui esta semana ver Habemus Papam, de Nanni Moretti. E foi uma experiência que valeu a pena. Se é verdade que, sendo um filme que retrata os problemas de um Papa recém-eleito, se esquece do dado da fé (como reconhece a Rádio Vaticano), não deixa de ser verdade que é uma bela reflexão sobre a condição humana. O filme apresenta uma boa meditação sobre o drama do Homem perante as grandes decisões e as grandes responsabilidades, refere-se, com o suficiente grau de humor, às insuficiências da psicanálise (o Papa em tratamento acaba por agravar os seus problemas descobrindo que também sofrerá de deficit parental), consegue, falando da Igreja, não se assumir contra esta (ainda que também não se assuma a favor). Além disso, está bem filmado, tem muito bons actores e nota-se que houve cuidados sérios na investigação preparatória necessária à realização de um filme destes (o que vai rareando nos dias de hoje em todos os tipos de arte). Se assumo que não será um dos filmes da minha vida (mesmo entre os filmes que tratam de temas próximos da fé, e considerando apenas os relativamente mais recentes, não está ao nível, por exemplo, de Maria Madalena, do também italiano Abel Ferrara), acho que foi um filme importante para a minha vida. Por isso recomendo a todos que o vão ver. Se forem ao cinema Alvalade, como eu, há um bónus, que é verem o filme numa sala de cinema bonita e com boas condições, onde estará provavelmente pouca gente, o que significa menos barulho e desrespeito pelos outros, menos gente a comer pipocas de boca aberta, a atender telemóveis e a ver mensagens a toda a hora. Deixo ainda o link para o site oficial do filme, que pode sempre ajudar.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

o lar de idosos

dei por mim a juntar duas experiências. a de ter lido a máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe, onde este diz que escreve o livro para criar uma terceira idade para si e para o pai, «malucos os dois», e a de ter trabalhado quinze dias na casa de saúde do telhal, precisamente na unidade de psicogeriatria. dei por mim a juntar estas experiências pensando como seria feliz a minha velhice se fosse vivida num lar de idosos com todos os meus amigos e amigas (roubando as palavras a valter hugo mãe, malucos nós todos). ia ser uma constante festa. todos a gozar com a nossa cada vez mais acentuada senilidade, com a baba branca nos cantos da boca, com a incontinência, com as fraldas e os babetes. ia de certeza haver livros, que já só líamos com auxílio de uma lupa. a vantagem é que iam ser só livros bons, dos grandes poetas, dos grandes teólogos e dos grandes romancistas, porque nessa fase da vida já não vão interessar livros de auto-ajuda nem nos vão chegar coisas daquelas novas "espiritualidades" (o que se faz para não referir logo o nome de paulo coelho...). ia haver histórias inventadas sobre donos de cafés que se vestem de mulher no carnaval por causa de uma sexualidade mal resolvida, sobre merceeiros jovens que vendem pacotes de tide, sobre nomes que desaparecem quando camionetas da carreira caem por uma ribanceira abaixo numa viagem às amendoeiras em flor, numa excursão daquelas organizadas por empresas que querem vender colchões e trens de cozinha. ia haver demasiado riso, que vincaria bem quem já ia mais adiantado na incontinência urinária. ia haver demasiada feijoada, cozido à portuguesa, sopa da pedra e coisas que fazem mal. ia haver demasiado vinho e muito pouca água. mas também ia haver bastante lamechice, enquanto se ouviam programas de televisão em altos berros, porque ia haver sempre quem ainda quisesse galar as apresentadoras dos programas da manhã. ia haver lamechice, porque afinal ia sempre haver amor - agapé, que o português é pobre e só tem uma palavra para dizer aquilo que os gregos, e bem, diziam com três. ia haver olhos brilhantes. os meus, os teus e os dos outros todos que lá estivessem.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

