blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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domingo, 20 de dezembro de 2015

pão de açúcar

de pé na zona de fumadores
do aeroporto,
um cigarro à pressa,
o bilhete para o rio
no bolso da camisa,
um sorriso estranho
com a convicção
de que a actriz (atriz)
está solteira de novo
e os encontros fortuitos
acontecem.
um bilhete para o rio
e um e-mail a cair
no smartphone:
«confirmamos sua
inscrição na ix
convenção mundial
de produtores
de carne bovina».
um sonho de um
encontro com a actriz (atriz?)
que não irá acontecer.
apago o cigarro
num vaso cheio de pedras,
procuro "chico beatriz"
no spotify
e corro para a zona de embarque.

sábado, 19 de dezembro de 2015

o poder da vírgula

o mundo,
animal preso
por arames

um desenho
que certo dia
imaginei

uma notícia no correio da manhã

segundo um estudo
de uma universidade
norte-americana
dezembro é o pior mês
para fazer anos.
dito assim,
como se o dia de aniversário
pudesse ser escolhido.
podiam ter aproveitado
o tempo investido
para provar cientificamente
que não dão resultado
os amores que surgem
no inverno:
se te apaixonares agora
pode gelar-te
o coração.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

silentium

ainda que todas as palavras
fossem na torrente
há uma planta a nascer
no carvão

um lugar ainda
para a esperança

sábado, 14 de novembro de 2015

we'll always have paris

diante do terror
falará o silêncio.
nestes dias faz-nos falta
a esperança,
um olhar que veja
a possibilidade da paz.
na cidade da luz
há-de erguer-se de novo
uma luz.
vivei, povo,
é a melhor resposta possível.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Uma moeda em Sarepta

Saí à rua, naquele dia
- era o tempo da fome, ainda te lembras? -,
passeando uma moeda,
a última moeda,
por entre os dedos,
dentro do bolso direito.
Encontrei-te a meio da viagem,
quando me pediste um café.
Era o tempo da fome,
a última moeda,
eras o meu amor.
Paguei-te um café
em troca do meu amor,
dei-te tudo o que tinha.
Naquele beijo
frente à escadaria do mercado
a certeza de que iria sobreviver
(nunca to disse mas com aquela moeda
iria comprar cigarros avulso
que fumaria antes de esperar,
vagaroso, que viesse a morte).

terça-feira, 3 de novembro de 2015

finisterra

delineara um plano perfeito
para levar a cultura
aos filisteus.

o meu plano (perfeito, dizia eu)
viu-se gorado
quando o primeiro barco
saiu rumo à península
dos iberos,
esse lugar onde a terra acaba
e começa o nevoeiro.

sabedoria

it's like if you were in berlin,
ainda essa frase a vir à cabeça,
como se estivesses com ela em berlim-leste,
descobriste que ela agora vive nessa cidade,
não sabes se em berlim-leste
mas gostavas que em berlim-leste,
que berlim-oeste não casa bem com o poema
[berlim ocidental talvez],
a esta hora volta ainda a excitação
do primeiro amor,
quem ainda se lembra do seu primeiro amor
levante o braço e core,
e pensas e voltas a pensar
e o amor não se pensa
e afinal não querias nada estar com ela
num apartamento de três assoalhadas
em berlim-leste, nunca gostaste de comunistas
nem alguma vez estiveste em berlim,
dizias-me ontem que o teu encanto pela alemanha
se esgota nas torres das igrejas da baviera.
o lugar que desejas, hoje, é a outra margem,
dizias-me, do tejo ou do bósforo,
não o sabes bem.
com que companhia, creio,
também o desconheces.
sabes que com quem te lembre
o ardor bom que te despertava
a rapariga de berlim.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

a letra r

seria demasiado fácil
construir um poema
com um rapto, um repto e um réptil.
no entanto,
preocupo-me agora
com um rato que ciranda pela cozinha
e que persigo com uma vassoura na mão.
nunca aprendi com os gatos a arte da caça
e serve de pouco, nestes momentos,
o que aprendi num compêndio velho
sobre argumentos para persuadir um inimigo
a abandonar a sala.

tertia passio

não penses nos dias
em que te podes apaixonar por um país

pensa que pode haver um dia
em que um país
se apaixone por ti

terça-feira, 13 de outubro de 2015

#liberdade

O Homem, criado pela Palavra,
não vive só de pão.

