blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

(muito) pequeno

fostes à gruta ver um homem pequeno
fostes à gruta ver um homem de fraldas
fostes à gruta ver um homem e dois bichos
fostes à gruta ver um homem e os pais
fostes à gruta ver um homem pobre, sem nada
fostes à gruta ver um homem sem casa
fostes à gruta ver um homem quase sem ninguém
fostes à gruta ver um homem como podiam ser todos

fostes à gruta ver um Deus
fostes à gruta ver Deus
fostes à gruta ver a idiotice de um Deus que se faz homem
            numa gruta
fostes à gruta ver o Salvador do Mundo
           o vosso, o nosso Salvador

domingo, 22 de dezembro de 2013

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

tus cadenas

quiseste prender um homem com um cão
porque és burra

os homens prendem-se com olhares
e beijos e abraços
e risos e o tom da tua voz

alguns prendem-se com mamas
e outras coisas que não vêm ao caso

fotocópia

a sua fotografia no cemitério, avô
assusta-me e dói

não devia ser tão parecido
com alguém que vi tão pouco

agora tenho saudades
das conversas que não tivemos

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

como uma aparição de mim a mim

olhei a loucura nos olhos
parecia estar ao espelho
a ver-me por dentro
por baixo da razão
perto do lugar da ternura
e do amor

na loucura nasce a ternura

afagava a boneca e dizia «doutora, veja como sou carinhoso com a minha filha morta». já não chorava à noite com saudades da filha perdida num incêndio, desde que lhe arranjaram aquele brinquedo de longos cabelos loiros. «tão linda, a minha filha morta. tão calma que dorme nos meus braços. pegue-lhe, doutora, veja, quer-lhe pegar?» «não quero. sente-se melhor? estava a pensar reduzir-lhe a medicação. toma demasiados comprimidos, já não se justifica». «que bom, doutora. sim, agora sinto-me melhor, tenho de volta a minha filha morta. quer-lhe pegar, doutora?» «não quero». a doutora foi embora e pôs no bolso dois comprimidos. não queria pegar na boneca-filha-morta do louco porque lhe fazia lembrar o filho que nunca teve e sempre desejou. doem muito os filhos inexistentes, não se curam nem com mil comprimidos.

chorei cavalos

quando partiste chorei cavalos
não por ti
por um nós que já não é
que acho que nunca foi

era capaz de chorar mais pelos meus livros
talvez ame demais os meus livros
talvez os ame mais do que te amei a ti

devia fazer como o homem
que casou com a sua almofada
e pôr um anel em volta do Cântico dos Cânticos

os meus livros não partem
os meus livros não desistem
os meus livros não fogem
os meus livros não me deixam a sofrer sozinho
(se sofro é com eles)

hei-de amar o teu cajado

apaixonei-me por ele mal o vi
de cajado na mão e botins
as pessoas diziam-me «é louco»
mas para mim é lindo e falou-me
desviando o olhar das pedras da calçada
com que costuma falar
sei que é louco
mas lá dentro vejo um homem
além disso deve haver um amor também para os loucos
uma espécie de misericórdia e salvação
as pessoas diziam-me «é louco»
mas é meu
o meu príncipe desencantado

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

caminhos-de-ferro

se o pão e o queijo
que se comem em bancos de jardim
falassem
talvez dissessem do belo que é
ver passar comboios

hoje encontra-se mais romantismo
na observação de máquinas voadoras

ninguém quer saber dos velhos
que ainda esperam uma automotora
na estação em ruínas
para os lembrar do dia
em que ele se encantou
pela boneca de porcelana de olhos que brilham
que voltava carregada da feira
e ele não podia deixar partir

haverá sempre um amor que se prende ao chão
como ao chão estão presos os carris

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

carro voador

os inventores do mundo deviam criar um carro voador. um carro que me levasse onde quero, a quem quero. um carro que me tirasse dos engarrafamentos e dos condutores lentos que vão à minha frente. deviam criar um carro que fosse só meu, porque não deve haver congestionamentos de tráfego no céu e, apesar de tudo, talvez tenha direito a alguma coisa só minha. até me tenho portado bem.

profeta gago

a literatura bíblica está cheia de gente que não sabe falar
eu seria só mais um
também não sei o que dizer e tenho medo

talvez saiba escrever
porque as letras no papel ganham uma vida
já não são minhas
são do papel que as recebe
e de quem as lê

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

casas comigo?

certos dias espero o dia em que, engravatado, estarei à espera que entres com o teu vestido branco igreja acima ao som de um órgão de tubos. certos dias espero o dia em que passeamos pela praia de mão dada enquanto falamos do brilho especial dos teus olhos cor de avelã quando te ris. certos dias espero o dia de ir ao hospital buscar-te a ti e ao nosso filho. certos dias espero o dia em que existas, acho que podes não existir, acho que o amor, essa forma de amor, me pode ter medo. a maior parte dos dias não espero nada. a solidão é uma filha de chronos que também vai devorando os seus filhos.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

recordar uma casa

volto hoje a uma casa onde já vivi
percorro-a sozinho talvez à minha procura
do que eu era do que eu sou e serei

nas salas da casa só há móveis
cadeiras armários quadros antigos
não resta nada do que eu fui

percorro a casa e não me encontro
queria ter o meu nome gravado
em todas as paredes

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

da minha gratidão

Feliz aquele que beija o ícone
em total piedade
sem nada pedir
José Tolentino Mendonça

tenho muito mais a agradecer
do que a pedir

agradeço o frio do dia em que olho moinhos
e o calor do dia em que contemplo o mar

handicap

devia haver um recolher obrigatório para os deficientes, uma hora a partir da qual não pudessem entrar nos centros comerciais nem nos teatros nem nos cinemas nem nos bares das pessoas normais. em alternativa devia haver centros comerciais e teatros e cinemas e bares só para deficientes. não devia ser preciso que nos cruzássemos com eles nos nossos caminhos, para não termos de nos lembrar que a vida é frágil e pobre e que não estamos tão longe de ser assim. ninguém está tão longe de ser assim. é fraca a linha que separa o génio da loucura.