de pé na zona de fumadores
do aeroporto,
um cigarro à pressa,
o bilhete para o rio
no bolso da camisa,
um sorriso estranho
com a convicção
de que a actriz (atriz)
está solteira de novo
e os encontros fortuitos
acontecem.
um bilhete para o rio
e um e-mail a cair
no smartphone:
«confirmamos sua
inscrição na ix
convenção mundial
de produtores
de carne bovina».
um sonho de um
encontro com a actriz (atriz?)
que não irá acontecer.
apago o cigarro
num vaso cheio de pedras,
procuro "chico beatriz"
no spotify
e corro para a zona de embarque.
aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.
Pesquisar neste blogue
domingo, 20 de dezembro de 2015
pão de açúcar
sábado, 19 de dezembro de 2015
uma notícia no correio da manhã
segundo um estudo
de uma universidade
norte-americana
dezembro é o pior mês
para fazer anos.
dito assim,
como se o dia de aniversário
pudesse ser escolhido.
podiam ter aproveitado
o tempo investido
para provar cientificamente
que não dão resultado
os amores que surgem
no inverno:
se te apaixonares agora
pode gelar-te
o coração.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2015
ao escritor desconhecido
na outra margem do danúbio
ergueremos de novo
o mundo
que a poesia
dia após dia
faz desabar
sexta-feira, 4 de dezembro de 2015
silentium
fossem na torrente
há uma planta a nascer
no carvão
um lugar ainda
para a esperança
sábado, 14 de novembro de 2015
we'll always have paris
falará o silêncio.
nestes dias faz-nos falta
a esperança,
um olhar que veja
a possibilidade da paz.
na cidade da luz
há-de erguer-se de novo
uma luz.
vivei, povo,
é a melhor resposta possível.
segunda-feira, 9 de novembro de 2015
Uma moeda em Sarepta
Saí à rua, naquele dia
- era o tempo da fome, ainda te lembras? -,
passeando uma moeda,
a última moeda,
por entre os dedos,
dentro do bolso direito.
Encontrei-te a meio da viagem,
quando me pediste um café.
Era o tempo da fome,
a última moeda,
eras o meu amor.
Paguei-te um café
em troca do meu amor,
dei-te tudo o que tinha.
Naquele beijo
frente à escadaria do mercado
a certeza de que iria sobreviver
(nunca to disse mas com aquela moeda
iria comprar cigarros avulso
que fumaria antes de esperar,
vagaroso, que viesse a morte).
terça-feira, 3 de novembro de 2015
finisterra
para levar a cultura
aos filisteus.
o meu plano (perfeito, dizia eu)
viu-se gorado
quando o primeiro barco
saiu rumo à península
dos iberos,
esse lugar onde a terra acaba
e começa o nevoeiro.
sabedoria
ainda essa frase a vir à cabeça,
como se estivesses com ela em berlim-leste,
descobriste que ela agora vive nessa cidade,
não sabes se em berlim-leste
mas gostavas que em berlim-leste,
que berlim-oeste não casa bem com o poema
[berlim ocidental talvez],
a esta hora volta ainda a excitação
do primeiro amor,
quem ainda se lembra do seu primeiro amor
levante o braço e core,
e pensas e voltas a pensar
e o amor não se pensa
e afinal não querias nada estar com ela
num apartamento de três assoalhadas
em berlim-leste, nunca gostaste de comunistas
nem alguma vez estiveste em berlim,
dizias-me ontem que o teu encanto pela alemanha
se esgota nas torres das igrejas da baviera.
o lugar que desejas, hoje, é a outra margem,
dizias-me, do tejo ou do bósforo,
não o sabes bem.
com que companhia, creio,
também o desconheces.
sabes que com quem te lembre
o ardor bom que te despertava
a rapariga de berlim.
segunda-feira, 2 de novembro de 2015
a letra r
construir um poema
com um rapto, um repto e um réptil.
no entanto,
preocupo-me agora
com um rato que ciranda pela cozinha
e que persigo com uma vassoura na mão.
nunca aprendi com os gatos a arte da caça
e serve de pouco, nestes momentos,
o que aprendi num compêndio velho
sobre argumentos para persuadir um inimigo
a abandonar a sala.
tertia passio
em que te podes apaixonar por um país
pensa que pode haver um dia
em que um país
se apaixone por ti
terça-feira, 13 de outubro de 2015
#liberdade
O Homem, criado pela Palavra,
não vive só de pão.