Que quando te obrigam à fome
a liberdade sirva de alimento.

domingo, 27 de setembro de 2015

vita brevis

a pergunta que chega,
de repente,
na solidão silenciosa da noite:
há vida antes da morte?

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

carta desde a solidão

a noite cai, assim,
quando as lágrimas teimam em cair
sem porquê.
há uma angústia qualquer,
sempre uma angústia,
que teima em pairar por aqui,
em servir de tempero
à esperança que ainda quer
governar-me e indicar caminhos.
que a esperança vença em azul
e que haja uma caixa velha
onde se possa guardar a angústia,
é a minha oração nocturna.

quadro em tons de sépia

Tudo o que me disseste:
«Eu sou a porta».

Um dia encontrarei
a casa
onde me esperas.

domingo, 20 de setembro de 2015

a lua já não ilumina

cansados, abatidos, tristes,
sós, sem rumo, sem nada,
para onde havemos de ir
agora que não encontramos
luz? agora que todo o brilho
que ainda chegámos a ver
se esconde, foge, rejeita-nos?

é nestes dias em que custa
que mais deve valer a pena
crer na possibilidade
de um caminho

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

civitas

ainda nos falta a coragem
para sair de casa
à procura da cidade.
o medo de encontrarmos
apenas
os salgueiros que ladeiam
as margens do rio que a circunda
teima em invadir-nos.
faz crescer em nós, Senhor,
a vontade de encontrar
o teu Templo dourado
que se eleva no alto das colinas.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

to choose

era mais fácil
construir um poema
sobre a pornografia
e o desejo carnal
concretizado algures
num beco escuro.

escolhi, contudo,
erguê-lo dentro do som
da brisa da tarde,
de imagens mais difíceis
mas mais verdadeiras.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Vivo eternamente em Saint-Tropez

a esta hora e nesta solidão
não dá para achar a praia bonita
nem para não temer la mer,
esse mar que só por nós,
navegadores, é tratado
como um homem, um adversário.
ao longe há umas senhoritas
a percorrer o areal
levando vestidos retrô
e sandálias douradas na mão.
parece que elas
não têm medo do mar ou das ondas
ou do que a areia esconde.
o meu medo estranho
é sinal da minha cobardia,
é que nunca tive especial compaixão
pelos pescadores.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Beira

na cidade, em tempos,
esperava-se o futuro.
isto foi antes, muito antes,
da enxurrada que a destruiu
não deixando
pedra sobre pedra.
ainda há, contudo,
quem acredite
que a vida se reerguerá
e será possível, de novo,
guardar silêncio
à beira do rio.

terça-feira, 14 de julho de 2015

(um) amanhã

aos dias de dor e tristeza
sucederão
tempos de luz e festa

ainda uma última
casa para a esperança

passeio de bicicleta

era tão fácil roubar-te essa ideia
de querer ser um pássaro
e poder voar,
dá um verso tão chamativo
e emocionante.

a noite vai longa
e eu queria ser o meu gato
a vaguear pela casa
e a miar por comida
e festas no lombo.

tu nem sabes que eu te leio
mas, se um dia o souberes
digo hoje, com uma imagem feia,
que me farias ronronar.

levar-te a voar,
no brilho dos olhos
e no calor de mãos partilhadas,
seria uma hipótese a considerar.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

statio

Para Armando Silva Carvalho

não dá para pensar
na estação dos comboios
da minha terra
como tendo sido, um dia,
nova e movimentada.
sempre um lugar perdido
ao fundo da encosta
e resguardada, guardada
por árvores frondosas
com ar velho.
enquanto desço o carreiro
que conduz à estação e,
por ela, lentamente,
ao mundo todo,
envelheço à pressa
e tudo é western,
senhoritas a abrir a sombrinha
ao deixar a locomotiva
acompanhadas de seus cavalheiros
(a locomotiva assobia
uma melodia de órgão de tubos),
cavaleiros de espada em riste
à conquista do castelo.
chegado à estação
só queria que estivesses aqui,
que me desses a mão,
que os teus olhos vissem isto,
que nos sentássemos na plataforma
e apoiasses a cabeça,
de novo,
no meu ombro.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

pastel de nata

em certas ruas
o amor corre depressa demais
escorregadio demais
para que o possamos agarrar

por esses lugares
passamos tão acelerados
que nem dá tempo de parar
para pensar no assunto
ou olhar com olhos novos
a beleza de um prédio art déco

segunda-feira, 6 de julho de 2015

esquerda insatisfeita

passava tudo por um reencontro
entre a música ambiente
e o ritmo do coração.
uma tarefa custosa,
demasiado difícil,
um encontro mais
entre o que nunca veio
e o que está por fazer.