criadores de mundos

um elogio da criatividade

em apenas vinte e cinco anos, dá para se ser muita coisa. dá para ser o que se é, na verdade, dá para ser o que se foi, e dá para se ser o que as pessoas inventam. a imaginação humana tem um poder admirável, fascinante. 
em tão poucos anos de vida, já tive uma data de vidas. já fui divorciado e com dois filhos, enquanto vivia num apartamento recatado ao pé do mercado. já fui homossexual. já fui cigano. já fui anti-social e fiquei a ler livros em vez de falar com as pessoas que estavam comigo e não lhes dei satisfações porque não gostava delas. já tive um caso com uma pessoa que é, também ela por obra da imaginação, quem tem mais rodagem lá no emprego. até já fui filho de um padre, ao mesmo tempo que era irmão da minha mãe e de um outro amigo. o meu pai já foi meu avô. e, sei lá, pode haver ainda mais coisas.
gosto muito que as pessoas se entretenham a criar mundos. criam problemas, às vezes, porque mexem com a reputação - e a verdade, que é muito mais importante - das pessoas, mas também nos dão razões para rir. e isso vale tudo. isso pode fazer de um homem simples um grande coleccionador de momentos. «aqui estou eu, feliz coleccionador de momentos. a minha vida tem mil vidas lá dentro, não só a minha e a dos que deixo lá entrar, mas também todas essas que queriam que eu vivesse e não vivo. e que engraçado que é!»

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Deus chama onde quer

Hoje, e a propósito de mais esta confusão com as nomeações feitas pelo governo, dei por mim a pensar que um presbitério [leia-se, o conjunto de padres e não o espaço físico a eles destinado nas igrejas] é uma representação fiel da sociedade. Deus chama onde quer. Tanto pode ser padre o filho do pescador como o filho do doutor, tanto o rico que vai à procura de prestígio como o pobre que vai à procura de ter pão, tanto o que vai servir ao povo como o que se vai servir a si. A diferença em relação aos que são nomeados pelo governo é que num presbitério - como na sociedade - há uns e outros. Há os infiéis, há os corruptos, há os preguiçosos, há esses todos que o leitor pode estar agora a pensar, mas há também os que ainda sabem que a palavra ministério quer dizer serviço - nas instituições estatais há muito se esqueceu esse étimo...
Deus chama onde quer, quem quer e para o que quer. Por isso, como dizia, há padres (como de resto, há cristãos - só nascem padres de onde há cristãos, mesmo que às vezes as pessoas se esqueçam disso) de todas as origens, com diversos graus de inteligência, cultura, sabedoria, proximidade em relação às pessoas, sensibilidade pastoral, fidelidade, etc. Por isso há alguns que percebem que são chamados a outras missões na Igreja. Por isso há os que não são chamados, pura e simplesmente, a essa vocação.
Era bom que os governos, ao nomear, pusessem os olhos nisto: nem todos são chamados a funções públicas; podem chamar pessoas de diferentes níveis e bases sociológicas; podem até chamar na mesma os corruptos e os preguiçosos e esses todos (afinal, se eles andam há dois mil anos ligados à Igreja e ela ainda não acabou, mais facilmente não acabará um Estado), mas não se esqueçam, por favor, de chamar alguns que ainda queiram servir os outros. Não se esqueçam do que eu disse: ministério quer dizer serviço!

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

afinal, ainda há lugar para o amor

Afinal, continua a haver hoje lugar para o amor. Haverá sempre lugar para o amor. Se ressoa em mim a pergunta de Ruy Belo «Para quê a doçura no olhar/ de uma mulher certos dias?», não deixa de estar presente, também, este texto maravilhoso, que aqui partilho no original, na esperança de que todos os leitores que não o entendam possam depois procurar, por si, uma boa tradução (que as há, e até online).

