blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

Pesquisar neste blogue

quarta-feira, 30 de abril de 2014

the key

tenho as mãos manchadas de sangue
de um crime que não é meu
queria uma chave para o teu coração
não ma quiseste dar
(talvez um dia queiras)
encontrei uma chave para escolas
assim coberta de sangue
do sangue de um povo inteiro

segunda-feira, 28 de abril de 2014

sozinha

sozinha na estrada de chão
lamentas-te porque vives
sozinha num apartamento
na cidade grande e quase
nunca recebes visitas

agradeces estas saídas
gostas de ver gente e estar
com pessoas o homem
bêbado tem umas teorias
estúpidas que eu condeno
e tu perdoas pareces sempre
pronta a perdoar

sozinha na estrada de chão
sorris com a boca e os teus
olhos verdes tens uma voz
que sabe sorrir como que a
dizer-me também és sozinho
talvez haja esperança para ti
(para nós)

path

é hoje o grande dia
dia de juntar pedras
com que fazer de novo
uma via romana

somos uma legião
precisada de ter
estradas novas
por onde caminhar

sismo

o dia chegou e as pedras
tremeram. o altar do
templo antigo partiu-se
outra vez. das pedras
saíram homens já
não urbanizados selvagens
perdidos no meio da
selva comunidade
dos abalados peregrinos
de um destino que não
houve se queres destino
destapa as pedras
que ainda restam
faz com elas um
caminho põe-te a andar

perscrutação

quando vires chegar
a angústia na voz
de alguém reserva-te
ao silêncio. é o melhor
conselho que te cabe dar.

não entres em casa com
os sofrimentos dos
outros. sacode o pó
das sandálias. a
ti basta-te a
tua solidão.

arrumação

no poema há espaço para tanta coisa
talvez também para
sacas de cal carregadas com os dentes
cagalhoças de burro a arder
fogueiras de apoio feitas na rua
uma estima que não dá para entender
o sorriso de uma mulher
que depois de veres
descobres que escreve
e escreve bem

fricção

às vezes tudo surge
com um verso

às vezes um verso
devia bastar

poucas vezes basta
e as palavras ficam
para nos dividir

quinta-feira, 24 de abril de 2014

celeste dos cravos

(dos nomes com funções)

é a véspera do aniversário
da revolução
na praça procuro
a celeste dos cravos
quero usar um na lapela
ou na ponta de uma caneta
[a palavra é uma arma
mais cortante que uma faca
de dois gumes]
revoltas é
com a mulher dos tremoços
dizia-me o zé das couves
mãos sujas como as caixas
que lhe servem de banca
tudo coisas de tempos
que já lá vão
[que não voltem
não demos democracias
por garantidas
diz a mãe a um camara man]
a mulher dos tremoços
hoje não veio
já não lhe compro pinhoadas
vou procurar
a fátima dos bicos
celebrar a revolução
pode ser dar uso
a coisas que não mudam
com mudanças de regime

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Lv 11, 13

 não te alimentes de aves
imundas abomináveis
xofrangos e esmerilhões

mastiga antes o livro
um livro de poemas
que nunca ninguém abriu

um coelho a tocar mozart

o sol caía e era a tarde
havia ainda um longo caminho
a percorrer

a estrada é longa
não lhe vejo o fim

não queria caminhar à noite
há muitos perigos
sombras salteadores a solidão

mãos nos bolsos
um passo rápido mais rápido
um pensamento repetitivo
chamemos-lhe litania
«somos coelhos a tocar violino»

terça-feira, 22 de abril de 2014

de amore (a)

Os que amam são os que mais sabem de Deus; 
a eles deve o teólogo dar ouvidos.
HANS URS VON BALTHASAR

e o amor é esse
som primordial
que sai pelos campos
à tua procura

treina os teus ouvidos
para o encontro

festas

os teus beijos
vêm sempre acompanhados
de festas na cara
cócegas na barba
risos e festa e alegria
e lembranças que houve
e não serviram de nada
não servem de nada
não quero que te lembres de mim
se não mo dizes

domingo, 20 de abril de 2014

Pesach

Na manhã de Domingo
o sepulcro aberto
(já se havia partido
o altar do Templo
sinal de que os verdadeiros adoradores
sê-lo-ão em espírito e verdade)
de onde Tu sais
para mostrar que há sempre caminho
para os que amam sem fim
(no fim dos tempos permanecerá
o amor)

