blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Resto de solidão e resto de companhia

O capítulo vinte e um de um dos meus livros preferidos, a máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe, tem como título «precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia». Desde a primeira vez que li essa frase que me ficou na memória. Para uma pessoa que vive uma solidão mais ou menos voluntária, não deixa de ser marcante esta frase, pois qualquer resto de companhia vem iluminar a minha solidão.
De há uns anos para cá, habituei-me a viver sozinho. Não num sentido real, porque sempre partilhei casa com outras pessoas, mas num sentido mais espiritual. Desabituei-me dos afectos e aprendi a viver assim. Hoje percebo como isso me tornou uma pessoa difícil, com dificuldade em lidar com elogios, com abraços e com beijos e com essas coisas todas.
Nos últimos tempos, como nunca, e ainda que graças a uma conjugação de diversos factores exteriores a mim, tenho-me apercebido da fecundidade que a solidão afinal pode trazer (ainda que no meu caso possa ser [não consigo ainda discernir se será ou não] passageira), pois faz-nos valorizar ainda mais a companhia. Entre colegas do tempo do Seminário que são ordenados, amigos com quem saí (por acaso, por causa da ordenação dos colegas...), colegas de trabalho que falam comigo fora do horário de trabalho, têm-se sucedido marcas de companhia (as tais de que me desabituei: continua a não haver beijos, coisa que não me importa particularmente, mas tem havido muitos abraços e elogios à minha pessoa). E cada uma delas me surge como um milagre, como que a lembrar que a vida se joga hic et nunc. A minha solidão fez-me, mesmo, aprender que há sempre um resto de companhia. Que há sempre um amigo que gosta de mim, que há sempre uma colega que acha que vale a pena ouvir o que tenho para dizer, que há sempre um Deus que não me deixa e que - espante-se! - morreu por mim. Ressuscitou por mim. E tudo isso, por causa da solidão, me faz ver que quem ganha sempre é a companhia.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Invenções que a contemporaneidade esqueceu

não necessariamente invenções; globalmente, coisas


1. Gratidão (dizer «obrigado»)
2. Uso do imperfeito de cortesia («queria» em vez de «quero»)
3. Convenções linguísticas («copo de água» vs. «copo com água»)
4. Cintura
5. Cinto
6. Headphones
7. Silêncio (até no metro e nos elevadores há música)
8. Caridade/solidariedade (que já é coisa que se resume à época do Natal, de forma quase instituída)
9. Cultura/Arte
10. Ciência (em sentido lato)