a jarra com flores murchas
ao canto da sala,
a memória de uma melodia
assobiada baixinho
pelo avô.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

wind blows

para onde ir
quando o mundo arde?
que terrenos pisar
quando é obrigatório
andar sobre escombros
em chamas?
onde se esconderá ainda
uma via silenciosa
e pacífica?
uma última alternativa:
escolher como caminho
o ponto para onde
o vento sopra.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

far islands

a ilha sobrevivia ao arquipélago
e exalava uma vida diferente
e ao mesmo tempo estranha:
nunca havia sido pisada pelos homens
e a sua paisagem estarrecia
mas como que se afastava.

impossível como a ilha
é registá-la com o olhar.

betadine

o ruído do vidro no balcão de pedra
confundia-se com o fumo abundante
e com as poucas conversas
que ainda havia por ali:
o ritmo das sementeiras e das colheitas,
a vida dos presentes e a morte
tão constante por ali,
assinalada pelos sinos,
identificando crianças, mulheres e homens.
o sol entrava pela janela,
cortando uma estranha escuridão,
e iluminava copos, um alguidar,
dois barris e um jarro de vinho.
no páteo três pessoas, desinteressadas,
jogavam chinquilho
e confiavam no amor.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

despertar

acordava no meio da noite
com a sensação de ter ouvido
um grito lancinante de dor
que era tão estranho
quanto a solidão constante da casa.
percorria os quartos vazios do paço
em busca de um sinal qualquer,
de vestígios de uma presença,
de marcas físicas
que o som pudesse deixar.
a verdade é que nunca encontrei,
sentei-me na cama fria
do quarto dos fundos
e abri em pranto profundo.
pois é, ainda hoje acordo
com os gritos horríveis
que o meu avô
me passou em testamento.
uma herança de merda.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

a palavra de mármore

entretanto o poema perdeu-se
porque me cansei de procurar
a palavra que lhe trouxesse
a necessária aura de perfeição.
que vocábulo, que verbo
servirá de companhia
para a ideia sanguínea
dos desamores escondidos?
não é fácil, nada fácil,
assumir que ele não existe.
a realidade, no entanto,
eleva-se, assim, sem mistério.

domingo, 21 de junho de 2015

celulose


consulta e download do pdf aqui.

O livro divide-se em 4 partes: I - o lugar das luzes, textos reunidos sob o tema comum da luz; II - a casa de oração, textos de temática religiosa; III - tudo é ficção, textos arrumados como em prosa ou objectivamente ficcionais; IV - brevis, poemas curtos.

novecentos

devia haver,
para limpar a vida,
uma toalha eficiente
como as que limpam o suor
e as mãos pegajosas
dos desportistas.
até lá vamo-nos purificando
com os passos incertos
de uma peregrinação
sem destino.

fotografia analógica

que imagem
para registar o calor?
o cair terno da noite.

que imagem
para registar a angústia?
tu. sempre e só tu.

last kiss

um último beijo
que ficou por dar
cede lugar a
uma alegria contida
com os teus pequenos
mas variados insucessos.
é a vida a andar para a frente,
uma mentira de que nos
convencemos, acho,
porque a vida está aqui
parada à espera
de outro amor,
um que seja a sério.

pedra sobre pedra

uma questão que surge,
de surpresa, no calor da noite:
com que pedras de que casa
construir ruínas sólidas?

sábado, 20 de junho de 2015

masters of war

morrer com os próprios sapatos
a última das alegrias possíveis
no meio do horror da guerra

sexta-feira, 19 de junho de 2015

chico

já não há construções
a que se possa subir
como se fosse sábado
para ver a banda passar
a tocar canções de amor

já não há canções de amor
nem o amor, tão-pouco.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

tango y libertad

ao meio-dia as ruas de san telmo
estavam sempre demasiado vazias,
muito sujas, também, muito sós.
ali, desconfiava juan, a vida far-se-ia
nas horas em que o azul celeste
misteriosamente se esconde
e os homens de buenos aires,
demasiado puros para levar
uma prostituta pela mão,
podiam dançar com outros homens.
juan, sentindo-se sozinho,
entrou num bar e pediu
uma fernet branca.
sob uma melodia de piazzola
a bebida talvez fizesse esquecer
o nojo que juan sentia daqueles
que consentiam na cama
quem nunca chamariam para dançar.