Que quando te obrigam à fome
a liberdade sirva de alimento.
domingo, 27 de setembro de 2015
vita brevis
a pergunta que chega,
de repente,
na solidão silenciosa da noite:
há vida antes da morte?
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
carta desde a solidão
a noite cai, assim,
quando as lágrimas teimam em cair
sem porquê.
há uma angústia qualquer,
sempre uma angústia,
que teima em pairar por aqui,
em servir de tempero
à esperança que ainda quer
governar-me e indicar caminhos.
que a esperança vença em azul
e que haja uma caixa velha
onde se possa guardar a angústia,
é a minha oração nocturna.
quadro em tons de sépia
Tudo o que me disseste:
«Eu sou a porta».
Um dia encontrarei
a casa
onde me esperas.
domingo, 20 de setembro de 2015
a lua já não ilumina
cansados, abatidos, tristes,
sós, sem rumo, sem nada,
para onde havemos de ir
agora que não encontramos
luz? agora que todo o brilho
que ainda chegámos a ver
se esconde, foge, rejeita-nos?
é nestes dias em que custa
que mais deve valer a pena
crer na possibilidade
de um caminho
quarta-feira, 19 de agosto de 2015
civitas
ainda nos falta a coragem
para sair de casa
à procura da cidade.
o medo de encontrarmos
apenas
os salgueiros que ladeiam
as margens do rio que a circunda
teima em invadir-nos.
faz crescer em nós, Senhor,
a vontade de encontrar
o teu Templo dourado
que se eleva no alto das colinas.
sexta-feira, 14 de agosto de 2015
to choose
era mais fácil
construir um poema
sobre a pornografia
e o desejo carnal
concretizado algures
num beco escuro.
escolhi, contudo,
erguê-lo dentro do som
da brisa da tarde,
de imagens mais difíceis
mas mais verdadeiras.
quinta-feira, 30 de julho de 2015
Vivo eternamente em Saint-Tropez
a esta hora e nesta solidão
não dá para achar a praia bonita
nem para não temer la mer,
esse mar que só por nós,
navegadores, é tratado
como um homem, um adversário.
ao longe há umas senhoritas
a percorrer o areal
levando vestidos retrô
e sandálias douradas na mão.
parece que elas
não têm medo do mar ou das ondas
ou do que a areia esconde.
o meu medo estranho
é sinal da minha cobardia,
é que nunca tive especial compaixão
pelos pescadores.
terça-feira, 28 de julho de 2015
Beira
esperava-se o futuro.
isto foi antes, muito antes,
da enxurrada que a destruiu
não deixando
pedra sobre pedra.
ainda há, contudo,
quem acredite
que a vida se reerguerá
e será possível, de novo,
guardar silêncio
à beira do rio.
terça-feira, 14 de julho de 2015
(um) amanhã
aos dias de dor e tristeza
sucederão
tempos de luz e festa
ainda uma última
casa para a esperança
passeio de bicicleta
era tão fácil roubar-te essa ideia
de querer ser um pássaro
e poder voar,
dá um verso tão chamativo
e emocionante.
a noite vai longa
e eu queria ser o meu gato
a vaguear pela casa
e a miar por comida
e festas no lombo.
tu nem sabes que eu te leio
mas, se um dia o souberes
digo hoje, com uma imagem feia,
que me farias ronronar.
levar-te a voar,
no brilho dos olhos
e no calor de mãos partilhadas,
seria uma hipótese a considerar.
quinta-feira, 9 de julho de 2015
statio
na estação dos comboios
da minha terra
como tendo sido, um dia,
nova e movimentada.
