blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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segunda-feira, 25 de julho de 2016

largo pioneiros da aviação

dizia-me um amigo
que a poesia portuguesa,
ao contrário da espanhola,
está voltada para o céu.
diverge, portanto,
do museu do ar,
que está bem assente
no chão.

incêndios de verão

a mata que arde
a ser metáfora:
tu és
fogo que queima
em mim

domingo, 24 de julho de 2016

tempo comum (xvii)

podemos não saber ainda
a forma correcta
de preencher as nossas horas
e ser muitas vezes
assaltados pela dúvida
mas sabemos, Senhor,
que se houver ainda
um justo
salvarás a cidade
essa certeza
já dá força bastante
para guiar o caminho

sexta-feira, 22 de julho de 2016

paideia

Acho que não seria o mesmo
se não conhecesse os clássicos.
Se não sentasse Diógenes,
com a sua lanterna diurna,
à mesa do banquete de Platão
onde discutiria com Sócrates,
o maior dos heterónimos,
sobre o destino dos ossos
dos filhos devorados
de Chronos.

manual para cozinhar o futuro

quando a garota
de olhos verdes
se ri comigo
gosto de imaginar
que tens ciúmes.

imagino-te triste
e deprimida
com saudades
enquanto vou
com os amigos
tomar um chopp
junto à praia.

desejo que sofras,
que sintas o coração
pegar fogo
quando me vês
passar na rua
com a outra
e meus dois filhos
pela mão.

[sabes, mulher,
sofro por imaginar
que te ris com outro,
que fazes uma vida
sem mim, que és feliz
quando ele te leva pela
mão e te promete
uma prole numerosa.
e o meu coração
vai queimando
porque, estupidamente,
não me canso
de te esperar]

estas botas são para si

entrei na sapataria do bairro
à procura de umas botas novas
que aguentassem as águas
e o frio do inverno
(está calor, agora,
e já ninguém se rala com isso)
depois de procurar que chegue
e torcer o nariz aos preços
o sapateiro a topar-me
«tenho ali umas botas
mesmo para si»
como se um dos artesãos
fosse Deus
e pensasse apenas em mim
e no conforto dos meus pés.
umas botas de ir à fazenda,
a precisar de ser ensebadas,
realmente a minha cara.
dê as voltas que der
não consigo fugir à terra.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

segunda-feira, 18 de julho de 2016

domingo, 17 de julho de 2016

o livro em chamas

não, não podemos
dar mais porrada no filho único,
o único que nos resta.

- Raquel chora os seus filhos
que já não existem -

não, não há mais ocasiões
para explicar
o lugar onde quero plantar o Homem

não, não dá para esperar raízes
que desçam fundo e firme à terra
nestes tempos de escombros

domingo, 10 de julho de 2016

beneath the sky

por cima do céu
dois acordes perdidos
de uma guitarra desafinada
(já não há sol
também não fazia falta)

quarta-feira, 6 de julho de 2016

estação terminal

no fim de tudo,
no fim disto tudo,
aquilo que mais temo,
que mais devíamos temer,
não é a morte,
é a loucura.

febril

se ainda não cheira
suficientemente
a bafio
não chegaste
ao fulcro da fé
(dessa fé)

terça-feira, 5 de julho de 2016

académica

Há pessoas a insistir
que frequentaram
a escola da vida
porque, na verdade,
como sabia Sarai,
a mulher que riu
na cara de YHWH,
andamos todos aqui
a aprender a morrer.
Nem é preciso
matricular-se
na escola da morte.

ultra-som

incomoda este ruído
que passa acima
da minha altura

segunda-feira, 4 de julho de 2016

três segundos

para a rita

olhar para ti
já é estar em casa

aridez

deve ser isto um deserto
(só me falta a sede)
a incapacidade de encontrar
palavras com que jogar
a solidão contínua
que a vida virtual
não consegue disfarçar
ao fim da noite
sempre a angústia
ao pensar que pode
não haver a luz
que me prometeste

para explicar as flores

já não havia homens
dispostos a subir a rua
carregados de pedras
às costas
todo o esforço
era inútil
rejeitavam o édito
não nunca mais
não mais palácios
para o rei
não se sentiam
embora tenham dito
que pareciam
formiguinhas felizes
a subir o talo
de um gerânio
para alimentar
a rainha
e a sua corte

ar rarefeito

há uma raiva
a tomar o lugar
do coração
quando me lembro
que falta ao poema
uma palavra
que deixei escapar
entre os dedos