blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

Pesquisar neste blogue

domingo, 31 de dezembro de 2023

uma árvore nua do lado de lá da estrada

há festa ao largo,
fogos de artifício e risos altos
nas casas ao longe.

procuro um lugar de silêncio,
uma casa onde ouvir o rumor do vento,
um banco de madeira para reclinar o coração

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Um tríptico sobre a vida de Cristo

há precisos vinte anos estava
do outro lado da festa

a vida é muitas vezes assim,
do outro lado da festa

domingo, 3 de dezembro de 2023

how to draw a perfect circle

a vida às vezes inútil
como um relógio a dar as horas certas
na casa abandonada
durante o passeio matinal 

sábado, 18 de novembro de 2023

um conto e quinhentos

transporto umas notas e moedas velhas no bolso,
mil e quinhentos paus para café e tabaco
no café da aldeia, enquanto ouço o som
das peças de dominó a bater contra um papelão,
na verdade já não há velhos aqui a jogar dominó,
mas ouço a memória dos velhos sentados aqui ao lado,
das conversas dos velhos sobre o clima,
as dores, o trabalho custoso no campo,
a infância difícil onde havia a fome e o frio,
para me lembrar que não sou deste tempo
e desejo sempre um outro lugar

terça-feira, 24 de outubro de 2023

uma perdiz à chuva

travo diante do amor
como um carro que abranda
enquanto uma perdiz se atravessa
a fugir da chuva

paro para contemplar o amor
como um carro que se encosta
para olhar um céu azul
a abrir-se no meio da tempestade

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

para o senhor do adeus do vale covo

é preciso treinar, como um músculo,
o nosso dispositivo interior
de detectar a solidão dos outros
e combatê-la com o poder simples
de um aceno ritual,
pontualmente às seis e meia da tarde

terça-feira, 3 de outubro de 2023

outra palavra para dizer o vento

já és só a memória aqui.
como uma lua cheia
escondida atrás das nuvens
numa noite com vento
a soprar rumo ao norte

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

uma cor vermelha a incomodar ao fundo da boca

com que outros verbos
nomearíamos as coisas do mundo
se também nós,
como em castelhano,
déssemos ao sangue
um nome de mulher?

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

tempus edax rerum

os meus discípulos, por muito que ainda me custe
pensar que um dia conquistei discípulos,
sentavam-se ao meu redor
e pediam que lhes contasse histórias
do tempo da fome.
citava-lhes livros para dizer que lá
era mais importante ter umas botas
do que uma fatia de pão,
que contávamos a água com a ponta dos dedos
e todos tinham os lábios secos.
era difícil conquistar os corações das raparigas
porque lhes havia sempre uma tristeza
a latejar ao fundo dos olhos claros.
e os meus discípulos encolhiam-se,
alguns choravam e davam as mãos
a quem estivesse mais próximo.
mas era o futuro, agora, o tempo próspero
e a esperança latejava livre
a explodir dos olhos claros

domingo, 13 de agosto de 2023

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

durme, durme, querida hijica

nos anos do desterro
construíamos um lugar de beleza
que os sefarditas registaram em canção:
sob as estrelas do céu
dormias para dar descanso
aos teus olhos cor do mar

terça-feira, 18 de julho de 2023

nó cego

a vida diurna distrai das dores,
la vita bugiarda degli adulti,
segredam as pessoas pelas ruas,
antes de se lamentarem das segundas-feiras,
como se as segundas-feiras não fossem um descanso
das mágoas da vida que nos invadem na noite
e nos consomem rápido,
é um nó na garganta que volta
e fica e fica e fica
e nos abraça até que adormeçamos
de cansaço

sábado, 1 de julho de 2023

viver no campo

sei que estamos avançados nos séculos
mas ainda me espanto
quando os candeeiros da rua
se acendem
ao cair da noite 

quarta-feira, 28 de junho de 2023

haikai datados

descolar da vida
como de um sofá de napa
num dia de calor

tirar um nome da cabeça
como esquecer o tema
de um teatro de revista 

quemas

um dia ainda haveremos
de arder
como por dentro de uma canção
com guitarras altas
e vozes que choram
a partir do interior 

quinta-feira, 8 de junho de 2023

sg filtro

quando se é adolescente e fumador
importa muito escolher a marca dos cigarros:
não tão mau que não preste,
não tão bom que os outros nos peçam.
era o único a usar daquela marca,
e ninguém ousava pedir,
à excepção de uma moça corajosa.
não sei se a coragem era um sinal,
sempre fui lento para os sinais.