A igreja-caravela

Finalmente está pronta a igreja-caravela do Restelo, dedicada a São Francisco Xavier. Trata-se de um edifício que ficará na história, no mesmo sentido em que fica a interpretação de Conquest of Paradise, de Vangelis, pela Banda Filarmónica Sanjorgense: quando olharmos para ela, vemos estampada a mensagem «Por favor, não volte a fazer uma igreja assim!»
O problema, múltiplo, repete-se infelizmente pelo Patriarcado de Lisboa a fora (falo do Patriarcado de Lisboa por ser a realidade que conheço melhor; provavelmente a situação multiplicar-se-á pelo país se não mesmo pelo mundo...). Além desta igreja-caravela, existirá a igreja-supositório de Miraflores e existem bastantes igrejas-salão, sobretudo na região Oeste [aqui, entenda-se por igreja-salão não o conceito que conhecemos da arquitectura e da história de arte, que é o de uma igreja com naves da mesma altura e que transmita uma sensação de amplitude, mas antes o de igrejas com salão de festas incorporado, como há em Campelos, no Outeiro da Cabeça e, fora do Oeste, na Cruz Quebrada, para deixar apenas três exemplos] - obras que, ainda que aprovadas pelo Secretariado Diocesano das Novas Igrejas têm muito pouco do que um templo católico deve ser. Uma igreja católica deve ser um espaço que possibilita o encontro comunitário, sem dúvida, mas também o silêncio. Deve ser um espaço que manifesta a grandeza e o poder de Deus, mas ao mesmo tempo deve ser simples e prática. Deve, sempre, fazer-nos cair de joelhos, mas fazê-lo por ser um local que nos convida à oração, não por ficarmos espantados com tamanha obra humana. Deve transportar-nos para o mundo de Deus e não fazer-nos louvar os homens que a fizeram (seja em que ponto da obra for, desde arquitectos, engenheiros, artistas que tratam da parte de imagens e alfaias litúrgicas, etc.) - exemplo disso é o Mosteiro dos Jerónimos, qualquer uma das Sés antigas ou o presbitério da igreja da Santíssima Trindade de Fátima (excepção feita à imagem do Crucificado, de gosto bastante discutível).
Além desta questão do respeito pelas normas arquitectónicas do que deve ser uma igreja católica, põe-se ainda a questão do valor monetário de tais obras. Se não deixo de concordar com a afirmação que muitos fazem de que só se faz, na Igreja, a construção de obras ou a aquisição de peças artísticas mais dispendiosas porque queremos oferecer o melhor a Deus, não deixo de achar triste que, independentemente de estarmos ou não em crise, se construam igrejas que sobrecarregam as comunidades cristãs durante décadas quando essas obras, muitas vezes, nem são as que mais beneficiam as referidas comunidades (trocado por miúdos, não acho que devêssemos andar todos a celebrar Missa em barracões com chapa de zinco, mas também não é preciso que as igrejas custem largos milhões de euros quando o seu valor arquitectónico, considerando o seu fim, está pouco acima daquele do dito barracão). Infelizmente, também aqui não faltam exemplos: a caravela do Restelo e o supositório de Miraflores serão só mais duas a somar a uma lista extensa, onde sobressai a igreja dos Pastorinhos de Alverca.
O terceiro problema, com o qual acabarei esta minha reflexão, é o de haverem cada vez menos artistas católicos, ou melhor, verdadeiramente católicos. Se os houvesse, teríamos mais gente a trabalhar graciosamente neste tipo de trabalhos, e com outro tipo de consciência do espaço que estão a criar. É difícil que uma igreja seja uma igreja se quem a desenha não saiba o que se lá faz e como se faz (como será difícil desenhar um centro comercial se quem o desenha nunca foi às compras nem deseja ir, por exemplo). É difícil desenhar um Cristo se nunca ouvi falar dele. É difícil desenhar o Céu se não sei que raio seja isso...
Assim, hoje como sempre precisamos de artistas católicos. Precisamos de católicos.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Preciso de explicações...

Um dia alguém há-de me explicar o que é, afinal, uma família católica. Amigos meus - que não deixarão de ser meus amigos por causa do que disseram, e espero que não deixem de ser meus amigos por estar a pôr agora esta questão... - identificam-se como oriundos de uma família católica, para depois dizer que durante uma data de anos não iam à Missa, ou que durante determinado período iam à Missa de quando em vez, quando dava mais jeito ou quando sentiam mais necessidade.
Para mim é difícil compreender estas famílias católicas que não vão à Missa, ou que só vão quando calha. É difícil porque nasci numa família verdadeiramente católica, onde se vai à Missa todos os domingos, onde se reza todos os dias... É-me difícil compreender que famílias que se dizem católicas justifiquem que não iam sempre à Missa porque não há celebração todas as semanas na sua terra, quando pessoas da minha família faziam cinco e seis quilómetros a pé para se encontrar com a sua comunidade cristã. É-me difícil compreender que pessoas que vão ser voz pública da Igreja tenham uma noção tão pobre e desrespeitadora do que é uma família católica. Assim, como convencer as pessoas a ir à Missa se são católicas indo ou não indo? Como falar da relação com Cristo como compromisso sério quando sou tão comprometido gastando o meu tempo com a minha comunidade ou ficando a dormir até mais tarde?
Eugénio de Andrade, no seu poema Adeus, diz que «já gastámos as palavras». Eu penso que nestes problemas das famílias católicas ou não católicas o problema é precisamente esse. As pessoas se calhar às vezes pensam mesmo que já gastámos as palavras e o melhor é poupá-las, mas estes são assuntos em que o melhor é não deixar nada por dizer para não criar equívocos e permitir leituras erradas. Se vieram de uma família onde se cultivam alguns valores da moral e da espiritualidade cristãs (ou seja, onde se reza e onde, globlamente, se ensinam os valores cristãos [respeito pelo outro, não ser vingativo, etc.]) digam que é daí que vêm. Agora não digam que vêm de uma família católica que não vai à Missa. Porque essa, que me desculpem, não é uma família católica. Ou é, se quiserem que entremos nos termos em que fala, a propósito dos «católicos não-praticantes» [a propósito, outra categoria fabulosa que continua a ser usada por pessoas do espaço católico, quando alguns teólogos já encontraram a expressão, a meu ver bem mais feliz, de «católicos culturais»], Valter Hugo Mãe: «como os que dizem que são católicos mas não fazem nada do que um católico tem para fazer, não comungam, não rezam e não param de pecar» (A máquina de fazer espanhóis, Carnaxide, Alfaguara, 2010, p. 181).

