blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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sábado, 29 de novembro de 2014

rotinas e rotas

ano após ano
tudo se repete
os dias
e as festas
e os erros
e as alegrias
e as tristezas
os amores
e desamores
e as esperas

na rotina
faz caminhos novos
bate os pés com mais força
e caminha sobre chão seguro

advenire

esperar é uma arte
que se constrói com os dedos
e muitas vezes
com a própria vida

esperar é a certeza
do Redentor que vem
e te liberta
da tua pequenez

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

versos para manuel alegre

as velhas correm para a foz
como os rios que não sei nomear
e onde não se pescam robalos à linha
(nem nas lagoas de água salgada)
esses só há no mar
como o vento forte
e o meu amor
princesa sem encantos
que arde sobre as ondas
escondendo-se à minha espera

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

pavilhões do parque

não deixes de te erguer
mesmo nos dias
em que a cidade cai
as coisas mais bonitas
às vezes estão em ruínas

encanta-te sempre
com a beleza que surge

a odisseia

uma das melhores histórias
alguma vez criadas
aprendeste a vê-la
nos olhos de um poeta cego
nunca te canses
do olhar de homero

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

relógio na parede azul

estava há duas horas em pé com a chave do carro na mão. cumprimenta as pessoas «boa tarde, está tudo bem de saúde, é a minha esposa a vomitar e mal dos intestinos». a esposa há hora e meia num cubículo com três velhos e cinco sofás laranja, «espere aqui minha senhora, tem a pulseira amarela e vão já chamar» e entretanto um homem, vinte e quatro centímetros de ferro de seis pé acima, a mulher «amor, queres uma sandes?», enquanto o montavam numa cadeira de rodas, «não, isto ia era uma bifana e uma média super bock». a esposa demorava e as pernas começavam a bater num ritmo nervoso e certo, «que diabo de espelunca, nem há uma revista do correio da manhã». eram os bombeiros a não precisar de ajuda para acartar macas e os ciganos a fumar ali ao pé enquanto levam soro nas veias, ele nem sabia aquela piada da seringa das farturas nem do esporão intra-venoso. «olhe, olhe, aí vem a sua esposa!» e ele «por uma caixa de comprimidos e uns géis para a barriga tinha-te feito um chá e não gramávamos isto». é o fecho centralizado do carro que não trabalha e os rodapés das notícias por ler.

perguntas ao nascer da aurora

quando acordas de manhã
põe-te as perguntas necessárias

diante de que Senhor
dobras o teu joelho?

será que as nuvens
se queimam
ao aproximar-se do sol?

haverá ainda um amor
algures à tua espera?

e tu, quem és?

naqueles poemas
que falam da vida
sou sempre
a pessoa comum
que olha o mundo
sentada num banco
de jardim

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

o teu escárnio

sabes bem que não atendo privados
mas insistes em deixar mensagem
na minha caixa postal
para dizer que me amas
e me vais oferecer flores
um bouquet de treze rosas
e um jantar à beira-mar
eu não consigo responder
insisto, não atendo privados
deixa-te disso

«escarneces do meu amor
no teu atendedor»

até já e qualquer coisa assim

os meus primeiros quatro anos como professor passei-os aí. foi convosco, na partilha, no diálogo, na análise das virtudes e erros, no bem e no mal, que aprendi a ser professor. é por vossa causa que nos dois meses e uns trocos que levo de desemprego (Deus queira que não se prolonguem muito mais) continuo a dizer que sou professor, posso dizer que sou professor, sinto-me professor. nem este texto nem nada do que eu tenha dito ou venha a dizer nos próximos tempos é propriamente uma despedida (não morri, não emigrei para longe, simplesmente vou ter de arranjar trabalho noutro lado), fiz amigos por aí (ainda há no mundo muita gente que se deixa enganar) e a amizade não depende da partilha de emprego nem de proximidades geográficas. para onde for sempre hei-de levar-vos a todos, cada um à sua maneira, no meu coração. para onde for ensinar sempre hei-de ser professor sempre à maneira de cada um de vocês. agradeço de dentro de mim estes quatro anos. se Deus quiser havemos de nos voltar a encontrar no mesmo local de trabalho (o futuro entrego-o nas mãos do meu Senhor). até sempre. até já.

sumol legio omnia vincit

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

relatório minoritário

saíram hoje mais dez relatórios
para seres escravo à força:

não estudes
não exijas um salário digno
não reclames
não te mexas
não fales
não grites
não sussurres
não levantes a mão
não percas a oportunidade de ser corrido daqui
não penses diferente

não penses, não sejas, não nada. não.