down jones

Para baixo é que vamos,
pensava Jones para si,
enquanto a guitarra
soava baixinho algo
parecido com blues
e tudo era, no bar,
a luz dos isqueiros
e o fumo de cigarros
enrolados à mão
e os dedos amarelados
de velhos a fumar
desde que se acabou
o tabaco de mascar.
Em Chattanooga, Tennessee,
já não valia a pena
esperar o futuro,
só por mais um bourbon
e o calor de amanhã.
A cidade era toda areia
e o pigarrear dos velhos.
Jones pagava dois whiskys
e subia a rua em pranto.

terça-feira, 16 de junho de 2015

sursum corda

na solidão da noite
a oração do monge
que ilumina a sua cela
com uma vela artesanal:
corações ao alto,
mãos cravadas
no fundo da terra.

sometimes, one angel

em noites quentes
ainda me vens à memória,
anjo nu que caminha
serenamente pela neve,
criando um contraste
entre a luz que se eleva do chão
e a tua pele tão morena.
aqui, na caixa de vidro escuro
onde escolhi ficar,
faço por esquecer-te.
a tua luz em mim
fere mais do que ilumina.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

caderno de apontamentos do curador ferido

velho demais
para entender a linguagem das aves
ainda quero crer
que serei capaz
de transformar as feridas,
minhas e do mundo,
em pedras preciosas.

sábado, 6 de junho de 2015

versos para dois poetas e para a escuridão

o cansaço de estar aqui
às vezes cresce tanto,
chega ao tamanho
de monstros que não
podemos medir

que já não dá para saber
a que vazio nos
conseguimos agarrar,
que silêncios nos guiarão
nestes tempos de escuridão.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

uma última valsa

aquilo de que sinto falta
quando começo a subir aos céus
é de um poema que me prenda à terra

palavras de urze e granito

quinta-feira, 4 de junho de 2015

A viagem de Herberto Helder

Tive como única companhia
uma caixa de pampilhos
naquela tarde nas portas do sol
em que me sentei para ler
os passos em volta
à espera que, de repente,
Luiz Pacheco assomasse de novo
àquele banco de jardim
em que o maior dos poetas
lhe leu esse livro
de uma assentada.

O sol pôs-se ao longe
e, não fosse essa imagem
marcada em mim,
voltaria para casa
sem a invocação dos poetas
e sem a invocação dos amores.
O amador, ao rés das águas, continua
à espera da amada
que habita o alto das montanhas.

sábado, 30 de maio de 2015

Benjamim

um dia serei capaz
de me despedir
do medo
de ficar enamorado
pela luz dos teus olhos

hoje ainda é cedo
um tempo de trevas
que tarda em passar

mas é na aurora
que o mistério se esconde

por isso ainda vale a pena esperar

terceiro som

há uma luz que sobe
ao cimo das montanhas
e só tu o sabes
é um segredo bem guardado
que escapa a todos
os que decidem não sair do tédio,
não olhar o mundo
com olhos sempre novos

segunda-feira, 25 de maio de 2015

isto não é um poema (mesmo)

a beleza do mundo
e o que se esconde nas palavras,
caberia tudo aqui

mas isto,
lamento,
não é um poema.
ninguém sabe o que isto é.

corner

que companhia procuras
quando tudo o que encontras
é solidão pelas esquinas?

resta-te subir a uma árvore
e esperar

domingo, 24 de maio de 2015

atlas

de que vale a volta ao mundo
e tantos carimbos num passaporte
se nunca paraste para chorar
com um pôr-do-sol?

sábado, 23 de maio de 2015

ferida fétida

a noite avança
e ainda me dóis demais

ainda magoa
saber que não vais ler estas linhas
ou que não te vão fazer estremecer

isto são só versos de desamor
coisas parvas
como eu sempre

Versos para Flannery O'Connor

virá ainda o dia
em que a dor da fome
se transformará em maré.