domingo, 20 de novembro de 2011

Aritmética episcopal

Trabalho feito por mim para o seminário «Leituras teológicas de Hans Urs von Balthasar», do curso de MIT em Teologia, avaliado pelo professor Nuno Brás Martins - 18 valores.

Mensagem de D. Nuno Brás Martins na sua Ordenação Episcopal, avaliada por mim - 20 valores.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Viagem ao país da técnica

a propósito do mais recente vídeo da revista sábado

Acompanhando as redes sociais, tenho reparado na indignação de muitos face a uma entrevista da sábado a universitários portugueses. Obviamente, também me sinto triste por viver num país de gente inculta, particularmente quando essa gente está em vias de obter qualificação superior. Mas, mais do que isso, sinto-me triste por viver num país onde, desde que se começou a ter uma verdadeira política educativa,  sempre se privilegiou a atribuição de diplomas em detrimento da instrução. 
Logo nos tempos do Estado Novo (período, de resto, designado por gente com formação académica como "Antigo Regime", sem que isso choque ninguém) interessava mais acabar, ao menos, a quarta classe do que saber, efectivamente, ler e escrever. Era importantíssimo saber os rios e caminhos-de-ferro das colónias ultra-marinas, ainda que se tivesse dificuldade em ler uma palavra trissilábica ou, de outra qualquer forma, mais complicada. 
À medida que a escolaridade obrigatória foi aumentando, a preocupação continuou a mesma: dar diplomas. Diplomas de 6.º, diplomas de 9.º, diplomas de 12.º, diplomas universitários. A esses diplomas nunca correspondeu efectiva aquisição de conhecimentos básicos (diga-se, sobretudo, ao nível da escrita e da leitura) nem muito menos interesse cultural. E esse é um problema grave, porque os que hoje formam já foram formados no mesmo sistema e são, eles também, e com muita mágoa o digo [sem entrar em generalizações, todos nós conhecemos felizes excepções a esta regra e graças a Deus que assim é!], gente que não domina bem a língua portuguesa e que não é particularmente culta. Façam perguntas de artes a professores de línguas, perguntas de gramática a professores de ginástica, perguntas de desporto a professores de ciências ou de religião a professores de matemática e logo verão as respostas.
O problema disto tem a ver com uma tendência para a especialização, embora hoje esta não seja verdadeiramente em nada (uma vez que se acabou com uma das poucas coisas decentes do sistema educativo da ditadura, o ensino técnico). Não se quer uma educação global e integral da pessoa e depois acaba-se com pessoas que não sabem nada: não chegam a ser suficientemente bons na sua área de especialidade e não se interessam por mais nada. Não lêem livros, a menos que sejam do jornalista da moda ou autobiografias de gente sem especial interesse, não vêem filmes de jeito, só ouvem música nas rádios comerciais, só falam sobre trabalho ou sobre as vidas dos outros.
Eu, que procuro o mais que posso fugir deste esquema, quer enquanto formado quer enquanto formador, acho que devemos dar atenção a estes alertas, antes que seja tarde demais para sairmos deste estado de miséria cultural e, por que não, espiritual.

Autobiografia (xiv)

ou

DISTÂNCIA ENTRE PENSAR E AGIR

o bloqueio que eu próprio vejo que tenho é, afinal, a tua possibilidade de ainda guardares um segredo

«Um calvário» - António Marujo a falar sobre esterco

Lindo, este artigo sobre o último "livro" de José Rodrigues dos Santos.



fonte: tribo de Jacob

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Em desacordo com o Acordo

Eu, pessoa que discorda da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990, aprovado por um Cavaco Silva que nem se lembra de o ter feito, não posso deixar de expressar a minha tristeza pelo facto de uma grande parte dos portugueses que estão contra a entrada em vigor das novas regras ortográficas só o fazerem por patriotismo bacoco - por que não mesmo por xenofobia e racismo! - e não por um efectivo respeito pela sua língua, que assassinam em todo o lado onde a possam escrever ou falar.

