blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

jazzy guitar

era de outro sentimento
que andava à procura,
uma luz qualquer que permaneça,
uma outra companhia,
um lugar onde me sinta eu,
não sei se paz, conforto,
se aquele sentido que está
mesmo quando dói,
agora dói muito a solidão,
saber que não estás,
nem à distância de um telefonema
chato, a meio da noite,
só para ouvir a tua voz.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

sábado, 15 de outubro de 2016

invólucro

em que três acordes
embrulhar estas palavras
para que entrem em ti
a ponto de deixar cicatrizes
no coração?

terça-feira, 11 de outubro de 2016

mendicância

o mendigo,
pacote de vinho
debaixo do braço,
pede-me uma moeda.

com o mesmo desespero
imploro pelo teu amor.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

a queda (falling)

o homem caía de um centésimo trigésimo andar
pelo caminho lembrava-se
de paulo de tarso
a cair após uma visão
e pensava que as quedas mais curtas
podem ser as que custam mais
e que nem todas as quedas
são como a sua
que termina na morte

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

tertia nocte

é por ti,
garota de longos cabelos doirados,
que espero
em todas as noites
em que o silêncio
teima em transformar-se
em solidão

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

rr: o reino rural

quando tiver tempo
e puder instalar um colchão
num abrigo para alfaias agrícolas
perdido numa daquelas fazendas
em que não se ouvem carros nem tractores,
só o som dos corvos em voo circular
e de javalis em corrida,
hei-de dedicar um livro
ao reino que vamos escondendo
sob toneladas de betão e tecnologia:
o reino rural, o meu reino,
aquele em que fui dado à luz
e que será sempre o meu.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

A primeira vez que entrei
na biblioteca nacional do Rio de Janeiro
ainda se caçavam baleias
na baía de Guanabara.
Na cidade
a fim de resolver problemas de família,
um palacete de herança
no morro do Castelo,
perdi-me ali de espanto
e amor.
Cada molho de silvas
que rebenta as janelas
da casa devoluta
corresponde a um poema meu,
talvez a cada um dos livros
do acervo monumental
da biblioteca do Rio,
junto à qual aluguei este apê.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

largo pioneiros da aviação

dizia-me um amigo
que a poesia portuguesa,
ao contrário da espanhola,
está voltada para o céu.
diverge, portanto,
do museu do ar,
que está bem assente
no chão.

incêndios de verão

a mata que arde
a ser metáfora:
tu és
fogo que queima
em mim

domingo, 24 de julho de 2016

tempo comum (xvii)

podemos não saber ainda
a forma correcta
de preencher as nossas horas
e ser muitas vezes
assaltados pela dúvida
mas sabemos, Senhor,
que se houver ainda
um justo
salvarás a cidade
essa certeza
já dá força bastante
para guiar o caminho

sexta-feira, 22 de julho de 2016

paideia

Acho que não seria o mesmo
se não conhecesse os clássicos.
Se não sentasse Diógenes,
com a sua lanterna diurna,
à mesa do banquete de Platão
onde discutiria com Sócrates,
o maior dos heterónimos,
sobre o destino dos ossos
dos filhos devorados
de Chronos.

manual para cozinhar o futuro

quando a garota
de olhos verdes
se ri comigo
gosto de imaginar
que tens ciúmes.

imagino-te triste
e deprimida
com saudades
enquanto vou
com os amigos
tomar um chopp
junto à praia.

desejo que sofras,
que sintas o coração
pegar fogo
quando me vês
passar na rua
com a outra
e meus dois filhos
pela mão.

[sabes, mulher,
sofro por imaginar
que te ris com outro,
que fazes uma vida
sem mim, que és feliz
quando ele te leva pela
mão e te promete
uma prole numerosa.
e o meu coração
vai queimando
porque, estupidamente,
não me canso
de te esperar]

estas botas são para si

entrei na sapataria do bairro
à procura de umas botas novas
que aguentassem as águas
e o frio do inverno
(está calor, agora,
e já ninguém se rala com isso)
depois de procurar que chegue
e torcer o nariz aos preços
o sapateiro a topar-me
«tenho ali umas botas
mesmo para si»
como se um dos artesãos
fosse Deus
e pensasse apenas em mim
e no conforto dos meus pés.
umas botas de ir à fazenda,
a precisar de ser ensebadas,
realmente a minha cara.
dê as voltas que der
não consigo fugir à terra.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

segunda-feira, 18 de julho de 2016

domingo, 17 de julho de 2016

o livro em chamas

não, não podemos
dar mais porrada no filho único,
o único que nos resta.