sempre um lugar perdido
ao fundo da encosta
e resguardada, guardada
por árvores frondosas
com ar velho.
enquanto desço o carreiro
que conduz à estação e,
por ela, lentamente,
ao mundo todo,
envelheço à pressa
e tudo é western,
senhoritas a abrir a sombrinha
ao deixar a locomotiva
acompanhadas de seus cavalheiros
(a locomotiva assobia
uma melodia de órgão de tubos),
cavaleiros de espada em riste
à conquista do castelo.
chegado à estação
só queria que estivesses aqui,
que me desses a mão,
que os teus olhos vissem isto,
que nos sentássemos na plataforma
e apoiasses a cabeça,
de novo,
no meu ombro.
quarta-feira, 8 de julho de 2015
pastel de nata
em certas ruas
o amor corre depressa demais
escorregadio demais
para que o possamos agarrar
por esses lugares
passamos tão acelerados
que nem dá tempo de parar
para pensar no assunto
ou olhar com olhos novos
a beleza de um prédio art déco
segunda-feira, 6 de julho de 2015
esquerda insatisfeita
passava tudo por um reencontro
entre a música ambiente
e o ritmo do coração.
uma tarefa custosa,
demasiado difícil,
um encontro mais
entre o que nunca veio
e o que está por fazer.
a jarra com flores murchas
ao canto da sala,
a memória de uma melodia
assobiada baixinho
pelo avô.
sexta-feira, 3 de julho de 2015
wind blows
quando o mundo arde?
que terrenos pisar
quando é obrigatório
andar sobre escombros
em chamas?
onde se esconderá ainda
uma via silenciosa
e pacífica?
uma última alternativa:
escolher como caminho
o ponto para onde
o vento sopra.
segunda-feira, 29 de junho de 2015
far islands
a ilha sobrevivia ao arquipélago
e exalava uma vida diferente
e ao mesmo tempo estranha:
nunca havia sido pisada pelos homens
e a sua paisagem estarrecia
mas como que se afastava.
impossível como a ilha
é registá-la com o olhar.
betadine
o ruído do vidro no balcão de pedra
confundia-se com o fumo abundante
e com as poucas conversas
que ainda havia por ali:
o ritmo das sementeiras e das colheitas,
a vida dos presentes e a morte
tão constante por ali,
assinalada pelos sinos,
identificando crianças, mulheres e homens.
o sol entrava pela janela,
cortando uma estranha escuridão,
e iluminava copos, um alguidar,
dois barris e um jarro de vinho.
no páteo três pessoas, desinteressadas,
jogavam chinquilho
e confiavam no amor.
sexta-feira, 26 de junho de 2015
despertar
com a sensação de ter ouvido
um grito lancinante de dor
que era tão estranho
quanto a solidão constante da casa.
percorria os quartos vazios do paço
em busca de um sinal qualquer,
de vestígios de uma presença,
de marcas físicas
que o som pudesse deixar.
a verdade é que nunca encontrei,
sentei-me na cama fria
do quarto dos fundos
e abri em pranto profundo.
pois é, ainda hoje acordo
com os gritos horríveis
que o meu avô
me passou em testamento.
uma herança de merda.
quarta-feira, 24 de junho de 2015
a palavra de mármore
entretanto o poema perdeu-se
porque me cansei de procurar
a palavra que lhe trouxesse
a necessária aura de perfeição.
que vocábulo, que verbo
servirá de companhia
para a ideia sanguínea
dos desamores escondidos?
não é fácil, nada fácil,
assumir que ele não existe.
a realidade, no entanto,
eleva-se, assim, sem mistério.
domingo, 21 de junho de 2015
novecentos
para limpar a vida,
uma toalha eficiente
como as que limpam o suor
e as mãos pegajosas
dos desportistas.
até lá vamo-nos purificando
com os passos incertos
de uma peregrinação
sem destino.
fotografia analógica
que imagem
para registar o calor?
o cair terno da noite.
que imagem
para registar a angústia?
tu. sempre e só tu.
last kiss
um último beijo
que ficou por dar
cede lugar a
uma alegria contida
com os teus pequenos
mas variados insucessos.
