blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

Pesquisar neste blogue

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

ao Deus que dança

O Deus dançarino de Niestche
é Aquele em que acredito
(O Deus morto por Niestche
o que não ressuscita ao terceiro dia
não é o meu Deus)

O meu Deus é o que caminha
nas estradas de Emaús da história dos Homens
que por eles morre e que os faz viver
que deixa o túmulo vazio e
que me põe a dançar,
como David,
em frente à Arca da Aliança

sábado, 28 de setembro de 2013

conversas hipotéticas (i)

ias-me dizer que é estranho que eu goste de ti e queira estar contigo mesmo sabendo que nunca vais querer ter nada comigo. ias-me dizer que o melhor é que nos afastemos e que não devemos falar mais e que tens namorado e que ele pode ter ciúmes. eu ia-te dizer que a coisa mais perigosa que te posso fazer é citar o cântico dos cânticos «raparigas de jerusalém se virdes o meu amado dizei-lhe que estou doente de amor» e que ele não tem que ter ciúmes porque nem deve saber o que raio é o cântico dos cânticos. noventa por cento das pessoas que conheces não sabem o que é o cântico dos cânticos. tu ias-me dizer que não queres que te cite o cântico dos cânticos e eu ia-me embora e pensava «porquê?» se a única coisa que é verdade é que estou doente de amor e quanto a isso não posso fazer nada, quer tenhas namorado quer não.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

onde é a estrada?

há caminhos que escolhemos
e caminhos que nos escolhem

estes são os caminhos do Amor
de todos os amores possíveis

querer escutar

para saber o que sentes
juntei o meu ouvido ao teu coração
(é onde a tradição põe os sentimentos)
só ouvi batidas
e nem sei se eram mais fortes

então trouxe à memória
todos os manuais de psicologia
e encostei o meu ouvido à tua cabeça
(porque, dizem eles, se sente com o cérebro)
não ouvi nada

por muito que esse silêncio falasse tanto
percebi que
tu és um mundo em que não consigo entrar

sábado, 21 de setembro de 2013

non sum dignus

és linda demais
para noventa e nove por cento dos homens
(por fora
e por dentro, onde as coisas são)

ainda mais para mim
que não sou nada de mais
nem onde as coisas são
nem onde deixam de ser

aviso zero um

a auto-ajuda pode matar.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

a inominável

deixei de dizer o teu nome
para tentar esquecer-me de ti

mas ele surgia-me imprevisível nas praças
nos nomes das ruas e das lojas
em combinações improváveis
em mensagens de telemóvel
nas cartas do correio

então aprendi que isso não resulta
e fiquei diante do milagre indizível do Amor

scala coeli

no início da escada que sobe ao Céu
uma inscrição:
«tira a mochila das costas
e começa a subir»

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

acreditas na vida antes da morte?

Revi hoje uma foto
do mural que diz
«será que há vida antes da morte?»

e pus-me a pensar que faço pouco essa pergunta
e que a devo fazer mais vezes
não é isso, também, a vida eterna?

a gaveta

quando perguntei ao poeta pelos livros que publicou e ele me respondeu que só tem um na gaveta eu quis pensar por breves momentos que ele guardava um livro na gaveta como recordação do que fez no passado afinal eu é que sou burro e o homem está-se a pôr a jeito para meter mais um livro no mundo .na verdade são três. se eu acreditasse no aborto dizia-lhe para não o trazer a este mundo pois vai ter muito que sofrer nas gavetas sofre-se mais com o pó mas sofre-se menos de amor

meditação da insónia

é difícil que quem escreve não seja aquilo que lê

o regresso

da incerteza dos verões
que se vai tornando,
ano após ano,
a certeza dos adeus não desejados
(que eles nunca cheguem)
vem mais um discurso de regresso

"eu, fulano de tal, de volta mais uma vez"     [volvitur orbis]

os Benvindos bem-vindos
e os que acolhem
não sei bem porquê
e os que não aparecem a dizer
"devias era ir morrer longe"
e me deixam a pensar
que a unanimidade é uma doença
que cresce e faz crescer a angústia
em mim

o caminho do regresso faz-se de
alcatrão
e terra
e pedras
e borracha
e assentos forrados de pele
e assentos forrados de napa
e assentos forrados de um pano de que não sei o nome
e assentos de plástico forrado de um pano de que não sei o nome
e música
e cartões
e dinheiro na mão
e pés
e nervos
e desejo de reencontros normais
e desejos de reencontros com que não se sabe lidar
e de sono que não há e devia haver
e de vergonha

o caminho de regresso faço-o eu,
como Córdula,
na solidão do meu coração
porque é lá que vos encontro

domingo, 15 de setembro de 2013

examinemos um homem no chão

Examinemos um homem no chão.
Testemos a transformação de um homem por terra
A sua natureza tão diferente da lava, a sua maneira mineral
De adormecer.
O que mais interessa é ver o seu lugar rodando para perceber o eixo
Que o move no mundo
Ou como pode a sua posição orientar as aves e os astros.

Interessa também a pedra que ele agarra como alimento
Ou que mão escolhe par lhe servir de funda
─ se é que não usa a própria boca para lançar o grito.

Examinemos a sua semelhança com um meteoro que cai
Uma fisionomia sem vocação para subir ao céu
O peso do seu corpo quando o nosso olhar o levanta.
Interessa perceber o íman que cria para nós um lugar junto dele
Um lugar dentro dele. Há um olhar que nos desloca -
A placa giratória do amor?

Interessa também o coração que ele agarra como fruto que colhe

Ou que veia abre no corpo para beber
─ se não é que é a pedra o que ele bebe com as mãos.

Examinemo-lo como quem sai de casa e vê o seu irmão
Examinemo-lo voltado, em viagem, a orientação discreta
De quem cava no peito a bússola.
Interessa reparar como tropeça no mistério
E se levanta a pedra para compreender.

Daniel Faria in Poesia, Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2003

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

ilusão/desilusão

todos os livros de auto-ajuda, aqueles que mandam viver atrás dos sonhos e que mandam que nos aceitemos a nós mesmos independentemente e contra os outros, deviam trazer no prefácio a informação de que quem se ilude é que está mais susceptível a desiludir-se.

viajante nocturno

pelo solitário caminho nocturno do bosque
é que vou
à procura do sentido da vida

ao fundo uma luz
terna, suave,
ilumina os estreitos carreiros
para me provar que não vou sozinho
e tenho para onde ir

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

o antigo conhecimento perdido ocidental

arrepende-te muitas vezes
pede perdão muitas vezes
chora muitas vezes

mas nunca apagues nada
não deixes para trás nada
do que a vida te trouxe

Oh me! Oh life!

O ME! O life!... of the questions of these recurring;
Of the endless trains of the faithless—of cities fill’d with the foolish;
Of myself forever reproaching myself, (for who more foolish than I, and who more faithless?)
Of eyes that vainly crave the light—of the objects mean—of the struggle ever renew’d;
Of the poor results of all—of the plodding and sordid crowds I see around me; 5
Of the empty and useless years of the rest—with the rest me intertwined;
The question, O me! so sad, recurring—What good amid these, O me, O life?

Answer.
That you are here—that life exists, and identity;
That the powerful play goes on, and you will contribute a verse.

Walt Whitman

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

luz ao fundo

depois de me ter enganado no caminho
e de voltar a trilhar pela pequena estrada
que me leva não sei onde
doem-me os pés

e a luz que vejo ao fundo da estrada
- gosto de caminhar de noite, quando já se vê o sol -
vai fugindo de mim
para me ensinar que o caminho não acaba