blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

Pesquisar neste blogue

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

sardanisca

tudo é caminho, assim o queiras
tudo é descanso, assim o queiras
tudo é movimento, mesmo que não queiras
diziam filósofos antigos
de civilizações entretanto perdidas.

no caminho que escolhes
a vida é sempre longe
e longe é um lugar
onde não sabes se te vais perder

quando escolhes caminhar
escolhes a indecisão

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

r., nome de mulher

bastasse-me sempre como hoje
o teu sorriso e os teus olhos grandes

gosto muito de olhos castanhos grandes, sabias?
e de morenas com olhos azuis naturais

tarzan taborda

todos te pedem que sejas forte
mas os teus cento e vinte quilos
não servem de nada
quando noite após noite
estás sozinho outra vez

quem és tu para aconselhar?

não passes demasiado à mesma porta
para que não desconfiem de ti
e te denunciem às autoridades

amores não assumidos não servem
a quem é acusado
de perseguição

terceiro livro dos perdões

no fundo ainda espero que me perdoes
quero ser perdoado pela verdade que disse
também pela verdade que não disse
pelas mentiras que possa ter dito
e pelas mentiras que não quis dizer
por todo o mal que fiz e faço
e pelo bem que em algum momento aconteceu
e pode estar para acontecer
um dia serei perdoado
pelo presente o futuro e o passado
(olha, isto rimou)
e por outras coisas que não existem

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

a natureza contra-ataca

as tempestades chegam sempre
para afectar mais as aldeias que as cidades
dizem nas notícias que hoje um raio caiu
sobre duas casas já desabitadas
feliz e infelizmente
e sobre uma árvore centenária
que ficará ali partida ao meio
como sinal de uma força
com que não podemos brincar
somos ensinados de pequenos
a ter medo respeito por estas coisas
porque ocorrem muitas vezes
nas cidades as pessoas não sabem nada disto
não têm árvores abertas a meio por raios
os serviços municipais não querem vestígios
de noites assustadoras assim
a tarde cai na taberna da aldeia
e os velhos não querem saber
há vinho tinto a sujar o balcão de pedra
e um som de fundo no televisor
como que a dizer sempre para dizer
que a provincia é uma melancolia qualquer
que teima em não ir embora

domingo, 21 de setembro de 2014

livro de caras (e outras imagens fáceis e secas)

não leves demasiado o intelecto
ao mundo fechado das redes sociais
a inteligência não casa bem
com cãezinhos, gatos, vídeos de gente a cair,
manifestos contra os touros e a favor da morte
das pessoas na guerra ou das que ficaram por nascer

o poema guardo-o em casa a sete chaves
ninguém vai dar por ele
não é uma canção moderna
a puxar à emoção
e ninguém precisa de puxar o lustro aos poetas
como àquele amigo a quem não dizemos nada há meses
mas a quem fica sempre bem fazer um like
(se isso é um amigo eu sou o sandokan
um tigre da malásia ou da malasia.
senhores passageiros com destino às antas,
zambujal, malasia e imaginário
é o autocarro à saída da garagem do lado direito)

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

estação arqueológica

à porta dos canais que levavam ao fórum
o guia turístico gostava de chocar as pessoas
«neste cidade os túneis sempre se construíram
à custa do sangue de escravos e prisioneiros»
depois seguia feliz e contente contando anedotas
e histórias divertidas sobre a língua latina
o menino dava a mão à mãe e seguia encostado
às pedras onde escorria uma aguadilha cor de barro
tinha medo que caísse a primeira pedra
e tudo de repente se desmoronasse
o que constrói com sangue com sangue se destruirá

quê

para quê escrever poemas que ninguém lê?
para quê amar se não tens a quem?
para quê o amor se não sabes como?
para quê o futuro se é sempre incerto?
para quê fazer perguntas se não há resposta resposta?
para quê buscar em tudo o sentido
se não há nisto tudo sentido nenhum?
para quê porquê para quê?

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

revolver

a espera às vezes dá esperança
às vezes mata

escolhe o lado certo do revólver
em que queres ficar

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

questão de querer

és tu quem eu quero
quando a noite traz
a mesma solidão de sempre
e me apercebo que não te posso ter
ponho na lista do pc
ou escolho no mp3
a mesma canção de sempre
«quero quem não posso ter
e isso deixa-me louco»
a sorte é que os loucos
são os preferidos de Deus
dizia São Paulo numa missiva
digirida aos cristãos de Corinto
gente que não era boa da cabeça

senta-te comigo

senta-te comigo, lídia,
à beira de um rio que não há
imaginemos juntos a água que houve aqui
ou poderia ter havido
imaginemos juntos um amor que houve
ou poderia ter havido entre nós

não chores demasiado, lídia,
com amores inexistentes
quem nem se chegam a perder

regato

é demasiado o esforço
dos que sobem o canal
contra a corrente
em solidão

terça-feira, 16 de setembro de 2014

outra estrada

à entrada do sinuoso caminho
que vai por entre árvores que se adensam
um aviso à navegação:
«não vás demasiado fundo
por estradas que desconheces»

uma questão de sentido

continua a perder-se o sentido dos teus textos
com frases demasiado longas

continua a perder-se o sentido da tua vida
com escolhas demasiado longas

se há coisas longas que ainda fazem sentido
são as tuas consecutivas esperas

primeiro livro das listas

nestes tempos pós-modernos
questões metafísicas que me invadem:

será que ainda há quem use listas telefónicas?
haverá quem as fabrique?
rezo todos os dias para obter uma resposta