Afirmação necessária

Se este blogue já teve uma série de posts subordinados ao tema «Imagens que valem mesmo mais de mil palavras», não pode deixar de se referir aqui, inequivocamente e em maiúsculas, que UMA PALAVRA VALE MAIS QUE MIL IMAGENS. Só porque acho mesmo que sim, e sem querer falar no Lógos cristão ou na dabar hebraica. Uma palavra vale mais que mil imagens. Ponto.

Autobiografia (xiii)

ou

MÁQUINA INTERIOR DE ESTALAR

a um gesto da Idalete

Por fora sou Sexta-feira Santa,
por dentro Domingo de Páscoa, Ressurreição

Por fora sou cortejo fúnebre,
por dentro banda filarmónica numa procissão

Por fora sou um adulto triste [triste por ser adulto]
por dentro sou ainda adolescente, quero ser criança
                          [«Se não fordes como crianças não entrareis no Reino dos Céus»]

Sei que por fora muitos me devem achar triste
por dentro sou só foguetes a estalar

Por fora acenas-me alegremente ao longe
por dentro [acho que também por fora] esboço um largo sorriso
                           - a amizade verdadeira tem todos os sinais de um grande amor

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Da amizade como amor

Nos últimos dias tenho dado por mim especialmente lamechas. Habituado a viver como quem acha que um homem não se deve emocionar e deve guardar ao máximo os afectos, penso que isso tem a ver com o facto de, nos últimos tempos, me andarem a fazer várias declarações de amizade. Como as raparigas da escola fazem todos os dias sentidas declarações de amor aos seus machos latinos, a mim têm-me feito declarações de amizade. Dei por mim a pensar se estas declarações de amizade que me têm feito não são também declarações de amor...
Vivemos num mundo que estragou a palavra amor - daí alguns iluminados acharem que o melhor é não a usarmos mais. O amor hoje é entendido como coisa de namorados, de marido e mulher, de marido e marido ou de mulher e mulher - o amor é o sexo, e este nem sequer no seu sentido global mas apenas no que comporta de genitalidade. Eu antes prefiro ser o mais pequeno dos filósofos e o último dos românticos e achar que ainda vale a pena falar em amor. Vale a pena falar em amor sempre que este for uma de três coisas: Ἔρως, φιλíα ou αγάπη. Vale a pena falar em amor quando ele for uma destas três coisas, até porque quando ele é verdadeiro é as três coisas - desejo, ainda que não necessariamente sexual, fraternidade e caridade, dádiva gratuita. Vale a pena falar em amor quando se trata da amizade, porque o que temos pelos nossos amigos verdadeiros é verdadeiro amor - o que temos é medo de o assumir, porque ou o amigo é homem e passamos por maricas lamechas, ou a amiga é mulher e afinal não queremos amizade nenhuma mas antes outra coisa...
Dei por mim a pensar que se me fazem declarações de amizade é porque amo essas pessoas, até porque só algo maior do que eu - e há lá coisa maior que o amor (1 Jo 4)? - pode fazer com que alguém sinta apreço por uma pessoa como eu, que não é nem faz nada de extraordinário, que não é uma beleza de homem, que não é rico, que não tem amigos influentes nem nada dessas coisas que hoje interessam.
E foi assim que decidi escrever este texto, na esperança de que algum dos meus amigos o leia e saiba que eu o amo. Um amor sem nada de sexual, mas com tudo de fraternidade e de dádiva gratuita. Um amor que não é exclusivo - se um dia for exclusivo duvido que seja com alguma das amigas de hoje, já que sei que não será certamente com um amigo! - mas que é incondicional e sempre disponível. Um amor que me faz perder o medo de usar a palavra amor para poder dizer isso mesmo outra vez: amo-te.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