domingo, 4 de junho de 2023

vostell

sobre um episódio de BBC Vida Selvagem acerca de cegonhas, tartarugas e atuns do Mediterrâneo 

uma cegonha constrói o seu ninho
na base de uma peça de arte
da autoria de yoko ono
(são carros velhos empilhados,
pode ser uma nave espacial
que nos leva ao passado
ou uma seta que aponta para o chão,
nós afinal sempre homens no chão)
e penso ainda um dia
construir uma casa sobre uma obra de arte,
fazer da vida uma instalação que valha a pena,
com restos de coisas velhas

besouro

há um besouro a levantar vôo
junto às mesas do parque de merendas.
o som metálico do bater das asas
do bicho, a romper por entre a caruma,
é ainda uma memória de ti.
soas a metal e dor
e queimas, ainda magoas
e queimas

domingo, 21 de maio de 2023

sábado, 13 de maio de 2023

coffee break

Dans sa misère, la Theologie regarde vers la porte
Michel de Certeau

a virtude de tomar café
à beira de igrejas
é que os sinos nos vão lembrando
que o tempo passa pelas nossas vidas
e nos avisam da hora do fim 

domingo, 23 de abril de 2023

bucólica

um grupo de estrangeiros
enfarda pães de queijo
numa esplanada frente à câmara municipal

ao passar por eles lembro
olhos azuis ao longe
talvez à minha espera
durante uma cerimónia de confirmação 

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Christós anéstê

a luz com que rompes
a madrugada nova
ilumina as minhas trevas
a ponto de as visitar:
uma porta para a redenção

sepulcrum

o lugar do silêncio
estará vazio
para ser também nosso

manhã de sábado

como uma nuvem
a atravessar o sol
em silêncio
ao raiar da manhã

Golgotha

há sangue e água
a escorrer do lado de um Homem
e um silêncio sereno
a romper as trevas

Ecce Homo

um rosto ensanguentado
que nos fala
sem o incómodo das palavras

prece décima sétima

encontrei o lugar onde
construir um homem:
no chão, ajoelhado,
de olhos voltados para os outros,
como um servo.
e, lavando os pés aos homens,
comecei de novo a história

Variação em Si bemol sobre o ícone do Salvador, de Rublev

ao fixar os meus olhos nos teus
entendo melhor isso de um castigo que salva,
de um amor que vence as trevas,
as minhas trevas e a minha escuridão,
e no meu coração pequeno
nasce mais uma flor,
é um malmequer no meio da erva,
para integrar a Tua herança numerosa

amarelo torrado

there is a light that never goes out (the smiths)

encontro uma luz ao longe,
a brilhar no meio
de um silêncio que sacia

da pacem

há uma paz verdadeira
a nascer do fundo da terra
como árvore da vida
quando desces à mansão dos mortos
e pegas pela mão
o nosso homem antigo

orla marítima

quando o mar está longe
perco-me na cor azul-acizentada
dos teus olhos felizes

quarta-feira, 29 de março de 2023

as patas de um cão a bater contra um portão de zinco

a vida às vezes
uma flor, não sei se
a magnólia dos meus sonhos
que habita o centro do claustro de um mosteiro,
se um lírio muito branco,
a crescer por entre as silvas.
dói-nos a vida enquanto pomos o foco
nos espinhos em vez de
na beleza das flores 

sexta-feira, 10 de março de 2023

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

soledad

por uma manhã apenas
abandonar o exercício inútil dos poemas,
trocá-lo pela violência de ameaças de suicídio
com que nos confrontam 
e a que as pessoas respondem com humor,
dos carros que apitam ao passar à porta
e não me levam a mim para um lugar mais longe,
mais dentro de mim,
para o claustro do mosteiro
onde a magnólia sobrevive ao sol
como sinal de um amor maior 

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

um coração em chamas

apontamentos da enciclopédia
de informações inúteis:
as laranjas não ardem,
linha que serve de muito pouco
quando também não se sabe que fazer
com a chama de um amor que ainda arde
contra a razão, sempre contra a razão 

domingo, 15 de janeiro de 2023

um homem salta para o mar em apúlia

a rapariga ansiosa partilha um carro
com o primeiro homem que amou.
ouvem 'sunny', no rádio, será acaso.
a rapariga torce os lábios
e percebe que já não mora ali.
contemplo a cena.
também a mim, acho, 
já faltam forças para o salto.
excepto no final dos filmes,
e nas coisas da vida que realmente importam,
o amor não salva ninguém
do medo de saltar para o mar
de uma altura que esteja além do razoável.
era o que dizia o meu primeiro amor.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

les papillons noires

no fim de tudo isto
restará a memória
de uma borboleta negra
queimada ao sol
no tablier de um carro velho

foi morta com um limpa pára-brisas
e recolhida com dedos cuidadosos 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

vôo circular

há um morcego aqui perto
a voar em círculos
ao redor de um candeeiro

vem-me escondido o desejo
de arrancar em círculos
rumo à lua cheia
que me saberá sempre a ti