- Raquel chora os seus filhos
que já não existem -

não, não há mais ocasiões
para explicar
o lugar onde quero plantar o Homem

não, não dá para esperar raízes
que desçam fundo e firme à terra
nestes tempos de escombros

domingo, 10 de julho de 2016

beneath the sky

por cima do céu
dois acordes perdidos
de uma guitarra desafinada
(já não há sol
também não fazia falta)

quarta-feira, 6 de julho de 2016

estação terminal

no fim de tudo,
no fim disto tudo,
aquilo que mais temo,
que mais devíamos temer,
não é a morte,
é a loucura.

febril

se ainda não cheira
suficientemente
a bafio
não chegaste
ao fulcro da fé
(dessa fé)

terça-feira, 5 de julho de 2016

académica

Há pessoas a insistir
que frequentaram
a escola da vida
porque, na verdade,
como sabia Sarai,
a mulher que riu
na cara de YHWH,
andamos todos aqui
a aprender a morrer.
Nem é preciso
matricular-se
na escola da morte.

ultra-som

incomoda este ruído
que passa acima
da minha altura

segunda-feira, 4 de julho de 2016

três segundos

para a rita

olhar para ti
já é estar em casa

aridez

deve ser isto um deserto
(só me falta a sede)
a incapacidade de encontrar
palavras com que jogar
a solidão contínua
que a vida virtual
não consegue disfarçar
ao fim da noite
sempre a angústia
ao pensar que pode
não haver a luz
que me prometeste

para explicar as flores

já não havia homens
dispostos a subir a rua
carregados de pedras
às costas
todo o esforço
era inútil
rejeitavam o édito
não nunca mais
não mais palácios
para o rei
não se sentiam
embora tenham dito
que pareciam
formiguinhas felizes
a subir o talo
de um gerânio
para alimentar
a rainha
e a sua corte

ar rarefeito

há uma raiva
a tomar o lugar
do coração
quando me lembro
que falta ao poema
uma palavra
que deixei escapar
entre os dedos

terça-feira, 21 de junho de 2016

segunda-feira, 20 de junho de 2016

telephone

ríamos tanto
e trocávamos carinhos
e juras eternas
naquele telefonema
em que de súbito
se ouve o bater
de uma porta
e me transformo
em Beatriz

espero que,
ao menos,
ela seja tão linda
como tu
e que exista

deixaste de existir
em mim
quando escolheste
ser triste
com esse outro
que odeio
sem nunca ter visto
(dele conheço
só o bater da porta
e a ausência
de um beijo de boa noite)

sempre o teu nome

queria a arte e a coragem
para escrever versos
a falar da poesia
- é o que agora se faz -

mas não consigo
é demasiado difícil
pegar na caneta
e não pensar no teu cheiro,
riscar o papel
sem a memória
do teu sorriso
e dos teus olhos pequeninos,
desenhar as primeiras letras
sem lembrar outra vez
o teu abraço
e o calor das tuas mãos,
datar um poema
e passar ao seguinte
sem perceber
a falta que fazes aqui

ainda a infância

O teu Senhor,
como o teu pai,
só te pergunta,
quando regressas,
se esfolaste muito
os joelhos

sábado, 4 de junho de 2016

folhas caídas

já sei que o que digo em público
fica público.
ainda mais quando gravado
com o estilete implacável
das redes.
elevo, assim, um sentido
de coragem e inconsciência,
de especial força
para enfrentar opositores
e pedir perdão.

gun powder

um tiro não chegou.

na calada da noite
dois zagalotes
no crânio do poeta
põem o hotel
alvoroçado.

o quarto
agora silencioso,
a janela aberta,
uma cortina esvoaçante,
o revólver na camilha,
o branco dos lençóis
a confundir-se
com o sangue

jardins suspensos

desconheço ainda
o verso
que este poema
deixará por terminar

ideias gastas

resisto
a
desistir

sábado, 28 de maio de 2016

insónia

com sonhos
saídos das entranhas
com cheiro a flores
e beijos
a mãe cobre
os seus filhos
ao cair da noite

a vida secreta das estrelas

diz-me pouco a vida das rock stars
e os seus gostos particulares
sobre comida, toalhas
e exigências mirabolantes
nos bastidores dos concertos.