domingo, 13 de abril de 2014

não estás

na televisão um programa de entrevistas
com nuvens em fundo no cenário
e eu reclinado no sofá
choro com saudades tuas

por cima da minha cabeça
o meu gato dorme
e é feliz
os animais têm a sorte
de não sofrer por amor

duas nódoas (babete)

na camisa branca
duas nódoas
vinho e suor
e eu a pensar
nos lírios do campo
que andam nus
são tão lindos
os lírios do campo
não se preocupam
com a sujidade que fica
depois do almoço
(talvez seja isso
que lhes dá a beleza)

passagem inferior

a minha preocupação:

o sabor do lume
quando à noite
a despensa vazia

o sabor da solidão
quando à noite
a casa vazia

cavaleiro andante

perdi o meu cavalo numa aposta
na taberna escura ontem à noite
tenho de ir para a guerra a pé
perdi uma aposta
como me perdi nos teus ardis
nas ciladas que me montas
sem cavalo vou morrer na guerra
sei que vou morrer na guerra
como morreria por ti
sei que vou morrer por ti
(o meu Senhor morreu por mim
no madeiro da cruz
sou só um servo
não sou maior do que Ele)

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Portugal dois mil e catorze

fogem quando ainda estão em idade fértil
para um lugar onde ainda haja caminhos
aqui já não dá para os descobrir
(foram apagados por máquinas enormes
que os destruíram numa noite longa)

os que ficam são árvores sem raízes
se o vento vem leva-os também
para lugares distantes
que talvez não tenham trilhos

a esperança que resta
um salvador no espelho
uma luz num túnel fundo
de novo abril um novo abril
agora feito por gente a sério

um café às oito e meia

no teu olhar e nas tuas palavras
tantas inseguranças
às vezes queria ser
a mão que se dá
o abraço que se estende
a voz que conforta e
aponta caminhos
o cordeiro que vem a ti
para tirar os pecados do mundo
não sou
é isso
não sou

quarta-feira, 9 de abril de 2014

the first light

na esplanada o sol surge
tímido como tu
na mesa do fundo sozinho
um homem tosse
«não estou nada bem»
sai-lhe sangue pela boca

a morte é uma evidência
que não dá para esconder

catorze.trinta e cinco

o poema é uma missão
para gente obcecada
os mesmos temas todos os dias
os mesmos rituais

os poetas não trabalham por encomenda
não são máquinas de gelados
são agricultores de palavras
artesãos de silêncios que terminam

terça-feira, 8 de abril de 2014

sunset boulevard

um passeio ao pôr-do-sol
em completa solidão
gramática da ausência
de um homem a si mesmo
põe as mãos nos bolsos
como se tê-las escondidas
ocultasse a sua loucura
(sozinho à beira da praia
engole beatas de cigarros)

fazeres-te um homem

constrói o teu amor
sobre rochas imóveis
na vida um abraço
é uma aurora que desponta

autodomínio

os caminhos da montanha
não são sempre os mais íngremes
sobe o escadote até ao cimo
do armário velho ao fundo do corredor
talvez seja lá que está deixado
o amor que perdeste no verão

espaços: jardim

um banco de madeira partido
folhas de plátano caídas
caruma e pinhas
um trilho com rastos de botas
dois lenços brancos num silvado
um monte de tijolo e pedras
debaixo do roseiral morto
escondida a tua angústia

eucalyptus

as folhas secas
no chão molhado
podem fazer-te escorregar

águas termais

um homem
muitas coisas avariadas
dois pulmões
um cérebro
às vezes um coração
o termóstato é só uma delas
talvez a menor

segunda-feira, 7 de abril de 2014

armazém um

na sala escura papéis de facturas
espalhados pelo chão
a secretária do director
coberta de calendários
de anos anteriores
nas gavetas envelopes
com dinheiro que já não se usa
nas máquinas antigas
pó e serradura
de um tecto em ruína
a sirene ainda toca
de manhã à tarde à noite
restos de uma vida
que já não faz sentido

objectos: saco

com uma corda de sisal
um saco de plástico com água
pendurado em cima da porta
evita a entrada das moscas
na mesa ainda os pratos
com batatas bichos carapaus
uma memória de que já houve gente ali
hoje nem as moscas
só bichos que comem madeira
e se alimentam de comida
não há sacos que os afastem
nem papéis das finanças

objectos: musgo

um rouxinol que canta
num banco de jardim abandonado.
a beleza é um estado
imprevisível e exigente:
pára. treina o teu ouvido e o teu olhar.

