blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

as canas

quantas casas cabem
no centro do teu coração?
e quantas flores?
onde puseres o teu amor
o teu maior tesouro
aí estará o teu coração
vai vende tudo
e compra o tesouro escondido

rir

rir é o melhor remédio
mesmo quando é isso que nos denuncia
e as pessoas correm à varanda do primeiro andar
com saudades de nós

rir é o melhor remédio
na conversa animada em redor da mesa
e dos sofás da sala
e dos copos nunca vazios

rir é o melhor remédio
porque não resta muito mais

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

a escuta

precisamos de ter o tempo dos velhos
para aprender a ler notícias de jornal
mata-se uma pessoa como dantes
se matava uma galinha
sem a sabedoria que a idade dá
nunca hás-de chegar ao poema

café central

na praça com calçada nova
testam barracas novas
com alumínio que faz doer os olhos
e toldos de todas as cores

ou é do estado da minha alma
ou isto pede uma fotografia
a preto e branco.

os enfermos

ligo o televisor
e falam de ébola
e gripes de todas as letras
e males de todas as cores
que nos comem por dentro invisíveis
desliguei a televisão

o maior mal do mundo
é a falta de amor
e para isso não há solução

terça-feira, 28 de outubro de 2014

naperon

o naperon sobre a televisão
antiga da sala velha
em que já ninguém entra
lembra-te um passado
a que não queres voltar
e um futuro que não augura
nada de bom
tempos virão
em que a tua vida se cobrirá de pó
e vais ficar amarelo
como o pano rendado
que cobre o televisor

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

trying to sleep

ela queria continuar a falar
sobre o que vai dentro de um coração
e ele interrompia desinteressado
«era bom que dormíssemos sobre o assunto»
enquanto ela insistia que as coisas que sentimos
devem ser esclarecidas e postas cá para fora
«os homens não querem saber disso
que o amor constrói-se mais do que se diz»
foi o que sempre lhe disseram os velhos
que aguentavam juntos períodos longos
que hoje achamos quase eternos
«era bom que dormíssemos»
repetia ele quase para si
«amanhã teremos mais forças
para nos construirmos como um»

a luz que nunca se apaga

haverá esperança sempre
e ainda outra vez
enquanto souberes com o coração
que o Homem se ergueu do túmulo
na manhã do terceiro dia
os milagres acontecem
quando já não os esperas
esperar contra a esperança
é o truque que a vida te ensina
aprende a ver ao fundo
uma luz que teima em não se apagar
às vezes ténue às vezes ofuscante
aprende a vê-la com o teu olhar interior

tokio

preocupa-te mais com a cor da lua
e o brilho das estrelas
do que com a casa que cai
e era onde habitavas

um homem sem casa
vale mais do que outro
que nunca se deixa espantar

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

sobre a perfeição

eu sou
a incoerência
e abraço-me
todos os dias

«vamos morrer inacabados»
dizia uma frase
gravada numa parede
de uma cidade qualquer

quis vender tudo
e comprar aquela casa

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

tamanho querer

na tua vida tudo foi feito
sem crer
a mudança que ainda está para vir
pode estar toda
no verbo acreditar

queres crer?

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

alguidar

se há cheiro que ainda me traz
lágrimas pela infância que não volta
é o da massa a fermentar
antes de a avó levar o pão ao forno
e de o guardar numa arca forrada
a papel de parede com cornucópias
crescer não nos devia levar essas coisas
fornos antigos e alguidares de barro

sarau

inclui citação de Ap 7, 13b-17

a cidade estava debaixo de bombas
e num dos bunkers fazia-se uma noite de poesia.
um mais velho cofiava a barba
e lia versos de rimbaud
e hafez ibrahim
enquanto os mais novos se encolhiam
e tapavam os ouvidos com as mãos.
o zumbido mortal das bombas
sobrepunha-se à voz cantada do velho.
de que serve a poesia num mundo que cai?
perguntava o miúdo de cinco anos.
para quê a arte com fome e sem pão e sem vida?
para quê o poema sob o zumbir das bombas?
para quê as perguntas se não vem um Deus que nos salve?
para quê isto tudo se teimamos em nos destruir?
o mais velho seguia imune às perguntas
e entrava pela obra de um tal de joão:
«"Estes, que estão vestidos de túnicas brancas,
quem são e donde vieram?"
Eu respondi-lhe: "Meu senhor, tu é que sabes."
Ele disse-me: "Estes são os que vêm da grande tribulação;
lavaram as suas túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro.
Por isso, estão diante do trono de Deus
e servem-no, noite e dia, no seu santuário,
e o que está sentado no trono abrigá-los-á na sua tenda.
Nunca mais passarão fome nem sede;
nem o sol nem o calor ardente cairão sobre eles,
porque o Cordeiro que está no meio do trono
os apascentará e conduzirá às fontes de água viva;
e Deus enxugará todas as lágrimas dos seus olhos."»

terça-feira, 21 de outubro de 2014

palavrão

com quantas asneiras se escreve
a merda da tua vida?
um apurado estudo
de uma universidade norte-americana
aponta para as trinta e três
número que bem poderiam enfiar no cu
pensas seriamente
porque não és um objecto de estudo
és uma pessoa
uma substância individual de natureza racional
dizia um filósofo
membro dessa raça de quem ninguém quer saber
no fundo boécio é como tu

sábado, 18 de outubro de 2014

paulus princeps

cativar é uma treta
ó príncipe do planeta solitário
fechaste a tua rosa numa redoma
para morrer de falta de ar
correste atrás de uma raposa
por desertos sem ninguém
porque não te avisaram
que o bicho é matreiro
e com falinhas mansas
te convenceu que a amizade não morre
morreste no deserto
caíste morto como as folhas no outono
e poucos dão por isso
no livro que fala de ti
não quero morrer no deserto da solidão
deixado por raposas bonitas
que me tentam enganar
de ti príncipe do teu planeta
quero aprender a não morrer