interessa-me mais
a bateria de light years
e aqueles acordes iniciais,
como isso me põe
de novo a descobrir o amor,
como aquilo me traz
o sorriso, o cheiro,
os olhos da Sofia:
your light made us stars.

sábado, 21 de maio de 2016

pH neutro

em conferência de imprensa
os inventores anunciavam
a descoberta de uma máquina
capaz de medir o pH das almas

nós ainda demasiado básicos
sem a acidez suficiente
para destruir a pedra
que nos esconde o coração

terça-feira, 10 de maio de 2016

atlas

à entrada de cada cidade
davam-nos um mapa
do tempo dos romanos

na sobreposição dos mapas
descobrimos cidades múltiplas
passado feito presente

com o mapa antigo
perdemo-nos nas ruelas
nesse desvio
acabei por encontrar-te a ti

sexta-feira, 6 de maio de 2016

apontamentos para escrita de canções

o caminho
por onde sigo
é o leito seco
de um ribeiro suave
onde ainda corre
uma melodia
que não sei explicar
mas lembra
a pureza das águas
e do som da tua voz

terça-feira, 5 de abril de 2016

peregrinus

por estradas esquecidas
caminho para o santuário

como se o cansaço
a que o objectivo final
dá sentido
pudesse pagar
o meu direito à cidade

sábado, 2 de abril de 2016

uma pedra a sorrir

na fotografia a cores
o cocuruto de uma cabeça
e uma pedra escura,
deprimem-me pedras escuras,
que estranhamente sorri.
sinto que é para mim que a pedra
se abre em sorrisos,
só pode ser,
porque te sinto
atrás da câmara fotográfica
a nem querer saber de mim.
preferia que me odiasses,
que regularmente disseses
que não queres nada de mim.
o silêncio, este silêncio
que não cabe nem às pedras
é que dá cabo de mim.

o tempo corre

ainda persigo
a grande velocidade
aquela pergunta
que tarda a surgir

sexta-feira, 4 de março de 2016

digging

devia exclamar
quando reconheço
que descobri um poeta

hoje já não consigo
já não me acelera
o coração

descobrir um poeta
é agora um exercício inócuo
tão indiferente
como uma tarde no sofá
frente a um televisor ligado
num canal de notícias

soube há pouco
que andam por aí
a queimar livros
- o cheiro chega cá -
isso ajuda a eliminar
o espanto com os poetas
que se deixam descobrir

bem-vindos a um não-lugar

as televisões paravam
se nascessem flores
porque um homem
ama uma mulher

mas é tudo ficção:
as flores que permanecem
são de plástico
e o amor é difícil
porque a maior distância
do mundo
é a que se cria
para separar
dois corações

quarta-feira, 2 de março de 2016

um rio que corre pelas tuas mãos

se ainda estivesses por aqui,
se hoje pudéssemos celebrar
mais um aniversário
do nosso amor,
mas, como sempre,
não estás,
pareces mais longe
que a morte
(e dói muito, a morte,
a primeira mão de terra
que cai com estrondo
sobre o caixão,
as lágrimas contidas
durante anos
que já não dá mais
para conter).
saber que continuas aí
a tentar ser feliz
com outro
enquanto aqui estou
pensando em ti
quando talvez já nem saibas
nada de mim, nem o nome
(ainda sei o teu cheiro bom
e o som agudo e lindo da tua voz
de bonequinha)
é como levar a mão à terra
e deixá-la enterrada
para sempre.
e para sempre
é tanto tempo...
não sei se aguento esperar
por algum sinal teu.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

liber

remexo nos bolsos
como se entre os trocos
para o café
pudesse encontrar ainda
a liberdade

à falta de encontrá-la
aí escondida
fecho a mão e sopro
com todas as forças
como se pudesse amarrar
um sentimento de ser livre

mas não houve nada

como há três mil anos
o Senhor não estava no vento
antes na brisa suave
que não desiste de correr
por entre as frestas da janela