cravos vermelhos

não há revoluções interiores
que se façam com cravos
na ponta de espingardas
(pides dispararam tiros
naquele dia
um exemplo desprezível
numa revolução perfeita)

a história de uma revolução interior:
três tiros no peito
de duas mulheres,
em cheio no coração.
um cravo ferrugento na mão direita
pregado pela bota
de um general na reserva.
atropelado por uma chaimite
no largo do carmo
um homem só.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

das luzes

à noite na cidade
as luzes vermelhas dos carros
e os nervos de não chegar cedo a casa
a angústia de chegar a casa e a encontrar vazia
(«não me queres
nunca me quiseste»)

à noite na aldeia
a luz amarela da lua
e os amigos na eira
de barriga para o ar
a olhar as estrelas
(«noite estrelada
manhã cagada»)

treze.trânsito

há na tua cara
qualquer coisa de infância
que te traz uma beleza especial

há no teu corpo
qualquer coisa de mulher
que anima os homens que passam

há nos teus olhos
qualquer coisa de loucura
que desperta algo em mim

nova manhã

adormeci ao som dos smiths
para sonhar com uma cidade
que se constrói de coisas que ficam
uma cidade de justiça
paz fraternidade partilha amor
uma cidade em que a liberdade seja
uma luz que nunca se apaga

revolução possível

acordo na madrugada
com uma canção
sobre amores que acabam

e a liberdade chega
mascarada de cravos  vermelhos
o povo sai à rua e canta
unidos não se deixam vencer

eu sigo os conselhos da rádio
e fico em casa
a pensar na canção que me acordou

depois do adeus
o amor é um cão ferido
que lambe as próprias chagas

quinta-feira, 3 de abril de 2014

eram as tuas mãos

era quase noite
e a carruagem do metropolitano
já não muito vazia
sentei-me e à minha frente
as tuas mãos
não eras tu mas eram as tuas mãos
fiz não sei quantas estações
a olhar as tuas mãos
bonitas pequenas
as unhas bonitas pequenas arranjadas
não saí com as tuas mãos
com as dela ela não eras tu
eram só as tuas mãos
isso talvez já fosse alguma coisa
que é uma estupidez
escrever poemas de amor
quando não há quem nos responda

quarta-feira, 2 de abril de 2014

flumen, fluminis

o rio da minha aldeia
nunca secou
já provocou inundações
já deu nas notícias
mas ninguém dá nada por ele
mesmo que digam
que lá passaram barcos
a caminho da índia
e outros lugares longínquos
onde já não importa ir
a não ser para passar férias
ou ver pobrezinhos
passar férias a ver pobrezinhos
eu também não dou muito
pelo rio da minha aldeia
que não é uma aldeia
é uma vila a minha aldeia
já dei mais por ele
quando ia sozinho
por estradas romanas
e antigos caminhos do bosque
à procura de companhia
para a minha solidão
que não me larga
se ainda dou alguma coisa
pelo rio da minha aldeia
é por isso
rio da minha aldeia
és companheiro do meu
silêncio

terça-feira, 1 de abril de 2014

flores de plástico

ao fundo da estrada monumental
uma casa pequenina
caiada de branco
é dela que sais
com os teus cabelos loiros
para correr pelas serras
à procura de flores roxas
que te enfeitem as orelhas
(a mãe não deixa pôr brincos de madrepérola)
um dia hei-de te oferecer uma flor
mas não sei qual
(crisântemos, cravos, margaridas, frésias)
prefiro flores de plástico
têm um cheiro mais natural
e combinam melhor com naperons
que tapam gira-discos
(um disco dos smiths. tindersticks.
tchaikovsky. verdi. o som do mar nas falésias)
e televisões a preto e branco
em que vejo filmes do tarkovski
e notícias de setenta e dois

treze de nisan

é triste a vida de um contador de histórias
que se esforça para captar a atenção dos seus ouvintes
hoje o passado não interessa
já não é nele que lemos o futuro
que buscamos respostas e caminhos
já não queremos contadores de histórias
antigas ou de ficção
queremos o três d e coisas touch
e rapidez e voragem e coisas que não façam pensar
o contador de histórias perdeu o emprego
agora é vendedor de aparelhos electrónicos
ainda tenta falar do dia treze de nisan de trinta e três
contar histórias de mortos e pedras que partem
e véus que se rasgam em templos hoje desaparecidos
mas não há quem o ouça
criem para isso uma aplicação móvel
grátis e fácil de usar