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

reino rural

é mais fácil um sapo
subir um portão de zinco
do que um rico entrar
no reino dos Céus

coriscos

nascemos impreparados para a trovoada
por isso te escondes debaixo da cama
em posição fetal e tremes
à espera que os raios e os trovões passem.

nascemos impreparados para os vendavais
por isso te sentas no sofá antigo da sala
tapado com um cobertor velho
à espera que o vento vá.

tudo o que queremos é poder sair à rua
como se fôssemos felizes.

uma questão de amor

tenho muita estima
pela palavra amigo.

a palavra amor
temo que ela me tema.

a questão do amor
é uma questão de temor.

domingo, 14 de setembro de 2014

o que podes esperar de um poeta

do poeta esperas sempre frases certeiras
saídas sem erros e no momento certo
queres dele poemas a cada som que sai da boca
uma beleza gratuita que já lhe encontraste muitas vezes
aquela palavra que remoeu três dias e três noites
na tua cabeça que de repente se desocupou
é uma palavra dessas que no fundo lhe pedes sempre
como numa oração qualquer que nunca soubeste formular
não saber rezar parece um drama que passa ao lado dos poetas
não te passa a ti por isso vives este drama
como pedir ao poeta que diga agora uma frase qualquer
uma palavra que remoa noite e dia na minha cabeça
que mande embora estes pensamentos parvos
que sempre me ocupam as ideias
e para os quais procuro sempre resposta
em manuais de auto-ajuda escritos por farmacêuticos
ou homens irritantes de pêra esbranquiçada
não sei é isso não sei pedir ao poeta
não sei é isso não sei rezar nunca soube
ou então há poetas que são parvos
também pode ser só isso haver pessoas que são parvas
quase tão parvas quanto eu certos dias

sábado, 13 de setembro de 2014

um outro lugar

sempre o mesmo banco onde te sentas
sempre as mesmas nuvens negras
por cima de ti
sempre a mesma espera

um dia vão desaparecer as nuvens
tu sabes
o sol vai brilhar para ti
esperas contra toda a esperança

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

trinta moedas

na escura solidão da noite
que me vai consumindo todos os dias
aguardo boas notícias de caronte

todos os dias o espero
com um ramo de rosas na mão
para que ele me seja agradável

não há moedas que cheguem
no caso de ele descobrir
que a minha vida sempre foi uma mentira

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

guias para uma viagem pelo bosque

(levemente inspirado num texto dramático de José Tolentino Mendonça)

à entrada do bosque havia dois guias diferentes
com uma característica comum, a falta de visão.
john wolf esperava pacientemente por gente perdida
a quem o caminho sinuoso do bosque ensinava
a enfrentar o sempre sinuoso caminho interior.
jorge borges aguardava inquieto que chegassem
outros cegos para que se pudessem perder juntos
pelos trilhos que nunca ninguém percorreu.
john wolf saía todos os dias do seu abrigo
com grandes grupos de gente cheia de peso às costas
que no bosque acabava sempre por se encontrar.
jorge borges continua sentado numa cabana
a cantar fados e tangos com letras que falam de amor.
nenhum cego quer ser guiado por outro cego.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

versos para o céu aberto

descobri noutro dia durante uma conversa
que houve um português das ilhas
que aproveitou uma viagem ao continente
para fotografar o céu sem nuvens
coisa que nunca tinha visto na sua terra.
os portugueses continentais, nós,
somos uns privilegiados.
temos tanto sol.
paramos pouco para agradecer
o dom de dias sem nuvens
que não há naquela ilha.
podíamos fazê-lo nos mesmos dias
em que nos queixamos da chuva.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

novas oportunidades

é mais um dia de calor
e o suor escorre-te em barda
como sempre nestes tempos

não sabes bem se é do calor
se dos nervos que vêm
com as decisões difíceis

sentas-te à procura da calma
a tentar escolher a banda sonora certa
para um momento como este

a verdade é que isto não pede sons felizes
nem todos os tempos querem
que se escutem canções de amor

terça-feira, 2 de setembro de 2014

restos de nada

quando a noite cai
e ouves vozes ao fundo
descobres-te sozinho outra vez

talvez tenhas, como sempre,
a companhia da angústia
e de um sentimento de inutilidade
que não passa