blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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sexta-feira, 30 de agosto de 2019

sou um ladrão

acordo a meio da noite,
talvez mais um sonho mau,
e abandono a casa
sob o latido dos cães dos vizinhos,
vou à procura de uma bomba de gasolina
ainda aberta para comprar tabaco,
estou disposto a matar de amor,
isso de morrer demasiado gasto,
vamos morrendo aos poucos às vezes,
gritar contra o mundo, chorar nem sei bem porquê,
mas não.
a bomba está aberta, peço um camel soft e um café,
fumo ainda na área de serviço a ver o nascer do sol,
regresso a casa e deito-me.
a canção não terminou,
mesmo quando a vida é depressa demais.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Nas margens do Salgueiro

tudo rangia na casa velha,
outros diriam que a presença de almas antigas,
o bisavô a ver se a espingarda ainda no mesmo sítio,
mas são só as madeiras velhas do telhado
e talvez ratos a passear nos tectos do primeiro andar,
eram os dias os quentes
e fazia trabalhos de bricolage numa solidão desejada,
pedia que o silêncio fosse o fruto da estação
e era, finalmente a sós
como vai ser sempre

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

os cinco minutos centrais de silentium, de Arvo Pärt

tudo o que eu queria era acabar de ler um livro
que anda a meio há dois anos
e uma emigrante francesa com dois garotos
de repente a estabelecer-se demasiado perto
a martelar um chapéu e um guarda-vento
com um seixo que a água transformou durante anos
e alguém deixou o aqui
para as pessoas se aleijarem na areia,
os garotos a falarem uma língua cantada
e a jogar com uma bola pequena
demasiado em cima de mim
e falta-me o silêncio necessário para acabar o livro, talvez mais dois anos
com o livro a meio,
ao fundo o som do mar
como os acordes dissonantes
da canção que não me sai da cabeça
e talvez ajude a, de repente, encontrar um outro silêncio
que dê paz.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

a água a alisar seixos pequenos

há um velho a fumar à beira-mar
e não consigo reparar se tem onde deixar a beata
ou se a vai enterrar no chão
ao alcance da boca de crianças
e das mãos de outros velhos que ratam as beatas usadas
ou as engolem, como as crianças.
sigo para o passeio diário de pés na água,
uma rotina para quem detesta as rotinas
mas gosta dos pés na água do mar,
o mar traz sempre boas lembranças
da infância e de outros dias felizes
que estes não são apesar do sol
e de me tentarem convencer que o sol cria dias felizes,
reparo que estes calções da decathlon não têm bolsos,
se um gajo tiver vontade de mijar
tem de pôr as mãos nas ilhargas,
metros à frente um tipo aguarda que o peixe morda a cana
e tem as mãos nas ilhargas e as pernas dentro de água,
ou cruzar os braços e levar uma mão ao queixo,
como se a contemplar o mar sem fim
ou a pensar num assunto sério,
e na verdade todo o caminho é isso,
contemplar o mar sem fim e pensar em assuntos sérios,
desviar a rota das pessoas a fingir que felizes
e olhar para as raparigas como se alguma sorrisse para mim
e nenhuma sorri, a vida segue distraída
como se as pessoas fossem felizes e não são.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

grãos de areia a riscar vidro

não é só a incerteza quanto ao emprego,
é a dor da incerteza da vida
que não dá para transformar em poema,
que talvez quisesse transformar em poema,
mas o poema não é isso, não pode ser isso,
é sempre outro mistério do que isto
de chorar na praia sem porquê
e de voltar sempre aos mesmos insucessos,
às mesmas obsessões, aos mesmos versos dos outros
em que não é consolo nem conforto o que procuro,
uma companhia talvez, uma companhia certamente
porque no fundo do peito cimenta-se a certeza
de acabar sozinho e não saber se é injusto,
de acabar sozinho sem saber se fui eu que escolhi,
de acabar sozinho por isto de andar às voltas cá dentro
a querer justificar tudo e fazer tudo certo
e fazer tudo mal e não saber se faço mesmo tudo mal
e não ter a recompensa mesmo sem a esperar.
isto não é um poema porque os poemas escrevem-se à mão
e hoje não pude fazê-lo,
saí de casa sem o caderno e a caneta,
tentei escrever com os dedos na areia
mas o vento apagou tudo,
talvez isso se tenha transformado num poema,
essa minha vida num poema rabiscado na areia
que o vento leva, parece-me, de norte para sul.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

vanitas vanitatum

era a noite
e depois a manhã
sabias que era hora
de abandonar os poemas
e as inutilidades várias
de que a vida se constrói

interior intimo meo

estávamos para ali sem trocar palavras,
inventavamos umas banalidades quaisquer
para entreter o tempo,
para fingirmos os dois que não sabias,
lá bem no fundo de tudo isto,
que eu iria partir de novo para longe

dois cérebrozinhos

o professor interrompia a aula
para um parêntesis:
os adolescentes deviam deixar
de rabiscar corações nas árvores
e substituí-los por cérebrozinhos,
dois cérebrozinhos de mão dada.

não servem de nada as teorias
ouvidas nas aulas de ética
quando o que sinto é um fastio que não passa
e uma angústia enorme a saltar do peito

domingo, 4 de agosto de 2019

palmeiras e ciprestes

abandono a casa depois do jantar
deixando a mãe em cuidados
pensando que vou namorar
e não vou.
todos os dias paro o carro
na zona de descanso da autoestrada
e fico a olhar para as pessoas que passam
como se fossem felizes
e não são.
eles de mãos bem firmes no volante
a pensar na prestação do carro
que vai cair amanhã na conta
e tira a folga àquelas férias no campo
e elas de mão na cabeça a pensar
que não existe amor para sempre,
ao menos que se aguentem juntos
enquanto durar a prestação do carro,
que ao menos a prestação do carro
fosse para sempre para segurar um amor