blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

Pesquisar neste blogue

segunda-feira, 29 de junho de 2015

far islands

a ilha sobrevivia ao arquipélago
e exalava uma vida diferente
e ao mesmo tempo estranha:
nunca havia sido pisada pelos homens
e a sua paisagem estarrecia
mas como que se afastava.

impossível como a ilha
é registá-la com o olhar.

betadine

o ruído do vidro no balcão de pedra
confundia-se com o fumo abundante
e com as poucas conversas
que ainda havia por ali:
o ritmo das sementeiras e das colheitas,
a vida dos presentes e a morte
tão constante por ali,
assinalada pelos sinos,
identificando crianças, mulheres e homens.
o sol entrava pela janela,
cortando uma estranha escuridão,
e iluminava copos, um alguidar,
dois barris e um jarro de vinho.
no páteo três pessoas, desinteressadas,
jogavam chinquilho
e confiavam no amor.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

despertar

acordava no meio da noite
com a sensação de ter ouvido
um grito lancinante de dor
que era tão estranho
quanto a solidão constante da casa.
percorria os quartos vazios do paço
em busca de um sinal qualquer,
de vestígios de uma presença,
de marcas físicas
que o som pudesse deixar.
a verdade é que nunca encontrei,
sentei-me na cama fria
do quarto dos fundos
e abri em pranto profundo.
pois é, ainda hoje acordo
com os gritos horríveis
que o meu avô
me passou em testamento.
uma herança de merda.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

a palavra de mármore

entretanto o poema perdeu-se
porque me cansei de procurar
a palavra que lhe trouxesse
a necessária aura de perfeição.
que vocábulo, que verbo
servirá de companhia
para a ideia sanguínea
dos desamores escondidos?
não é fácil, nada fácil,
assumir que ele não existe.
a realidade, no entanto,
eleva-se, assim, sem mistério.

domingo, 21 de junho de 2015

celulose


consulta e download do pdf aqui.

O livro divide-se em 4 partes: I - o lugar das luzes, textos reunidos sob o tema comum da luz; II - a casa de oração, textos de temática religiosa; III - tudo é ficção, textos arrumados como em prosa ou objectivamente ficcionais; IV - brevis, poemas curtos.

novecentos

devia haver,
para limpar a vida,
uma toalha eficiente
como as que limpam o suor
e as mãos pegajosas
dos desportistas.
até lá vamo-nos purificando
com os passos incertos
de uma peregrinação
sem destino.

fotografia analógica

que imagem
para registar o calor?
o cair terno da noite.

que imagem
para registar a angústia?
tu. sempre e só tu.

last kiss

um último beijo
que ficou por dar
cede lugar a
uma alegria contida
com os teus pequenos
mas variados insucessos.
é a vida a andar para a frente,
uma mentira de que nos
convencemos, acho,
porque a vida está aqui
parada à espera
de outro amor,
um que seja a sério.

pedra sobre pedra

uma questão que surge,
de surpresa, no calor da noite:
com que pedras de que casa
construir ruínas sólidas?

sábado, 20 de junho de 2015

masters of war

morrer com os próprios sapatos
a última das alegrias possíveis
no meio do horror da guerra

sexta-feira, 19 de junho de 2015

chico

já não há construções
a que se possa subir
como se fosse sábado
para ver a banda passar
a tocar canções de amor

já não há canções de amor
nem o amor, tão-pouco.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

tango y libertad

ao meio-dia as ruas de san telmo
estavam sempre demasiado vazias,
muito sujas, também, muito sós.
ali, desconfiava juan, a vida far-se-ia
nas horas em que o azul celeste
misteriosamente se esconde
e os homens de buenos aires,
demasiado puros para levar
uma prostituta pela mão,
podiam dançar com outros homens.
juan, sentindo-se sozinho,
entrou num bar e pediu
uma fernet branca.
sob uma melodia de piazzola
a bebida talvez fizesse esquecer
o nojo que juan sentia daqueles
que consentiam na cama
quem nunca chamariam para dançar.

down jones

Para baixo é que vamos,
pensava Jones para si,
enquanto a guitarra
soava baixinho algo
parecido com blues
e tudo era, no bar,
a luz dos isqueiros
e o fumo de cigarros
enrolados à mão
e os dedos amarelados
de velhos a fumar
desde que se acabou
o tabaco de mascar.
Em Chattanooga, Tennessee,
já não valia a pena
esperar o futuro,
só por mais um bourbon
e o calor de amanhã.
A cidade era toda areia
e o pigarrear dos velhos.
Jones pagava dois whiskys
e subia a rua em pranto.

terça-feira, 16 de junho de 2015

sursum corda

na solidão da noite
a oração do monge
que ilumina a sua cela
com uma vela artesanal:
corações ao alto,
mãos cravadas
no fundo da terra.

sometimes, one angel

em noites quentes
ainda me vens à memória,
anjo nu que caminha
serenamente pela neve,
criando um contraste
entre a luz que se eleva do chão
e a tua pele tão morena.
aqui, na caixa de vidro escuro
onde escolhi ficar,
faço por esquecer-te.
a tua luz em mim
fere mais do que ilumina.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

caderno de apontamentos do curador ferido

velho demais
para entender a linguagem das aves
ainda quero crer
que serei capaz
de transformar as feridas,
minhas e do mundo,
em pedras preciosas.

sábado, 6 de junho de 2015

versos para dois poetas e para a escuridão

o cansaço de estar aqui
às vezes cresce tanto,
chega ao tamanho
de monstros que não
podemos medir

que já não dá para saber
a que vazio nos
conseguimos agarrar,
que silêncios nos guiarão
nestes tempos de escuridão.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

uma última valsa

aquilo de que sinto falta
quando começo a subir aos céus
é de um poema que me prenda à terra

palavras de urze e granito

quinta-feira, 4 de junho de 2015

A viagem de Herberto Helder

Tive como única companhia
uma caixa de pampilhos
naquela tarde nas portas do sol
em que me sentei para ler
os passos em volta
à espera que, de repente,
Luiz Pacheco assomasse de novo
àquele banco de jardim
em que o maior dos poetas
lhe leu esse livro
de uma assentada.

O sol pôs-se ao longe
e, não fosse essa imagem
marcada em mim,
voltaria para casa
sem a invocação dos poetas
e sem a invocação dos amores.
O amador, ao rés das águas, continua
à espera da amada
que habita o alto das montanhas.