Ἐὰν ταῖς γλώσσαις τῶν ἀνθρώπων λαλῶ καὶ τῶν ἀγγέλων, ἀγάπην δὲ μὴ ἔχω, γέγονα χαλκὸς ἠχῶν ἢ κύμβαλον ἀλαλάζον. καὶ ἐὰν ἔχω προφητείαν καὶ εἰδῶ τὰ μυστήρια πάντα καὶ πᾶσαν τὴν γνῶσιν καὶ ἐὰν ἔχω πᾶσαν τὴν πίστιν ὥστε ὄρη μεθιστάναι, ἀγάπην δὲ μὴ ἔχω, οὐθέν εἰμι. κἂν ψωμίσω πάντα τὰ ὑπάρχοντά μου καὶ ἐὰν παραδῶ τὸ σῶμά μου ἵνα καυχήσωμαι, ἀγάπην δὲ μὴ ἔχω, οὐδὲν ὠφελοῦμαι. Ἡ ἀγάπη μακροθυμεῖ, χρηστεύεται ἡ ἀγάπη, οὐ ζηλοῖ, [ἡ ἀγάπη] οὐ περπερεύεται, οὐ φυσιοῦται, οὐκ ἀσχημονεῖ, οὐ ζητεῖ τὰ ἑαυτῆς, οὐ παροξύνεται, οὐ λογίζεται τὸ κακόν, οὐ χαίρει ἐπὶ τῇ ἀδικίᾳ, συγχαίρει δὲ τῇ ἀληθείᾳ· πάντα στέγει, πάντα πιστεύει, πάντα ἐλπίζει, πάντα ὑπομένει. Ἡ ἀγάπη οὐδέποτε πίπτει· εἴτε δὲ προφητεῖαι, καταργηθήσονται· εἴτε γλῶσσαι, παύσονται· εἴτε γνῶσις, καταργηθήσεται. ἐκ μέρους γὰρ γινώσκομεν καὶ ἐκ μέρους προφητεύομεν· ὅταν δὲ ἔλθῃ τὸ τέλειον, τὸ ἐκ μέρους καταργηθήσεται. ὅτε ἤμην νήπιος, ἐλάλουν ὡς νήπιος, ἐφρόνουν ὡς νήπιος, ἐλογιζόμην ὡς νήπιος· ὅτε γέγονα ἀνήρ, κατήργηκα τὰ τοῦ νηπίου. βλέπομεν γὰρ ἄρτι δι᾽ ἐσόπτρου ἐν αἰνίγματι, τότε δὲ πρόσωπον πρὸς πρόσωπον· ἄρτι γινώσκω ἐκ μέρους, τότε δὲ ἐπιγνώσομαι καθὼς καὶ ἐπεγνώσθην. Νυνὶ δὲ μένει πίστις, ἐλπίς, ἀγάπη, τὰ τρία ταῦτα· μείζων δὲ τούτων ἡ ἀγάπη.

1 Cor 13

afinal, ainda há lugar para a fé

Ainda há lugar, hoje, para as virtudes teologais, mesmo que de forma diferente de outros tempos. Vivemos um período em que o Cristianismo, e o catolicismo em particular, estão em reconstrução. E ainda bem que é assim. Só assim se sobrevive dois mil anos. Só assim se continua a seguir Jesus, se soubermos sempre nascer de novo (Jo 3, 3-5). A fé permanece.

Nós os vencidos do catolicismo
que não sabemos já donde a luz mana
haurimos o perdido misticismo
nos acordes dos carmina burana

Nós é que perdemos na luta da fé
não é que no mais fundo não creiamos
mas não lutamos já firmes e a pé
nem nada impomos do que duvidamos

Já nenhum garizim nos chega agora
depois de ouvir como a samaritana
que em espírito e verdade é que se adora
Deixem-me ouvir os carmina burana

Nesta vida é que nós acreditamos
e no homem que dizem que criaste
se temos o que temos o jogamos
«Meu deus meu deus porque me abandonaste?»