A amizade é o encontro

Uma pessoa que conheço diz que gosta muito dos bocadinhos que passa com os amigos, entre o fim das horas de trabalho e o regresso a casa. Eu digo que também gosto desses momentos. Não apenas porque são tempos de partilha de ideias, e por isso contribuem para fazer avançar o mundo, ou, se quisermos ser menos ambiciosos, a ciência, mas porque é aí que se constroem as relações.
Na filosofia, e na antropologia filosófica em particular dentro desta, aprendemos que uma pessoa é uma unidade indivisível de corpo, alma e espírito, e está marcada pela condição mais básica da existência, a limitação ao quadro espacio-temporal. Assim, não há encontro verdadeiro entre as pessoas que não seja físico, por muito que nos multipliquemos em formas de comunicação virtuais, que já usamos desde que foram inventados os primeiros sistemas de escrita e se descobriram as artes visuais.
A sociedade de hoje tira-nos muitos dos encontros físicos que dantes aconteciam, criando ao mesmo tempo cada vez mais artifícios para a amizade (desde os telemóveis às redes sociais da internet, etc.). Penso que seja por aí que se justifique a afirmação com que começa este texto. Qualquer bocadinho em que nos encontremos com um amigo é único, é tudo, é uma suspensão do tempo e do espaço - não fosse Deus amor e a amizade verdadeira uma forma daquilo a que os gregos chamavam ἀγάπη.
Por mim, digo que deixei de acreditar nas amizades que se valem de um primeiro encontro, ou de encontros que vão lá longe. A amizade é um processo, vai-se fazendo, faz-se nos encontros reais e virtuais (é aqui que servem os encontros virtuais, quando os reais não se podem proporcionar), não se faz num acontecimento passado onde houve identificação. Desisti de esperar pelos que não me respondem, por muito que criem mil e uma desculpas, e esperar antes pelos bocadinhos entre o fim do trabalho e o regresso a casa, esses onde se cria a civilização do amor.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Arsenal de guerra

O humor é a última arma de um homem
(ou) será antes o amor?

O humor é a penúltima arma de um homem
antes o amor.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Tempo da fome

 às pataniscas abandonadas

Todos os jornais e as notícias da tv anunciam: estamos em crise e é o tempo da fome.
No tempo da fome há pataniscas de bacalhau, intactas, nas papeleiras do metropolitano de Lisboa. No tempo da fome há pessoas que não comem tudo, nos restaurantes, porque estão saciadas. No tempo da fome as sobras das cantinas públicas têm de ir para o lixo - por estarmos em crise não podemos dispensar as regras de higiene e saúde pública! No tempo da fome emigrantes e sem-abrigo alimentam-se nos contentores do lixo do lidl - este é o tempo da lei, e as coisas, como as pessoas demasiado novas ou demasiado velhas, passam do prazo e têm de ser mandadas fora, ainda que na verdade consigam matar a fome aos homens que fazem de gatos vadios. É o tempo da fome, e os que fazem a caridade choram porque já lhes vai sendo difícil responder a todos os que, chorando, deles se aproximam pedindo, ao menos, um pão. É o tempo da fome, em que um telemóvel faz mais falta que um pão e em que um cigarro vale um maço de vinte sopas.
É o tempo da fome, e o homem sem pão esqueceu-se de que não vive só de pão mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus; esqueceu-se de que se vivesse alimentado pela Palavra teria decerto mais pão.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Desconstruir o Homem e não o texto