é a vida a andar para a frente,
uma mentira de que nos
convencemos, acho,
porque a vida está aqui
parada à espera
de outro amor,
um que seja a sério.
pedra sobre pedra
uma questão que surge,
de surpresa, no calor da noite:
com que pedras de que casa
construir ruínas sólidas?
sábado, 20 de junho de 2015
masters of war
a última das alegrias possíveis
no meio do horror da guerra
sexta-feira, 19 de junho de 2015
chico
já não há construções
a que se possa subir
como se fosse sábado
para ver a banda passar
a tocar canções de amor
já não há canções de amor
nem o amor, tão-pouco.
quarta-feira, 17 de junho de 2015
tango y libertad
ao meio-dia as ruas de san telmo
estavam sempre demasiado vazias,
muito sujas, também, muito sós.
ali, desconfiava juan, a vida far-se-ia
nas horas em que o azul celeste
misteriosamente se esconde
e os homens de buenos aires,
demasiado puros para levar
uma prostituta pela mão,
podiam dançar com outros homens.
juan, sentindo-se sozinho,
entrou num bar e pediu
uma fernet branca.
sob uma melodia de piazzola
a bebida talvez fizesse esquecer
o nojo que juan sentia daqueles
que consentiam na cama
quem nunca chamariam para dançar.
down jones
pensava Jones para si,
enquanto a guitarra
soava baixinho algo
parecido com blues
e tudo era, no bar,
a luz dos isqueiros
e o fumo de cigarros
enrolados à mão
e os dedos amarelados
de velhos a fumar
desde que se acabou
o tabaco de mascar.
Em Chattanooga, Tennessee,
já não valia a pena
esperar o futuro,
só por mais um bourbon
e o calor de amanhã.
A cidade era toda areia
e o pigarrear dos velhos.
Jones pagava dois whiskys
e subia a rua em pranto.
terça-feira, 16 de junho de 2015
sursum corda
na solidão da noite
a oração do monge
que ilumina a sua cela
com uma vela artesanal:
corações ao alto,
mãos cravadas
no fundo da terra.
sometimes, one angel
em noites quentes
ainda me vens à memória,
anjo nu que caminha
serenamente pela neve,
criando um contraste
entre a luz que se eleva do chão
e a tua pele tão morena.
aqui, na caixa de vidro escuro
onde escolhi ficar,
faço por esquecer-te.
a tua luz em mim
fere mais do que ilumina.
quarta-feira, 10 de junho de 2015
caderno de apontamentos do curador ferido
velho demais
para entender a linguagem das aves
ainda quero crer
que serei capaz
de transformar as feridas,
minhas e do mundo,
em pedras preciosas.
sábado, 6 de junho de 2015
versos para dois poetas e para a escuridão
o cansaço de estar aqui
às vezes cresce tanto,
chega ao tamanho
de monstros que não
podemos medir
que já não dá para saber
a que vazio nos
conseguimos agarrar,
que silêncios nos guiarão
nestes tempos de escuridão.
sexta-feira, 5 de junho de 2015
uma última valsa
quando começo a subir aos céus
é de um poema que me prenda à terra
palavras de urze e granito
quinta-feira, 4 de junho de 2015
A viagem de Herberto Helder
uma caixa de pampilhos
naquela tarde nas portas do sol
em que me sentei para ler
os passos em volta
à espera que, de repente,
Luiz Pacheco assomasse de novo
àquele banco de jardim
em que o maior dos poetas
lhe leu esse livro
de uma assentada.
O sol pôs-se ao longe
e, não fosse essa imagem
marcada em mim,
voltaria para casa
sem a invocação dos poetas
e sem a invocação dos amores.