come uma vez por dia
pão com pão
e compra carros alemães

cachimbo e perna traçada

«isto precisa assim mais de uns saraus de poemas, exposições do miró, música vanguardista, 'tá a ver?», e batia com a mão no braço do programador. «a malta precisa de ouvir falar mais no rimbauld [eu nunca li rimbauld mas é citado muitas vezes pelos colunistas], de ver concertos sentados... de boa música, boa música, percebe? música clássica contemporânea». «vamo-nos sentar». traça a perna, saca o cachimbo do bolso do blazer, começa a brincar com o isqueiro e, com a outra mão, a afagar o último livro de um poeta russo, ainda imaculado. «olhe, há um músico mesmo bom para trazer cá mas é caro. isto não é lisboa nem o porto... mas isso não é problema, ou é?». «pois... olhe, pagam mais mas vale a pena. é menos uma pulseira para a esposa». «é isso, é isso. e afastamos aquela gente que faz barulho... por falar nisso, que raio de ideia foi esta de vender cerveja na esplanada? já viu a gente que isto atrai?», e roía-se de inveja dos caracóis do bar em frente. «sabe, aquilo não é explorado por mim. mas vamos lá ver, e para quando um sarau de poesia?». «olhe, a gente junta aqui um grupinho todas as noites, ouvimos um jazzezinho, falamos dos poetas [há anos que tenho dois livros de poemas na mesa de cabeceira, foi a minha criada que mos deu pelo aniversário]. não precisamos de muito mais. uma apresentação de um livro talvez. há aí um rapaz a escrever uma coisas com piada, e dá na rádio. olhe, traga esse!». «então... então... mas doutor, isso vai trazer imensa gente! onde é que a gente os mete? no grande auditório?», e o programador espumava, desesperava. «também precisamos de lhes dar alguma coisa», disse condescendente. «e adeus, professor, agora vou a lisboa ao morrissey. os meus primos todos vão. vai ser giro. aproveitamos para jantar na churrasqueira do campo grande». «boas músicas tem o morrissey, doutor». «pois tem, pois tem! [quem é o morrissey? e a ver se proíbo a minha filha de falar com este gajo. ainda acaba a estudar filosofia. tem é de ser engenheira como a mãe]».

pó dos livros

a biblioteca em que choro sempre
é aquela cujas estantes
foram carregadas pelos meus ombros

o povo tem nojo da cultura

não é só a chanceler alemã que não gosta de licenciados. o povo tem horror à cultura. há dias um homem fez um quilómetro a correr para encontrar uma casa de banho. tinha um centro cultural logo ao lado. inquirido sobre não ter ido aos lavabos logo ali respondeu: «nunca ali entrei» (aquele tipo de «nunca ali entrei» que quer dizer «não entrei, não entrarei, não quero entrar, detesto quem lá entra»). é comum que, em certas regiões, quem decide estudar seja olhado com desdém, que devia era ter feito como os seus primos e ir para as obras ou uma padaria. certamente já tinha mulher e filhos, um monovolume e uma vivenda com um alpendre. o conhecimento assusta muito, não é uma coisa que se veja, como um monovolume ou uma vivenda com um alpendre (é por isso que os velhos são despejados para longe ou deixados sozinhos, com o argumento de que a vida custa e exige tempo e não podemos cuidar deles). o que não se vê assusta. até porque a sabedoria é uma coisa, que à partida, parece que não dá para vender (a menos que a mascaremos de know how com muitos inputs e outros anglicismos próprios do empreendedorismo que, ensinam-nos na televisão, é uma coisa que vale a pena). tenho pena de tudo isto. comiseração, mesmo. o grave problema é que o povo não sabe a ternura com que os poetas olham para o trabalho dos agricultores.

oração da manhã

Ensina-me, Senhor,
a encontrar uma caixa
onde possa guardar
a angústia que me consome.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

quase um credo

não acredites
em tudo o que lês

não acredites
só no que vês

subversão possível

um cigarro à chuva.
correr debaixo de aguaceiros.
ser criança perdida ainda
quando o fisco te exige
uma adultez qualquer.

rua dos bares

estava um poeta a beber outra cerveja
na esplanada ao pé da praia
e o pintor passeava de mão dada
com a sua amada de sempre
dando os bons dias ao desenhador de rua
que corria pelo areal
e olhava para as fadistas deitadas
a tomar banhos de sol
«que lindas são. que falta faz um fotógrafo aqui.»
o seu amigo que tirava fotografias
ia a caminho da serra com a família

sentado num banco um homem comum
não gostava do que via
os artistas afinal são pessoas
capazes de ter dores nos pés

tremor

a canção que procuras
para dar luz ao teu coração
é a que te faz tremer por dentro
sempre que a ouves

fruta da época

quando o castanheiro grande
se começa a deitar
é sinal que vai secar
e apodrecer por dentro
morrer

foi à sombra dessa árvore
ainda alta e firme
que aprendi a temer a noite

domingo, 2 de novembro de 2014

palerma

os gestos que lembras
são sempre os mais inesperados
os mais arriscados
na vida tão te canses de arriscar
perder o chão
voar
atravessar um oceano
com um barco feito
pelas tuas mãos