(há sempre uma outra fome
que há-de saciar plenamente,
a fome do pão da vida)

os filhos de Deus ainda
esperam palavras de misericórdia.
esses famintos, profeta,
tens de querer saciar.

isto era uma autobiografia

só era preciso
que deixasses o poema
trabalhar em ti

sexta-feira, 22 de maio de 2015

A destruição de Palmira

Não são só rochas que vão
quando as rajadas e as bombas
soarem sobre Palmira.
É a intelligentia mundi
a que julgamos pertencer,
a vida da mãe que percorria o fórum
com o filho pela mão,
a história dos homens
que esculpiram uma cidade
com a força das suas mãos.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

there is a light

Diógenes ainda rompia
pela Acrópole cheia de gente.
Era o meio-dia.
As gentes olhavam
e apontavam-no:
«É o louco».
Tudo o que ele queria
era que a luz ténue e inútil
da sua velha lanterna
lhe apontasse um homem,
um último homem
disposto a morrer de amor.

sábado, 16 de maio de 2015

pirilampos

não há magia alguma
no nome caga-lume
mesmo quando eles
escolhem chocar-me
contra o peito
a meio do passeio nocturno.

houve um tempo
em que me espantava
com a luz dos caga-lumes.
uma diversão mais
a somar à contagem
das matrículas dos autocarros.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

avis in civitate

houvesse ainda crianças
capazes de subir aos prédios
como antigamente às árvores
para observar os ninhos
e aprender uma forma carinhosa
de respeitar os pássaros
e ainda poderíamos
esperar um outro futuro

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Nabucodonosor

virá ainda o dia,
sabemo-lo nas entranhas,
em que o menino
deixará a cova dos leões
para interpretar os sonhos do rei.

nesse dia sorriremos,
cantaremos canções de vitória
com as nossas harpas depositadas
junto aos rios.
virá o tempo de sermos felizes,
o tempo da verdadeira liberdade.

sábado, 9 de maio de 2015

não ames ainda as madrugadas

«Sentinela, que vês na noite? Sentinela, que vês na noite?» 
E a sentinela responde: «Chega a manhã e a noite também.»
Is 21, 11b-12a

o que há de mais apaixonante
na noite escura
em todas as noites escuras
é a hora que se levanta
para anunciar a manhã

essa hora não a esperes sozinho

minarete azul

Que os homens soubessem,
ó Deus,
que o que não cabe no poema
não cabe na oração.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Fotografando Berlim

faz pouco sentido
colorir as imagens
de uma cidade destruída
por anos de bombardeamentos
anos de homens
a ser lobos dos homens
a não ver homens nos homens
a não ser homens

a senhora leva o filho pela mão
e os seus olhos não se elevam
dói demais ver de perto
o que conseguimos destruir

quarta-feira, 6 de maio de 2015

ponto de fuga

hoje decidi partir
em busca do lugar
onde há uma palavra que transforma

a casa é só solidão
desde que a deixaste
e é demasiado penoso
este ofício
de querer ser o mais pequeno dos homens

é pouco mais o que me resta aqui

livro de contas

já não é necessário
aprender uma caligrafia própria
para preencher livros vários
da área da contabilidade
como nas relações
a tecnologia vai tomando o lugar
do artesanato

ontem sonhei que ainda se exigiam
aulas e tratados de caligrafia
para quem escreve versos de amor
e poemas com contabilidade dentro

terça-feira, 5 de maio de 2015

décima noite

quis aprender do teu sorriso matinal
a deixar a minha antiga
obsessão pelas madrugadas

deixaste de me sorrir
continuei a não entender a noite
e tudo o que precede a madrugada

segunda-feira, 4 de maio de 2015

sistema de esgotos

(...) É que os ratos
mudaram-se pra cá, quase todos, e isto é a sério.
JOHN BERRYMAN

a casa ruía, há muito invadida
por ratos e insectos estranhos
e ainda restavam memórias
daquela frase romântica
«o nosso amor cabe todo
no trem, o trem de cozinha da tua avó»
e era muito grande, sim, o trem da avó,
cheio de panelas de qualidade
e tachos apropriados para cozidos a vapor.
o que sei é que me sento numa esquina
da casa e, olhando em volta,
já nada disso interessa.
o trem foi distribuído pelos meus tios,
que se apressaram a vir buscá-lo,
uma herança é uma escola de abutres,
o nosso amor acabou, cabe todo
numa automotora da linha do oeste.
no trem que liga o rio a são paulo
nunca caberá.