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

mouraria

quando te encontrei
numa rua sem saída
carregavas nas mãos
um antigo mapa da cidade,
não um mapa que orienta,
dizias, mas sim um mapa
para te perderes,
para seres conduzida
onde nenhum guia recomenda,
para me encontrares a mim.

fuerteventura

saí na noite
à procura de um lugar qualquer
onde pudesse depositar a angústia
que ficou, que continua por aqui
desde o dia em que pedi que fosses
de vez.
ainda te amo, sabes, ainda te amo,
e também te odeio,
odeio esses cabelos ruivos,
os teus olhos fundos,
o teu cheiro, as tuas gargalhadas
quando ris sem parar.
tenho saudades tuas, amor,
mas preciso de te deixar partir.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

um fogo que arrefece

olhavamos abraçados
a casa em chamas
pensando que nesse fim
pudesse criar-se
um novo começo.
tu choravas copiosamente
lágrimas que anunciavam
a possibilidade do amor.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

fluminis

estava frio,
parei sozinho num miradouro
a olhar o rio,
como se a largura do seu estuário
me desse a resposta
à minha inquietação:
salvar um homem não pode valer,
por vezes, a salvação do mundo?
e o rio seguia calado,
trazendo outras perguntas:
«que espuma é esta
que turva o Tejo?»

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

declamação

qual a palavra mais capaz
de rasgar uma ferida no corpo
e marcar uma cicatriz na alma?

a dita ou a escrita?

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

criança

uso pouco a palavra criança,
não sou capaz de a usar.
talvez incapaz de ser criança,
de sentir uma criança interior
ainda tabula rasa e sedenta
e manipuladora e menos pura
do que a pensam, também.
talvez sem coragem
para observar uma criança
a sujar as mãos num lamaçal
e transformá-la em estória.
talvez demasiado desatento,
cego, surdo, mudo,
a precisar de um coração de carne.
um coração pueril,
uma criança futura.

veritas, veritatis

como pedra que atinge
em cheio o centro da testa
a verdade pode doer

que o sangue que escorre
não faça desistir

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

condensação

o som ridículo e irritante
de uma chaleira ao lume
como única memória
da nossa história de amor

depois que partiste
não consigo beber chá

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

soif

à noite batias-me à porta
para dizer
«tenho sede»

talvez fosse uma forma
de acabar com este vazio

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

uma rima para dizer a noite

naquela tarde disseste-me,
ia eu num autocarro,
que sou o sol radioso.
desde o dia em que
te mandei partir
que sou escuridão.

tivesse hoje
um mínimo sinal teu
e abria-te o coração.

sei que nunca
me darás o coração.
e fica ainda mais escuro.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

a flor que não nomeio

há uma ingenuidade
que me quer convencer
que não existe
uma palavra que transforma

no silêncio da noite
lembro-me que foi
com palavras
que te perdi

a realidade a impor-se

fight

dói muito
levar porrada,
todos os dias,
destes dias iguais

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

estrelas

o brilho dos teus olhos
o teu sorriso
tu
a memória que levei
quando parti
no primeiro comboio
da manhã

lá vem meu trem

dia de agradecer

p. a I.

passei anos a convencer-me
que fiz bem ao mandar-te embora.
tentei convencer-me, até,
que apenas te deixei ir.
talvez pelo adiantado da noite
não sei, como sempre não sei,
vou percebendo que errei.
não podia ter-te mandado embora.
não podia ter dito aquilo,
tudo aquilo.
devia ter calado. estar calado.
não há, como para agradecer,
um dia para pedir perdão.
dias para pedir todo o perdão
que mereces.
dias para que pudesses ler isto,
sei que não vais ler,
e para que te amolecesse
o coração
que eu empederni.
a bonequinha de porcelana
partiu-se e fui eu
quem a deixou cair.
certas noites custa
dormir com as minhas mãos.

desculpa.
mesmo que nunca leias isto
desculpa.

sábado, 9 de janeiro de 2016

nos quinhentos anos de morus

utopia não é mudar
o que rodeia o homem
como se a técnica
nos fizesse novos.

utopia é mudar
o homem
acreditar
que podemos ser novos.

envelhecer um papel com café

os cafés à tarde todos iguais
e eu a imaginar-me velho
numa esplanada
para ver passar os carros
como se essa vida
que ainda passa em frente
pudesse ser minha.