O amador, ao rés das águas, continua
à espera da amada
que habita o alto das montanhas.
sábado, 30 de maio de 2015
Benjamim
um dia serei capaz
de me despedir
do medo
de ficar enamorado
pela luz dos teus olhos
hoje ainda é cedo
um tempo de trevas
que tarda em passar
mas é na aurora
que o mistério se esconde
por isso ainda vale a pena esperar
terceiro som
há uma luz que sobe
ao cimo das montanhas
e só tu o sabes
é um segredo bem guardado
que escapa a todos
os que decidem não sair do tédio,
não olhar o mundo
com olhos sempre novos
segunda-feira, 25 de maio de 2015
isto não é um poema (mesmo)
a beleza do mundo
e o que se esconde nas palavras,
caberia tudo aqui
mas isto,
lamento,
não é um poema.
ninguém sabe o que isto é.
corner
que companhia procuras
quando tudo o que encontras
é solidão pelas esquinas?
resta-te subir a uma árvore
e esperar
domingo, 24 de maio de 2015
atlas
de que vale a volta ao mundo
e tantos carimbos num passaporte
se nunca paraste para chorar
com um pôr-do-sol?
sábado, 23 de maio de 2015
ferida fétida
a noite avança
e ainda me dóis demais
ainda magoa
saber que não vais ler estas linhas
ou que não te vão fazer estremecer
isto são só versos de desamor
coisas parvas
como eu sempre
Versos para Flannery O'Connor
virá ainda o dia
em que a dor da fome
se transformará em maré.
(há sempre uma outra fome
que há-de saciar plenamente,
a fome do pão da vida)
os filhos de Deus ainda
esperam palavras de misericórdia.
esses famintos, profeta,
tens de querer saciar.
sexta-feira, 22 de maio de 2015
A destruição de Palmira
Não são só rochas que vão
quando as rajadas e as bombas
soarem sobre Palmira.
É a intelligentia mundi
a que julgamos pertencer,
a vida da mãe que percorria o fórum
com o filho pela mão,
a história dos homens
que esculpiram uma cidade
com a força das suas mãos.
segunda-feira, 18 de maio de 2015
there is a light
Diógenes ainda rompia
pela Acrópole cheia de gente.
Era o meio-dia.
As gentes olhavam
e apontavam-no:
«É o louco».
Tudo o que ele queria
era que a luz ténue e inútil
da sua velha lanterna
lhe apontasse um homem,
um último homem
disposto a morrer de amor.
sábado, 16 de maio de 2015
pirilampos
não há magia alguma
no nome caga-lume
mesmo quando eles
escolhem chocar-me
contra o peito
a meio do passeio nocturno.
houve um tempo
em que me espantava
com a luz dos caga-lumes.
uma diversão mais
a somar à contagem
das matrículas dos autocarros.
sexta-feira, 15 de maio de 2015
avis in civitate
houvesse ainda crianças
capazes de subir aos prédios
como antigamente às árvores
para observar os ninhos
e aprender uma forma carinhosa
de respeitar os pássaros
e ainda poderíamos
esperar um outro futuro
quinta-feira, 14 de maio de 2015
Nabucodonosor
virá ainda o dia,
sabemo-lo nas entranhas,
em que o menino
deixará a cova dos leões
para interpretar os sonhos do rei.
nesse dia sorriremos,
cantaremos canções de vitória
com as nossas harpas depositadas
junto aos rios.
virá o tempo de sermos felizes,
o tempo da verdadeira liberdade.