dois zero quinze

não me lixem
nem me mintam
o quotidiano transporta
tantas coisas indizíveis
esconde tanto inefável
que não pode ser desvalorizado assim

domingo, 3 de maio de 2015

it's all about the light (luzes ii)

uma luz que vem de dentro
faz estremecer a noite

não abuses demasiado da luz
da tua velha lanterna
quando saíres na entremanhã
em busca de um novo amor

quinta-feira, 30 de abril de 2015

ela é mais sentimental

ainda falta um poema
para falar do que não se sente
os beijos não dados
que nunca se virão a dar
as noites de amor frenético
que foram passadas em solidão
a tarde passada sentado na cadeira do quintal
a olhar uma parede
o silêncio do som dos pássaros na província
que lembra o silêncio da tua voz
na mesa do café

naquele dia fugimos rua acima
com os nossos bolsos vazios
disso já só eu me lembro

segunda-feira, 27 de abril de 2015

candeeiro com berloques

e deixava-se guiar pelo som
o som das portas a bater
e o ruído incómodo da porta
que abria lentamente
para dissimular estalidos

escapou-se da casa
ao primeiro sinal
da luz da manhã

terça-feira, 21 de abril de 2015

Versos para Arvo Pärt

que o silêncio
te leve
aos sons que não escutas

que o silêncio
te conduza
a lugares que não visitas

sexta-feira, 17 de abril de 2015

excesso

era o poema a esgotar-se
no excesso de palavras
e os homens que já não subiam
ao cimo dos sicómoros
para ver aquele que passa
e traz palavras de redenção

as pessoas cansaram-se
de procurar a margem certa
e o brilho escondido
dos olhos de quem ama

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Versos para Eduardo Lourenço

que livro escolherás
para aí procurar
uma palavra que abra caminhos
de salvação?

professar

não se escolhe ser homem-bala
não se escolhe a que trapézio subir
nem a escada que se descerá
de olhos vendados

deixemo-nos ir
pelos caminhos que nos escolhem

esperando godot

a verdade que descobriste
debaixo da cerejeira florida:
aquele que esperas não vem
talvez nunca chegue a vir

quarta-feira, 15 de abril de 2015

menos musical

quantos gestos são precisos
para destruir uma casa?

de quantas palavras precisas
para dizer o indizível?

assim se constroem tratados

o manuscrito perdido

o oriente que te interessa
é o das ideias longínquas
e dos incensos e dos mantras
de frases consoladoras
deixadas por um monge careca
num manuscrito com três mil anos

o oriente que morre sob bombas
com a causa estúpida da diferença de fé
esse não te diz nada
não tem monges carecas
nem manuscritos consoladores
é a terra que te ensinou a pensar
isso não deve ter valor

sono

no fim do dia restarão flores mortas
e sairás de lanterna na mão
em busca da serenidade das madrugadas
uma coisa dessas que se ouvem nos fados
talvez consigas encontrar um homem
como o filósofo grego que os procurava
não à noite mas ao meio-dia
deve ser mais difícil encontrar um homem
que uma madrugada serena
ou o amor de uma mulher que cante

quinta-feira, 9 de abril de 2015

o banco

transporta demasiados sonhos
demasiados silêncios
demasiadas conversas
o banco envelhecido
do jardim em ruínas

se conversas e sonhos
ainda despertam interesse
dos silêncios ninguém quer saber

quinta-feira, 19 de março de 2015

valquírias

a verdadeira poesia
está toda no poema
que ficará por escrever

atenção que não disse
o poema não escrito
ainda não escrito
falei no que jamais
irão escrever

quarta-feira, 18 de março de 2015

domingo, 8 de março de 2015

David embala os seus netos

Ao som da lira
canta-lhes salmos
sobre vitórias na guerra
e derrotas no amor

«o amado não estava à porta.
morrerei de amor».

