blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quinta-feira, 31 de julho de 2014

nariz apurado

o grande medo
que tenho à noite
quando chega a hora
de irmos dormir
é que rejeites
o meu cheiro
como os ratos
detestam o odor
da pele humana
nas pastilhas cor-de-rosa
que usamos
para os exterminar

canção das criaturas

i

saí para te procurar
à noite
às escuras

ii

que não seja longa
a nossa espera
à porta do céu

quarta-feira, 30 de julho de 2014

wait (not for tom)

todos os dias
espero por ti
todos os dias
não chegas
à mesma hora

amanhã vou
cansar-me
de esperar

há tanto tempo
está um país
azul e verde
à minha espera

despertar (um ponto zero)

por volta das oito da manhã
acordas com barulho
de martelos e berbequins.
«devem ser obras»
mas decides não espreitar
e pensar que é antes
o anúncio
de que é hoje que o amor
vai passar à tua porta
assim, com avisos estriónicos.

gestão solitária das saudades

o percurso a pé pela aldeia
é todos os dias o mesmo
descer à fonte
subir ao moinho
caminhar em solidão
a aldeia é um espaço sem gente
talvez para me lembrar mais de ti
e que posso ter errado
ao mandar-te embora de mim
a estrada antiga
que leva à casa do moleiro
é boa para inventar poemas
a estrada, como o poema,
exige que andemos no risco

domingo, 27 de julho de 2014

olhar para cima

nunca sei distinguir
entre o esquerdo
e o direito
na hora de tocar
à campainha
como não vens à janela
para dar dois gritos e acenar
faço só figura de parvo
no meio da rua
a olhar para o céu
(ainda há quem olhe para o céu?)

stat crux

Na solidão da minha cela
ó Deus, bastas-me Tu
todo este espaço
tão vazio de coisas
como devo ser eu
quer ser habitado por Ti
que o Teu som de Amor
que o Teu grande Amor
ocupe o silêncio estranho
do meu pequeno oratório

cavalos de pau

no largo antigo da aldeia
ao som do sino da igreja
ainda se brinca
com cavalos de pau
com peões com caricas
e com pedras
ainda há esse lugar
onde parece que
o tempo parou
pára todos os dias
porque à porta da taberna
depois de três copos
bem aviados
ainda há homens
que escarram para o chão

sábado, 26 de julho de 2014

goodbye and hi

o que me causa mais dores
no meio disto tudo
seja lá o que isto for
é que nunca houve verdade
o que sempre tomei como gratuito
afinal era para trocar por qualquer coisa
assim não sei viver
(«quem não vive para servir
não serve para viver»)

sexta-feira, 25 de julho de 2014

cem palavras

nunca te dirigi
nem uma palavra
mas sinto-me seguro
quando estás por perto
nos chats da internet
(tenho um encanto
secreto pelas tuas mamas
e pela tua voz)
fico a lamentar-me
porque as mulheres bonitas
vêm sem manual de instruções
por sorte os malucos como eu
também

quinta-feira, 24 de julho de 2014

lágrimas escondidas

na taberna da aldeia
para cada um há
uma cerveja fresquinha
um copo de vinho
um cálice de aguardente
na televisão da tasca
passa a novela da noite

os homens de barba rija
têm corações moles

terça-feira, 22 de julho de 2014

things i'd like

gostava tanto
de me enganar menos

o engano é uma prevenção eficaz
contra corações que sangram

quinto bloco de notas

quando vejo algumas fotos antigas
consigo-me aperceber
que há coisas de que me arrependo
tantas vezes
e em que afinal
sempre estive coberto de razão

domingo, 20 de julho de 2014

transporte

às vezes à noite
quando saio do trabalho
ponho-me a olhar
para os calos das minhas mãos
deixa marcas
o trabalho do campo
sobretudo quando começa
tão cedo
tinha oito anos só oito anos
a primeira vez que larguei sementes
e passei o dia a cheirar pó da terra
quando olho os calos das minhas mãos
espreito também as outras marcas
que ficaram por trabalhar desde tão cedo
os meus filhos é que sofrem com isso
«cada acto meu como pai
transporta a minha infância»

as coisas que importam

obriga-te a ouvir pessoas chatas
nunca ligues a conselhos de auto-ajuda
percorre descalço longas distâncias
nunca te auto-consoles
não te dês demasiada razão
não te leves demasiado a sério
não sejas demasiado sério
nunca digas nunca
a menos que seja a hora de o dizer
não busques nos poemas
conselhos de amigo
para uma vida
frases de conforto
para o que querias ouvir
(uma raiz de beleza
visível no fundo de um buraco
escavado à mão
com suor e silêncio
é isso que eles são)

manhã de verão

as memórias de amores
que se acabam
são como nódoas
de ameixas amarelas
(sabem a doce
e não se notam)

sexta-feira, 18 de julho de 2014

deviam ser estilhaços

entre mim e ti há um vidro
uma qualquer coisa invisível
que nos separa para sempre
(na leprosaria havia um vidro
esburacado a separar os pais
dos seus próprios filhos
que lhes eram tirados à nascença
para não haver contaminações.
as mães nunca chegavam a tocar
naqueles que pariram
mal lhes conseguiam sentir
a respiração ofegante
própria dos que amam)

na verdade nunca te fiz festas
foi-me sempre impossível
partir a placa grande de acrílico
que nos separava
limitava-me a esfregar o vidro
como se do outro lado tu sentisses
alguma coisa
hoje percebo finalmente
que nunca sentiste nada
és orgulhosa o suficiente
para nem me acenares
não dizeres um adeus
do lado de lá deste sítio
onde vegetam os que vão morrendo