sábado, 9 de maio de 2015
não ames ainda as madrugadas
sexta-feira, 8 de maio de 2015
Fotografando Berlim
faz pouco sentido
colorir as imagens
de uma cidade destruída
por anos de bombardeamentos
anos de homens
a ser lobos dos homens
a não ver homens nos homens
a não ser homens
a senhora leva o filho pela mão
e os seus olhos não se elevam
dói demais ver de perto
o que conseguimos destruir
quarta-feira, 6 de maio de 2015
ponto de fuga
hoje decidi partir
em busca do lugar
onde há uma palavra que transforma
a casa é só solidão
desde que a deixaste
e é demasiado penoso
este ofício
de querer ser o mais pequeno dos homens
é pouco mais o que me resta aqui
livro de contas
já não é necessário
aprender uma caligrafia própria
para preencher livros vários
da área da contabilidade
como nas relações
a tecnologia vai tomando o lugar
do artesanato
ontem sonhei que ainda se exigiam
aulas e tratados de caligrafia
para quem escreve versos de amor
e poemas com contabilidade dentro
terça-feira, 5 de maio de 2015
décima noite
quis aprender do teu sorriso matinal
a deixar a minha antiga
obsessão pelas madrugadas
deixaste de me sorrir
continuei a não entender a noite
e tudo o que precede a madrugada
segunda-feira, 4 de maio de 2015
sistema de esgotos
a casa ruía, há muito invadida
por ratos e insectos estranhos
e ainda restavam memórias
daquela frase romântica
«o nosso amor cabe todo
no trem, o trem de cozinha da tua avó»
e era muito grande, sim, o trem da avó,
cheio de panelas de qualidade
e tachos apropriados para cozidos a vapor.
o que sei é que me sento numa esquina
da casa e, olhando em volta,
já nada disso interessa.
o trem foi distribuído pelos meus tios,
que se apressaram a vir buscá-lo,
uma herança é uma escola de abutres,
o nosso amor acabou, cabe todo
numa automotora da linha do oeste.
no trem que liga o rio a são paulo
nunca caberá.
dois zero quinze
nem me mintam
o quotidiano transporta
tantas coisas indizíveis
esconde tanto inefável
que não pode ser desvalorizado assim
domingo, 3 de maio de 2015
it's all about the light (luzes ii)
uma luz que vem de dentro
faz estremecer a noite
não abuses demasiado da luz
da tua velha lanterna
quando saíres na entremanhã
em busca de um novo amor
quinta-feira, 30 de abril de 2015
ela é mais sentimental
ainda falta um poema
para falar do que não se sente
os beijos não dados
que nunca se virão a dar
as noites de amor frenético
que foram passadas em solidão
a tarde passada sentado na cadeira do quintal
a olhar uma parede
o silêncio do som dos pássaros na província
que lembra o silêncio da tua voz
na mesa do café
naquele dia fugimos rua acima
com os nossos bolsos vazios
disso já só eu me lembro
segunda-feira, 27 de abril de 2015
candeeiro com berloques
o som das portas a bater
e o ruído incómodo da porta
que abria lentamente
para dissimular estalidos
escapou-se da casa
ao primeiro sinal
da luz da manhã
terça-feira, 21 de abril de 2015
Versos para Arvo Pärt
que o silêncio
te leve
aos sons que não escutas
que o silêncio
te conduza
a lugares que não visitas
sexta-feira, 17 de abril de 2015
excesso
era o poema a esgotar-se
no excesso de palavras
e os homens que já não subiam
ao cimo dos sicómoros
para ver aquele que passa
e traz palavras de redenção
as pessoas cansaram-se
de procurar a margem certa
e o brilho escondido
dos olhos de quem ama
quinta-feira, 16 de abril de 2015
Versos para Eduardo Lourenço
que livro escolherás
para aí procurar
uma palavra que abra caminhos
de salvação?
professar
não se escolhe ser homem-bala
não se escolhe a que trapézio subir
nem a escada que se descerá
de olhos vendados
deixemo-nos ir
pelos caminhos que nos escolhem
esperando godot
a verdade que descobriste
debaixo da cerejeira florida:
aquele que esperas não vem
talvez nunca chegue a vir
quarta-feira, 15 de abril de 2015
menos musical
quantos gestos são precisos
para destruir uma casa?
de quantas palavras precisas
para dizer o indizível?