os dedos em sangue

são tão apaixonantes
os versos de violência
que quase nos esquecemos
dos versos de amor

quarta-feira, 4 de março de 2015

duas gaivotas na cidade

volta o sol da primavera
e os riscos que os aviões traçam no céu
duas gaivotas sobrevoam
os prédios do bairro social

ninguém as nota na cidade
ninguém teme tempestades no mar

boina escura

não faço parte de nenhum partido político
e só tenho a quarta classe.
como uma aguadilha com feijões de lata
aquecida num fogão de dois bicos.
sou um andrajo de existência,
palavras caras que aprendi
num dicionário de capa azul,
propriedade do meu filho do meio.

o dicionário tem páginas manchadas de saliva.
o meu filho molha os dedos
antes de buscar as palavras seguintes.

lê muito, o meu filho do meio,
relatórios e manuais que não
consigo entender. nunca leu
o romance que lhe ofereci nos anos.
nunca leu livros de poemas.
não conserva o respeito
pelo cheiro da província.

eu cá ainda sonho
com o som do arado a cortar a terra
e com o poema que isso transporta.
aqui, na cidade, sou um prisioneiro
que as palavras vêm, amiúde, libertar.

segunda-feira, 2 de março de 2015

o mês de março

um dia a primavera volta
levando a melancolia dos dias
e o poema que ela desperta.

cerejeiras em flor:
o mistério do recomeço.
não hão-de dar fruto,
as cerejeiras do japão.

um país que seca

tiraram-nos uma companhia de bailado
faz dez anos por esta altura,
não sei bem em que tempo estamos.
vão-nos tirando o conservatório nacional
pedra a pedra, a cada pedra que cai.
tiram do mundo os livros que não se vendem,
antoinettes cortadas à guilhonita,
barbáries que nos passam ao lado.
dia a dia, esforço a esforço,
homens de gravata a queimar a cultura de um país.
«não nos tirem os copos grossos das tabernas,
não nos tirem o vinho, não nos tirem as tabernas»,
dizia o homem de lágrimas nos olhos,
«não nos tirem um país».

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

18.47 and it's dark

triste projecto de vida
desperdiçar as tardes
em comédias românticas
e lágrimas escondidas

«if london is cool
they are in tokyo»

no encontro de ex-alunos
o safoxone confunde-se
com a voz inconfundível
de mark sandman
(ela também gosta de morphine
isso nunca irei perdoar)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

notas soltas para um romance

a minha rua cabe num prédio
da cidade grande
mas a minha rua tem muitas histórias
tantas quanto o mundo
e a história do mundo
cabe tanta coisa na sabedoria dos mais velhos
e nos livros para crianças

domingo, 15 de fevereiro de 2015

praça sintagma

sou só mais um
no meio da multidão
e não me diz nada
a beleza das fardas
e da marcha dos guardas
em troca de turno

o que me comove
é o povo que grita
palavras de esperança
elpizei, elpizei

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

de fides

Os que se ajoelham diante de Ti, Senhor,
não se dobram perante os outros homens,
mesmo os mais poderosos.

Falo tanto de Ti, Senhor.
Evangelizo pouco de propósito,
estou sempre a evangelizar sem querer.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

cigarros pretos

restou muito pouco
quando te foste embora
três cigarros pretos
num embrulho de papel
e uma dor que me dilacera

percorri a cidade a pé
à procura de uma paz qualquer
mas a dor não me deixa

fiquei sem os cigarros pretos
um drogado um caixote do lixo
e um embrulho de papel
amarrotado na minha mão

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

serenata

acordei demasiado atento ao som dos carros
e a querer calar o som dos carros
a fazer-me impressão o som dos carros
pareciam estragados todos os carros
deviam parar por três horas esta tarde
sem nenhum evento em particular
só para que pudéssemos parar
e no descanso silencioso
procurar um mundo novo
sem a angústia de andar sempre
por caminhos mesmos

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

nau

no regresso à terra
o espanto com o som
e a presença cada vez maior
dos corvos
pássaro feio os corvos
não percebo nada de ornitologia
para saber o que propicia
o feliz desenvolvimento de um corvo
sei que eles andam muito por aí
espero que não estejam à espera
de corpos mortos
para guardar em longas viagens marítimas