Ruy Belo, País Possível, Lisboa, Ed. Presença 1998, p. 38.

afinal, ainda há lugar para a esperança

Este post quer-se rápido, porque o escrevo apenas para integrar uma série de posts sobre coisas para as quais ainda tem de haver lugar hoje. Acredito que ainda pode haver lugar para a esperança, tem de haver esperança, porque continua a haver um Cristo que nos salva. Continua a haver textos que nos falam dessa esperança, como este que deixo a seguir.

DO BAPTISMO DE ANTON TCHEKHOV

há esta flor roxa no meio da seara infértil
- uma lembrança de quando desmatelámos
o mundo nessa tarde em que saímos de casa
para apanhar rosmaninho.

Pedro Tiago, O comportamento das paisagens, Lisboa, Artefacto 2011, p. 62.

afinal, ainda há lugar para a surpresa

Num tempo como o actual, propício à depressão, ainda há lugar para a surpresa. Gostei muito deste texto de Luís Filipe Parrado, que está, originalmente, no site do SNPC.


Tudo o que o meu pai me disse quando, aos 15 anos, declarei em família que iria começar a escrever poesia

«Antes
de te sentares
à mesa
lava bem
essas mãos.»

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

última escolha (hipotética)

- Caro André João, de que morte gostaria de padecer?
- Se não for muito incómodo, que eu possa morrer a rir.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

dois poemas que gostava de ter escrito

IDOLA FORI

Eu sei diversas coisas
saber é afinal a minha única ocupação
Sei pouco de manhãs
mas talvez possa dizer de mim que amei o mar
e cada árvore que me viu passar
e insistir na vida como uma canção em voga
Quem mais que eu
quem foi esqueceu?
estamos mal feitos pronto
Para quê a doçura no olhar
de uma mulher certos dias?
O morno calor do sol rasante pelas tardes
de setembro na senhora da guia
senti-lo em abril numa sala voltada ao poente
de súbito sabendo de todos os papéis
ou outra eternidade que não essa
Talvez ouvir egmont sentindo-me importante de repente
ou então conversar sobre o poeta à beira de água
chegar a mangualde ao pôr do sol
ou a duas igrejas na semana santa
ouvir os sinos na matriz vizinha
cheirar madeira nova nas gavetas
fechar a porta sobre todos os cuidados
cantar a triunfante juventude
Não mais andar perdido de ano em ano
Não mais a morte questão para ociosos
à tarde no café dos reformados
Oh quem me dera ser católico
ou pelo menos morar alguma vez
em lisboa ou nos arredores de lisboa
Não há remédio nenhum
esqueci-me de tanta coisa
Sei que isto não é grande coisa
mas nenhuma outra coisa me é dada
O que é preciso é que não doa muito
Depois que me escondam na terra como uma vergonha.

CORPO DE DEUS


A minha unha tem crescido tanto
e entretanto vim morrendo pouco a pouco
temi amei preocupei-me com problemas
fui feliz vivi a vida emocionei-me
Venceram-se diversas prestações
A minha poesia é por vezes mínima e mesquinha
Aqui estou eu perdido na contemplação da unha
a unha pequenina a que regresso sempre
Não canto armas nem barões nem mesmo este mar
que desdobradamente aqui vem rebentar
em ondas de água azul em algas e pedrinhas
Afinal tão instrutivo é
perder-me na contemplação do pé
descalço aqui à doce beira-mar
como aprofundar os mistérios deste dia
em que cristo instituiu a eucaristia
E eu comecei o dia à procura de livros
preocupado com contas a pagar
sem bem saber de mim nem do que é meu
(Falo muito de mim e de muitas maneiras
algumas delas transpostas fantásticas fingidas
mas quem há-de morrer e quem é que nasceu
mais presente a mim próprio do que eu?)
Havia porventura de me recordar 
da ceia do senhor do pão do vinho?
O meu pão é todo este dia
e vou buscá-lo à contemplação da unha:
crescem mais as dos pés do que as das mãos
serei eu que as corto menos vezes?
será e terá sido sempre assim com toda a gente?
Cristo terá alguma vez sabido isso?
Doer-lhe-ia o pé ao instituir a eucaristia?
Mas o meu pão é todo este dia
e doem-me muito mais os meus dois pés
do que o corpo de cristo embora meu amigo
Sermões e procissões interpretações doutrinais
talvez mundo perdido para nunca mais
aqui junto do mar junto dos meus
mesmo ao falar de deus eu me esqueço de deus