Com a alegria própria de quem sabe que a maior parte das coisas de que gosta são tesouros escondidos (tesouros porque as acho valiosas, escondidos porque, na sua maioria, não são do conhecimento geral, ou me parecem ser menos conhecidas do que deveriam) decidi, um dia destes, no meio de uma conversa em que me pareceu vir a propósito, apresentar a uma pessoa a poesia de Adília Lopes. E, mal os poemas chegam às suas mãos, comecei a ser todo desilusão. Percebi que ainda há muito quem não perceba o objectivo da arte contemporânea, e da poesia em particular.
A pessoa em questão, que ensina Língua Portuguesa, pôs-se a desmontar todo o processo de criação dos textos, dizendo-o ridículo, básico, e classificando-o como não-poesia. Seria, no máximo, uma brincadeira de crianças, uma brincadeira com as palavras. Era, certamente, obra de quem não anda bem da vida.
Pus-me a pensar - embora não o tenha dito (sou um cobarde, no fundo sou um cobarde, e preferi entrar na onda de dizer que, «'tá bem, do ponto de vista do esforço de composição literária não é nada muito evoluído») - que essa pessoa desligou a máquina de sentir e vive só com a máquina de pensar - então, pensei também que essa pessoa não deve andar, certamente, de muito bem com a vida...
Mas com este texto não pretendo fazer juízos de valor sobre o estado da vida dos outros, antes perguntar-me por algo que me parece mais legítimo. Porque é que diante da arte teimamos em montar toda a máquina de análise de pensamentos e de processos criativos e literários e artísticos e tudo em vez de, simplesmente, sentirmos a arte? Porque é que quando, finalmente, a arte quer voltar a, só, «fazer-nos cair de joelhos», teimamos em pisá-la com os nossos fantásticos métodos racionais?
Eu não prefiro a poesia que é coito com as palavras, que é corte às palavras. Prefiro aquela que me desconstrói, que me faz pôr questões, que cria imagens que vão além do racional e do visível, que cria novos mundos. Prefiro um poema onde se compara Deus a uma mulher-a-dias e onde se diz que achamos que a fé é pirosa e a vida não presta - onde o texto "racional" vai tão longe? - a um onde se queira falar de Deus mas onde se tenha tanto cuidado em mimar as palavras que se esqueça o objecto do poema. Prefiro a poesia onde nos possamos desconstruir como homens do que aquela em que nos limitamos a desconstruir o processo criativo do homem que fez o poema.
Na mesma conversa, uma amiga a quem já tinha dado a conhecer Adília Lopes, interrompeu apenas para dizer: «Eu sou só uma leiga, por isso gostei muito deste

Nota 4

Se tu amas por causa da beleza, então não me ames!
Ama o Sol que tem cabelos doirados!

Se tu amas por causa da juventude, então não me ames!
Ama a Primavera que fica nova todos os anos!

Se tu amas por causa dos tesouros, então não me ames!
Ama a Mulher do Mar: ela tem muitas pérolas claras!

Se tu amas por causa da inteligência, então não me ames!
Ama Isaac Newton: ele escreveu os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural!

Mas se tu amas por causa do amor, então sim, ama-me!
Ama-me sempre: amo-te para sempre!

porque é bonito».
Eu, que, em todos os sentidos, não quero ser mais que um leigo, preferia de todas as formas ter ido apenas por aí.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Todos os Santos podem ter um dia de atraso

Hans Urs von Balthasar dizia que os teólogos devem ouvir os que mais amam, porque são os que mais sabem de Deus. E quem são os que mais amam senão os Santos? Se todos podemos ser santos é, sem dúvida, porque todos podemos amar - não fosse o amor o primeiro mandamento.
Como prova o recente casamento entre dois velhotes num lar de idosos, nunca é tarde demais para amar. Como prova a história de Córdula - não houvesse também Agostinho, Francisco de Assis e tantos outros que a Igreja canonizou ao longo dos séculos - nunca é tarde para ser santo.
Por isso, amemos, não tanto para que os teólogos nos dêem ouvidos, mas para que possamos ser santos, aqueles que anunciam um mundo novo, em que as túnicas são branqueadas com o sangue do Cordeiro.

Fiéis defuntos

Hoje passei por uma repartição do Centro Nacional de Pensões onde se podia tratar de pensões de morte. Pensei entrar e pedir uma para mim. Não que quisesse ser um morto-vivo, como os zombies, que ainda respiram mas estão já podres, por dentro e por fora. Antes porque gostava de ser como os monges cartuxos, que morrem para o mundo para poderem viver só para Deus. Lembrei-me daquela frase de Teresa de Ávila: «Só Deus basta». Emocionei-me ao pensar nas campas dos monges de clausura, sem pedras, sem estatuetas, sem fotografias, sem nomes, sem sequer uma elevação que diga que ali jaz o corpo de uma pessoa - coisa que é bem mais que um invólucro. A campa deles só tem uma cruz, como sinal de que também eles pensam que só Deus basta. Pensei ainda nos alpendres onde se amontoam os ossos dos cartuxos, decompostos os seus corpos. Lá, eles são só ossos entre ossos, homens entre homens, cartuxos entre cartuxos: são os que escolheram voluntariamente que só Deus os trate pelo nome.
Penso nisto tudo e em como gostaria que só Deus soubesse o meu nome. Para que esse resto de solidão me lembrasse que há sempre um resto de companhia. Porque quero viver como quem sabe que só Deus basta.