crítica do automóvel

mudar de meio de transporte pode secar uma veia criativa, mesmo que ela nunca tenha ido por aí além. há todo um mundo que se constrói, todo um tempo que se dá, toda uma vida que se faz, quando se anda de transportes públicos. tudo isso se perde ao volante de um automóvel. há uma estrada que se ganha, um volante, manípulos, uma atenção, um olhar periférico mas isso não compensa os livros, as pessoas que se vêem, as esperas. ganha-se um outro tempo, que se torna um tempo perdido em televisões com maus alinhamentos e em "só mais cinco minutos" de nada. há duas semanas que não pego num livro, há-que tempo não tenho tempo para ver gente que não seja a que atravessa a estrada enquanto eu paro. sinto-me obrigado ao acto de ler, ao ofício de ler, sinto-me obrigado ao acto de observar, ao ofício de observar, e sei que não pode ser assim. peço desculpa ao(s) leitor(es) deste blogue pelo decréscimo do número de textos e de um certo decréscimo de qualidade (passe a extrema imodéstia). a minha vida vai assentando e talvez volte ao normal.

cem metros para nada

há um conjunto de distâncias
que vai reduzindo com a idade.
hoje percebia isso ao ver
os passos que vão do bebedouro
ao portão da minha tia-avó.

a distância que nos separa
também vai aumentando,
tu sabes. não é com passos
que a meço. é com a falta
de corações, saudades
e todos os clichés
que me vão afastando de ti.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

sétima noite

não há um livro que ensine
a compreender o frio
que dá aos que caminham
na noite da existência

não há um disco que se ouça
para encontrar sentido
para as mortes do mundo
dos dias de hoje

não há um profeta
que traga esperança
aos povos esmagados
pela pobreza

rezo pelo poema
que abra uma esperança nova
um mundo novo
que ainda possamos construir

(A Cidade de Deus, de Santo Agostinho
é uma realidade possível.
Trata-se, no entanto, de uma obra
em três extensos volumes,
na sua edição portuguesa.
Dá trabalho pô-la em prática)

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

ladrilho azul

na pedra fria
antúrios em flor.
uma estação que vive.

reticências

era um homem habituado
a andar em sentido contrário.
achava que as perguntas se assinalam
com pontos de interrogação
e as frases sem resposta
com pontos finais
ou sem pontos
(continua a não se compreender
quem usa poucos pontos
e muitas frases sem resposta).
o mundo abusa das reticências
e elas já não criam suspense nenhum.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

limpar espingardas

há o momento de entender
que não vale a pena lutar mais
por amores que se perdem
e outros lugares-comuns
não vale a pena lutar
contra os lugares-comuns

aí a notícia
de que depois de amanhã
só faltam oito dias para receber

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

pés

é descalço que entras hoje no mar.
faz frio, muito, mas precisas da água,
de um sentido que o oceano pode dar,
à falta de um amor que te aqueça.
como os navegadores antigos
transportas um excesso de melancolia
que acreditas pode baixar
com a temperatura da água
e o vai-vem das ondas
e a cor pura da espuma
e os caminhos por descobrir,
que não se vêem ao longe,
ao longe só uns ilhéus sem gente
e com pássaros anilhados
por questões de controlo populacional.
o mar que hoje quiseste procurar,
o mar que tu queres,
é o que não quer o teu país.
a melancolia às vezes é isso,
ser rejeitado pelo mar
e aí construir futuros.

(escrito ao som de Povo que cais descalço, Dead Combo)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

terceiro livro das surpresas

«Lança o teu pão sobre as águas»
Ecl 11, 1

não te aproximes do mar
sem estares armado da confiança
dos que deitam nele a vida
com a esperança de que ela volta
uma outra e outra vez
como as ondas que vão e vêm
fracas e fortes e fracas
e não desistem de trazer de novo
aquela tampa de plástico
que trazias no bolso há dias
sem saber porquê
talvez as ondas te tragam de volta
o pão o peixe o alimento
que lançaste ao mar
no dia em que desististe
de ser o centro de ti

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

mistérios da internet

coisas que se podem dizer por aqui num tempo em que já quase ninguém lê blogues e carrega em links: há um daqueles jogos irritantes do facebook em que já não mexo há que tempos mas que abro regularmente para mandar "vidas" às pessoas. dada a regularidade dos pedidos que recebo, acho que ainda ninguém deu por eu não achar piada nenhuma àquilo.

domingo, 4 de janeiro de 2015

calem-se

calem-se, palavras,
e dêem lugar aos silêncios.
calem-se tantas palavras
que têm servido de tão pouco.
diante de ti,
prefiro calar.