Ambos os poemas são de RUY BELO, e podem ser encontrados no livro País Possível, Lisboa, Ed. Presença, 1998, p. 44-45 e 47-48.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Eres vieja

Hoje pus-me a fazer contas.
Afinal,
a verdade é que vivi mais anos
em escudos do que em euros

também contei os meus cabelos, um a um,
e vi que tenho mais cabelos brancos do que tu
mesmo que não pintasses o cabelo.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Os filhos de Raquel

 כֹּה אָמַר יְהוָה קֹול בְּרָמָה נִשְׁמָע נְהִי בְּכִי תַמְרוְּרִים רָחֵל מְבַכָּה עַל־בָּנֶיהָ מֵאֲנָה לְהִנָּחֵם עַל־בָּנֶיהָ כִּי אֵינֶנּוְּ
«Ouvem-se, em Ramá, lamentações
e amargos gemidos.
É Raquel que chora, inconsolável,
os seus filhos que já não existem.»
Jr 31, 15

Disseste-me que pessoas como eu
já não existem.

Então
sou eu mais um dos filhos que Raquel chora.
E sinto-me bem com isso.

o confidente

era de noite e o homem que falava com os olhos foi interrompido por uma pessoa que queria falar com ele. pessoalmente. de resto, exigia-o. o homem que falava com os olhos pensou que não havia de ser nada de especial e que o assunto de conversa talvez se despachasse via telemóvel ou via qualquer uma daquelas formas novas que há de as pessoas conversarem sem se encontrarem cara a cara e que são todas modernas e muito engraçadas. a pessoa insistiu que tinha mesmo de ser pessoalmente. de qualquer maneira, o homem que falava com os olhos pensou que, desajeitado e inútil como é a lidar com coisas sérias e importantes como os sentimentos e o amor em particular, não fazia grande sentido ser alvo de tal convocatória. o homem que falava com os olhos, ainda assim, sabia que não era o centro do mundo, sempre gostou de pensar primeiro nos outros e depois nele. percebeu, aí, que não podia dizer que não. saiu de casa apressado (e já depois da hora) deixando outra pessoa pendurada: apesar da sensação de um vazio de sentido para aquele acontecimento, o encontro com aquela pessoa era, então, a única coisa que interessava. o homem que falava com os olhos quis jogar a sua vida toda ali, como se algum dos dois que se iam encontrar estivesse para morrer, como se fosse o último encontro, o único encontro. chegou finalmente ao pé do seu amigo, apreensivo quanto ao tema da conversa. era, afinal, um acontecimento feliz, e o homem que falava com os olhos alegrou-se porque o seu amigo queria partilhar a sua felicidade com ele. o homem que falava com os olhos percebeu que uma notícia daquele tipo não podia mesmo ser dada por telefone nem pela internet. tinha de ser cara a cara. até porque mesmo nas notícias felizes há dúvidas, há pensamentos - as pessoas pensam, e a maior parte das vezes pensam demais. o amigo queria saber o que o homem que falava com os olhos achava quer da sua felicidade quer dos seus pensamentos. o homem que falava com os olhos disse que estava também feliz pelo seu amigo e acrescentou mais uns pensamentos. depois falaram também sobre o próprio homem que falava com os olhos, que ficou todo envergonhado a dizer umas coisas sobre a sua vida e ficou a pensar que faz umas coisas de quem é parvo todos os dias. despediram-se os dois felizes e contentes e o homem que falava com os olhos voltou para casa sozinho. pelo caminho, pensava para si mesmo «sou parvo todos os dias», mas ao mesmo tempo ia estupidamente feliz [onde é que ele terá ouvido isto?] porque foi importante para alguém, ainda por cima para alguém que se interessou por ele. a vida do homem que falava com os olhos fazia agora mais sentido.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O guarda palhaço