quinta-feira, 17 de julho de 2014

publicidade enganosa

como passei o dia em casa
abri várias vezes a conta de e-mail
recebi dezoito mensagens
de gente a querer vender-me produtos
variados (igualmente inúteis)
não andava à procura de cursos de inglês
nem de champôs milagrosos
dispenso férias baratas em punta cana
queria uma mensagem
curta que fosse
do amor da minha vida
a dizer estou aqui
só essa é que não me chegou

sur la violence

um pau pode ser uma máquina
de fazer marcas permanentes
no corpo de um homem
quando lhe acerta vinte vezes
a maior parte delas sem razão

enquanto caem bombas
por todo o país
em todas as cidades
ainda há quem pense
nas virtudes pedagógicas
de um pau de marmeleiro

(as mulheres é que sabem sentir
encolhida ao fundo da cozinha velha
a mãe implorava ao marido
«não é preciso dar porrada
no filho único»)

quinta-feira, 10 de julho de 2014

loiro pintado

se algum dia fosse capaz de te amar
ia doer-me a tua tatuagem pequena
debaixo de uma das orelhas
as letras que lá aparecem
podiam ser mais minhas

não são

warm

as noites de calor
pedem guitarras portuguesas
e trazem bichos estranhos
que fazem comichão

as noites de calor
pedem abraços teus
mas não estás
não sei se algum dia vais estar

tabuaço

chegará o dia
em que hás-de construir uma casa
com a porta aberta ao silêncio
e vista para escarpas longas
onde o mistério da vida
sempre se esconde.

um dia construirás uma habitação
onde o amor crescerá como flores
regadas por brisas suaves
e fortes trovoadas.

vais construir uma casa
com as tuas próprias mãos
essa casa és tu
podemos ser nós

medieval

quando comia coelhos
esfolados à mão
e assados na chama
depois de empalar
trincava sempre
as pontas dos dedos

quando o teu corpo
tem a cor e o gosto
do esterco
tudo é difícil
de distinguir

questões para todos os dias

que todos os dias te perguntem
pelas merdas em que te foste meter
mesmo que nunca saibas bem
que diabo de porcarias são

sexta-feira, 4 de julho de 2014

teeth against the glass

Os dentes também servem para morder
de uma crónica do público

no mundo há muita falta
de compaixão.
as profissões empreendedoras
não se compadecem
de amores nem de paixões
(nem de salários dignos
mas isso agora não vem ao caso).
os dentes do bebé
quando nascem
quatro de uma vez
não respeitam
as oito horas de sono
dos progenitores.
eu também não devia
compadecer-me de ti
(já dei para esse peditório
vezes de mais)
mas não sei não perdoar.
o perdão é um modo de ser

quinta-feira, 3 de julho de 2014

meu bem querer

era contigo
que ia construir um jardim
de estrelícias e frésias
e outras flores com cheiro de chá

secaste-me as rosas que havia
em volta do meu coração

já não há espinhos
que o protejam

lírios pretos

todas as lojas de chineses
têm um alguidar
com flores de plástico
são sempre as mais bonitas

naquele dia um ramo
de lírios pretos com apliques
rosa e amarelo fluorescente
o que é estranho chama
sempre a atenção
nem sempre
quase nunca
por ser o mais bonito

a dádiva

o segredo para participar
do mistério da redenção
do género humano:
àquela que sabes que te mente
com todos os dentes que tem
que não te dá nada em troca
(nunca deu, mesmo que te jure
a pés juntos que sim)
quando sempre te lhe ofereceste
perdoa sempre e uma vez mais.

traições

talvez visses ruir a tua vida
inteira por dentro
se soubesses
que quase sempre te mentiam
um grande amigo
dormiu com a mulher que amas
ou amaste ou coisa assim
pode não ser fácil
às vezes não tem de ser

aracnídeo

um aranhiço desce
o portão da minha garagem
não sei se feliz

hoje deve estar uma boa noite
para ler a república de platão
aguenta-se bem na rua
de calções e t-shirt

quarta-feira, 2 de julho de 2014

segundo bloco de notas

a alegria
tantas vezes
serve só
para disfarçar
a angústia

dedos podres

foi encontrado morto
no pomar às sete da manhã.
deviam-no ter impedido
de andar com um canivete no bolso
mas na aldeia isso é normal
e um símbolo de ser homem.
os cortes mais profundos
estavam nas mãos
dois lenhos que expunham os ossos.
haviam deixado de funcionar
as mãos.
um homem sem mãos
que deitem o trigo à terra
não presta
não vale a pena.
do contrário
nunca ninguém o convenceu.
era tão simples
salvar um homem.

finis terrae

tudo é como um buraco negro
escavado com as próprias mãos
até que se acabem as forças.
tudo é um esforço enorme
grande demais para mim
coisa sem sentido.
tudo é um nada
ou quase nada.
no fim de tudo
apenas a angústia

coordenadas

como um frigorífico velho
tapado com um cobertor
viaja sobre um carro
assim o meu amor

a mesa no restaurante
vazia à nossa espera
não te decides
e eu não me canso de esperar

devia haver relógios
que cronometrassem estas coisas
por ti perdi um torneio
de futebol de sete de infantis


eleison

porque buscais no oriente
o ocidente que perdemos?

não há mantras que atinjam
as profundezas do ser
como as litanias antigas.

«Senhor, vinde iluminar
a miséria da minha alma»