assim se constroem tratados
o manuscrito perdido
o oriente que te interessa
é o das ideias longínquas
e dos incensos e dos mantras
de frases consoladoras
deixadas por um monge careca
num manuscrito com três mil anos
o oriente que morre sob bombas
com a causa estúpida da diferença de fé
esse não te diz nada
não tem monges carecas
nem manuscritos consoladores
é a terra que te ensinou a pensar
isso não deve ter valor
sono
e sairás de lanterna na mão
em busca da serenidade das madrugadas
uma coisa dessas que se ouvem nos fados
talvez consigas encontrar um homem
como o filósofo grego que os procurava
não à noite mas ao meio-dia
deve ser mais difícil encontrar um homem
que uma madrugada serena
ou o amor de uma mulher que cante
quinta-feira, 9 de abril de 2015
o banco
transporta demasiados sonhos
demasiados silêncios
demasiadas conversas
o banco envelhecido
do jardim em ruínas
se conversas e sonhos
ainda despertam interesse
dos silêncios ninguém quer saber
quinta-feira, 19 de março de 2015
valquírias
a verdadeira poesia
está toda no poema
que ficará por escrever
atenção que não disse
o poema não escrito
ainda não escrito
falei no que jamais
irão escrever
quarta-feira, 18 de março de 2015
domingo, 8 de março de 2015
David embala os seus netos
Ao som da lira
canta-lhes salmos
sobre vitórias na guerra
e derrotas no amor
«o amado não estava à porta.
morrerei de amor».
os dedos em sangue
são tão apaixonantes
os versos de violência
que quase nos esquecemos
dos versos de amor
quarta-feira, 4 de março de 2015
duas gaivotas na cidade
volta o sol da primavera
e os riscos que os aviões traçam no céu
duas gaivotas sobrevoam
os prédios do bairro social
ninguém as nota na cidade
ninguém teme tempestades no mar
boina escura
não faço parte de nenhum partido político
e só tenho a quarta classe.
como uma aguadilha com feijões de lata
aquecida num fogão de dois bicos.
sou um andrajo de existência,
palavras caras que aprendi
num dicionário de capa azul,
propriedade do meu filho do meio.
o dicionário tem páginas manchadas de saliva.
o meu filho molha os dedos
antes de buscar as palavras seguintes.
lê muito, o meu filho do meio,
relatórios e manuais que não
consigo entender. nunca leu
o romance que lhe ofereci nos anos.
nunca leu livros de poemas.
não conserva o respeito
pelo cheiro da província.
eu cá ainda sonho
com o som do arado a cortar a terra
e com o poema que isso transporta.
aqui, na cidade, sou um prisioneiro
que as palavras vêm, amiúde, libertar.
segunda-feira, 2 de março de 2015
o mês de março
levando a melancolia dos dias
e o poema que ela desperta.
cerejeiras em flor:
o mistério do recomeço.
não hão-de dar fruto,
as cerejeiras do japão.
um país que seca
faz dez anos por esta altura,
não sei bem em que tempo estamos.
vão-nos tirando o conservatório nacional
pedra a pedra, a cada pedra que cai.
tiram do mundo os livros que não se vendem,
antoinettes cortadas à guilhonita,
barbáries que nos passam ao lado.
dia a dia, esforço a esforço,
homens de gravata a queimar a cultura de um país.
«não nos tirem os copos grossos das tabernas,
não nos tirem o vinho, não nos tirem as tabernas»,
dizia o homem de lágrimas nos olhos,
«não nos tirem um país».
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015
18.47 and it's dark
triste projecto de vida
desperdiçar as tardes
em comédias românticas
e lágrimas escondidas
«if london is cool
they are in tokyo»
no encontro de ex-alunos
o safoxone confunde-se
com a voz inconfundível
de mark sandman
(ela também gosta de morphine
isso nunca irei perdoar)
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015
notas soltas para um romance
a minha rua cabe num prédio
da cidade grande
mas a minha rua tem muitas histórias
tantas quanto o mundo
e a história do mundo
cabe tanta coisa na sabedoria dos mais velhos
e nos livros para crianças
domingo, 15 de fevereiro de 2015
praça sintagma
sou só mais um
no meio da multidão
e não me diz nada
a beleza das fardas
e da marcha dos guardas
em troca de turno
o que me comove
é o povo que grita
palavras de esperança
elpizei, elpizei
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015
de fides
não se dobram perante os outros homens,
mesmo os mais poderosos.