Na carreira sete da vimeca, no banco à minha frente, um senhor ia a ler essa pérola da literatura que é O Último Segredo, de José Rodrigues dos Santos. Aconteceu-me espreitar para as páginas abertas e chamou-me a atenção, entre diálogos cheios de clichés, escritos para chamar burro ao leitor, num registo quase cómico, um diálogo em que o personagem principal do livro chama palhaços aos guardas suíços. Note-se que não se tratava propriamente de uma ofensa pessoal à Guarda Suíça, antes uma comparação entre as vestes dos palhaços e os fatos garridos dos guardas.
Se pensam que o que me chamou a atenção foi a novidade ou a estranheza de tal afirmação, desenganem-se. Muito pelo contrário. O que me despertou curiosidade nessa sentença foi o facto de me revelar o que já sabia sobre o livro, que é uma repetição de ideias feitas e que houve uma enorme falta de rigor científico na sua preparação (isto, admitindo que no romance se reflecte acerca da cultura cristã, e, como não me canso de repetir, que a teologia ainda tem um lugar na «casa da ciência»).
Se para uma pessoa comum a comparação entre guardas suíços e palhaços [a mesma comparação podia ser feita, mantendo os palhaços, com Bispos, padres ou diáconos durante uma celebração litúrgica] pode surgir ainda como uma novidade ou uma espécie de revelação, para um teólogo, ou um simples aprendiz de teologia, como eu, não há nela nada de novo.
Lembro-me de, numa das aulas do curso, um professor falar na afirmação de um teólogo francês que dizia que, hoje em dia, um Bispo numa celebração litúrgica, com a sua mitra, o seu báculo, o seu anel e os restantes paramentos, surge aos olhos das pessoas como um chefe índio da Amazónia.
Basicamente, este facto tem a ver, mais do que com a distância do comum das pessoas em relação à Igreja e aos seus ritos, com a perda da capacidade de olhar para o valor simbólico das coisas. E a incapacidade de reconhecer esse valor simbólico tem a ver com uma tendência, revelada sobretudo na sociedade ocidental, para esquecer a História. Às vezes dá ideia de que o progresso tecnológico e as facilidades que ele veio trazer ao nosso dia-a-dia fazem com que possamos ser pessoas sem passado, que se interessam apenas com o momento actual. Temos tudo quanto precisamos, por isso não interessa muito lembrarmo-nos do que fomos, nem tão pouco pensar naquilo em que nos podemos tornar. É por isto que surgem, sempre que a crise económica se agudiza, portugueses a implorar por uma ditadura, esquecendo-se que não saímos de uma há tanto tempo, e que esses foram tempos de fome e sem liberdade de pensamento e de expressão. É por isso que chamamos palhaços aos guardas suíços, ignorando que eles se vestem assim porque as suas roupas foram desenhadas por Miguel Ângelo. É por isso que comparamos os Bispos aos chefes índios, porque não percebemos que os símbolos que transportam pretendem remeter para o que eles são e fazem.
Esta ignorância bacoca faz-me ver como é preciso, de facto, voltar a trazer a teologia para o espaço público. É preciso mostrar que a teologia é algo encarnado (não se tivesse Deus feito Homem), fundado na História e implicado nela. É preciso mostrar que a teologia quer ser, ainda, para o mundo, uma proposta de sentido com sentido.