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

gratidão xxviii

que onde as palavras não chegam
(e as palavras nunca chegam)
possa a vida responder
por muito que ela seja pouco

cacifo

não quero ter um cacifo
na sala grande do emprego
a ideia de permanência
é mais pobre
que a de peregrinação

não sou daqui
sou de outro lado

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

a falta

há sempre uma palavra
que falta ao teu poema
não te canses demasiado
enquanto a esperas
não deixes de a procurar

os pés de vinha
sempre pegaram bem nas figueiras
isso às vezes já é surpresa que baste

travessa do desespero

tenho tido dias cheios de mensagens desesperadas.
a espera cansa muito a maioria das pessoas.
eu vou tentando fazer dela um modo de ser,
uma força inversamente proporcional
ao ritmo decrescente da minha conta bancária.
tenho um amigo prestes a desistir disto tudo,
a entrar em total falência racional
que deve corresponder à falência da conta do banco
e à falência deste país que não nos quer
mas em que, teimosos, ainda cremos.
mais do que a ausência de soluções,
horários visíveis numa plataforma informática
a que possamos concorrer,
dói a ausência de respostas e sinais.
em mim ecoa a mesma pergunta
que foi feita a caim:
«que é feito do teu irmão?»
de mim há muito quem não queira saber.

borboletas

no primeiro andar da casa antiga
já não se ouvem passos
dantes sonoros no chão de madeira
a secretária está abandonada
resta um caderno preto
e uma antologia de poetas chilenos
que vai ganhando pó e bichos
há um guarda-fatos aberto no quarto
com camisolas de lã todas iguais
cobertas de borbotos
que o seu dono se entreteria a tirar
enquanto esperava a vez na fila das finanças
ao longe o sino da igreja ainda dá as meias-horas
aqui já não há ninguém para o ouvir
as larvas não se incomodam
com o passar do tempo

domingo, 12 de outubro de 2014

ser uma pergunta

Perguntei-te outra vez:
«E tu, amas-me?»
Respondeste:
«Só há um português na Divina Comédia.
Sabes quem é?»

Perguntei de novo:
«E tu, amas-me?»
Disseste:
«Só há uma maneira de descer silenciosamente o canal.
Explica-me qual é.»

Tornei a dizer:
«E tu, amas-me?»
E tu:
«Tu és uma pergunta difícil.
Não te sei responder.»

desacordar

cai a noite sobre o mundo
e é hora de desacordar
não estar de acordo
dormir
buscar a verdade das coisas
que só o silêncio revela
calar
deixar o Outro falar em ti

inerte

não aprendas da vida
em redes sociais
nem em manuais gastos
de auto-ajuda

a dor é parte da vida
uma parte que não devemos procurar
mas de que não devemos fugir
morrer com dor não é um mal
viver com dor é inevitável

sobre isto os media sempre te mentirão

sábado, 11 de outubro de 2014

felix porta

quantas vezes paraste
ontem na sala à noite
para pensar intimamente
por que nunca perguntaste
aos teus três gatos
se se sentem felizes

«tareco, és feliz?»
e a questão ecoa pelo longo salão

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

céu escandinavo

é feliz o país em que o rei pode dançar
não há guerras com que se preocupar
nem súbditos a passar fome
há um nível de vida acima da média
e suícidios por excesso de esperança
com isso o rei não se preocupa

David dançava feliz
à frente da Arca da Aliança
porque cumpria a vontade de Deus
e não tinha suicidas
entre os pobres do seu povo

disso gustavo não queria saber

sábado, 4 de outubro de 2014

cântico das irmãs

Quando me deito à espera do irmão sono
chega a irmã solidão
que não me quer deixar
É a esta hora que a irmã morte
vem buscar pessoas que dormem
A mim não, devo ter algo ainda
para construir por aqui
O meu Pai ainda me pede
que construa a Sua paz

o povo é sereno

rebentam petardos pela cidade
e os governantes acalmam as gentes
temos brandos costumes
tudo passará rapidamente
ao som anestesiante da sua voz
eles desistem de criar ondas
afinal o nosso destino será o mesmo
já escrevia qohelet há muitos anos atrás

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

como perder-se na serra?

sai sempre de casa de mochila às costas
e com incerteza no coração
leva calçado confortável
deixa as chaves de casa à tua mãe
e sobe silencioso o caminho
que se faz entre as árvores até ao cimo
quando te faltarem as forças
olha para o que está feito
não para o que falta fazer
o futuro não existe
quando encontrares bifucarções
escolhe o que não queres
ou te parece mais difícil
são as dores que nos constroem
mesmo as que não escolhemos
mata a sede nas nascentes
e guarda água num cantil
para te servires à noite
quando te abrigares nas antigas grutas dos pastores
chega ao cume e contempla a terra toda
o caminho que deixaste para trás
depois descalça-te e continua a subir

window

a minha janela é uma porta para o mundo
que não me canso de abrir

gosto de sentir o mundo todo entrar
por ela adentro
e o meu mundo sair por ela fora

sento-me num banquinho
a vê-lo ir por carreiros de terra batida
que vão dar ao cume do monte
onde ainda sonho perder-me um dia

albarran

o que a mim custa horrores
a ti não custa nada

e isso causa-me horrores