Falo tanto de Ti, Senhor.
Evangelizo pouco de propósito,
estou sempre a evangelizar sem querer.
terça-feira, 3 de fevereiro de 2015
cigarros pretos
restou muito pouco
quando te foste embora
três cigarros pretos
num embrulho de papel
e uma dor que me dilacera
percorri a cidade a pé
à procura de uma paz qualquer
mas a dor não me deixa
fiquei sem os cigarros pretos
um drogado um caixote do lixo
e um embrulho de papel
amarrotado na minha mão
sexta-feira, 30 de janeiro de 2015
serenata
acordei demasiado atento ao som dos carros
e a querer calar o som dos carros
a fazer-me impressão o som dos carros
pareciam estragados todos os carros
deviam parar por três horas esta tarde
sem nenhum evento em particular
só para que pudéssemos parar
e no descanso silencioso
procurar um mundo novo
sem a angústia de andar sempre
por caminhos mesmos
quarta-feira, 28 de janeiro de 2015
nau
o espanto com o som
e a presença cada vez maior
dos corvos
pássaro feio os corvos
não percebo nada de ornitologia
para saber o que propicia
o feliz desenvolvimento de um corvo
sei que eles andam muito por aí
espero que não estejam à espera
de corpos mortos
para guardar em longas viagens marítimas
crítica do automóvel
cem metros para nada
que vai reduzindo com a idade.
hoje percebia isso ao ver
os passos que vão do bebedouro
ao portão da minha tia-avó.
a distância que nos separa
também vai aumentando,
tu sabes. não é com passos
que a meço. é com a falta
de corações, saudades
e todos os clichés
que me vão afastando de ti.
segunda-feira, 26 de janeiro de 2015
sétima noite
a compreender o frio
que dá aos que caminham
na noite da existência
não há um disco que se ouça
para encontrar sentido
para as mortes do mundo
dos dias de hoje
não há um profeta
que traga esperança
aos povos esmagados
pela pobreza
rezo pelo poema
que abra uma esperança nova
um mundo novo
que ainda possamos construir
(A Cidade de Deus, de Santo Agostinho
é uma realidade possível.
Trata-se, no entanto, de uma obra
em três extensos volumes,
na sua edição portuguesa.
Dá trabalho pô-la em prática)
terça-feira, 20 de janeiro de 2015
reticências
era um homem habituado
a andar em sentido contrário.
achava que as perguntas se assinalam
com pontos de interrogação
e as frases sem resposta
com pontos finais
ou sem pontos
(continua a não se compreender
quem usa poucos pontos
e muitas frases sem resposta).
o mundo abusa das reticências
e elas já não criam suspense nenhum.
quarta-feira, 14 de janeiro de 2015
limpar espingardas
que não vale a pena lutar mais
por amores que se perdem
e outros lugares-comuns
não vale a pena lutar
contra os lugares-comuns
aí a notícia
de que depois de amanhã
só faltam oito dias para receber
quinta-feira, 8 de janeiro de 2015
pés
faz frio, muito, mas precisas da água,
de um sentido que o oceano pode dar,
à falta de um amor que te aqueça.
como os navegadores antigos
transportas um excesso de melancolia
que acreditas pode baixar
com a temperatura da água
e o vai-vem das ondas
e a cor pura da espuma
e os caminhos por descobrir,
que não se vêem ao longe,
ao longe só uns ilhéus sem gente
e com pássaros anilhados
por questões de controlo populacional.
o mar que hoje quiseste procurar,
o mar que tu queres,
é o que não quer o teu país.
a melancolia às vezes é isso,
ser rejeitado pelo mar
e aí construir futuros.
quarta-feira, 7 de janeiro de 2015
terceiro livro das surpresas
segunda-feira, 5 de janeiro de 2015
mistérios da internet
domingo, 4 de janeiro de 2015
calem-se
e dêem lugar aos silêncios.
calem-se tantas palavras
que têm servido de tão pouco.
diante de ti,
prefiro calar.