Palavras de outro tempo

vedra mocidade
NELSON LUÍS RIBEIRO

"«cárcere» é um vedro vocábulo"
Felizmente,
hoje já ninguém escreve assim

embora continuem a haver cárceres
e velhos.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O valor do segredo

Hoje, pela primeira vez num ano e tal a dar aulas, pelo menos de forma mais séria e formal, uma aluna veio-me contar um segredo. Dispus-me a ouvir e comprometi-me a guardá-lo. A história em si não tinha nada de extraordinário, pelo menos para quem trabalha na educação e está atento aos fenómenos sociológicos actuais. O gesto, para mim, com maior valor foi o acto em si de me pedirem para escutar um segredo e guardá-lo. Não por que me ache uma pessoa que não é de confiança e que não sabe guardar segredos (até porque até acho que é uma das poucas qualidades que tenho), mas porque acho que hoje em dia é um gesto que se tornou incomum.
Hoje já não se guardam segredos. Temos programas de televisão onde se revelam - e se expõem - segredos, temos câmaras de videovigilância espalhadas por tudo quanto é sítio, comprometemo-nos a guardar um ou outro segredo mas depois partilhamos com alguém que é da nossa confiança, que partilha com outro alguém que é da sua confiança, e de repente todos sabem tudo na mesma.
Um último bastião dos segredos é a confissão dos pecados (talvez por isso cada vez menos gente se confesse). Para mim, essa é uma das coisas mais belas da Igreja: poder contar a outra pessoa tudo o que fiz mal feito (e como deve ser apetecível para quem ouve falar sobre os pecados pessoalizando-os!) e saber que isso é guardado, é mesmo secreto, se torna um segredo esquecido (e há lá melhor forma de guardar um segredo do que esquecer o seu conteúdo?). A chave para isto, na minha óptica, está no facto de a Igreja ser lugar e comunidade de amor. Quem ama guarda segredos.
Só quando se gosta verdadeiramente das pessoas e se sentem os seus problemas como nossos é que aprendemos a guardar mesmo segredos. Acho que a mudança positiva para que se possa voltar a guardar segredos passa por aí. Amar, e amar cada vez mais. Perdoar, e perdoar cada vez mais. Ouvir mais do que falar. Escutar. Simplesmente estar com o outro como se fosse comigo mesmo. Olhar. Ver.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Ver não é o espanto de as coisas serem?

José Tolentino Mendonça, no seu poema Dos olhos de Rubliev, pergunta-nos se «ver não é habitar/ o espanto de as coisas serem?». De facto, o acto de ver é uma coisa fascinante, tanto no que mostra como no que não mostra, tanto no que os olhos vêem como naquilo que se vê e está para além deles. Tudo isto para deixar aqui um link para esta crónica, a meu ver, fantástica, de Rubem Alves, na Folha de São Paulo. É um texto já antigo mas que apenas descobri agora. Vale a pena lê-lo. Vale a pena vê-lo. Num tempo que é ocupado quase todo com preocupações de economia e finanças, vale a pena pensar nestas coisas: há sempre lugar para o encanto, para a epifania da Beleza, e isso não haverá nunca dinheiro que compre.

domingo, 1 de janeiro de 2012

dois mil e doze

como todos os anos, também este entra sem pedir licença a ninguém. muitos dizem que é o último, por causa do calendário maia. eu, que já passei por alguns fins do mundo, não acredito que seja para já. muitos dizem que vai ser péssimo, porque os senhores da economia querem cortar-nos cada vez mais. eu não acredito, porque acho que a qualidade de um ano não pode depender só de dinheiro e dessas coisas. a qualidade de um ano tem de depender das pessoas, do seu desejo de felicidade. a qualidade de um ano deve ter, na verdade, a ver com o empenho que pomos nas relações com as pessoas, no quanto nos damos. se nos dermos muito em dois mil e doze, será um ano bom, por muito que nos tirem muito dinheiro e coisas.
basicamente, escrevi isto porque acho que este momento que sempre lembro como de alegria, de bater panelas, tocar buzinas dos barcos e queimar contentores do lixo, não precisa de tornar-se depressivo. há sempre lugar para uma mensagem de esperança. para uma primeira mensagem de esperança.