blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

pharmacia

há um momento a partir do qual ninguém sabe mais se está a viajar ou simplesmente a fugir
José Tolentino Mendonça

depois de me acusarem de querer fugir
fui à farmácia procurar comprimidos
que curem o meu problema

entre tanta coisa para os ossos
para os dentes para o intestino
para a diabetes para a depressão
para a impotência para a disfunção eréctil
para o vaginismo para os efeitos da tpm
não tinham o que eu queria

não há
e disseram que não prevêem produzir
medicamentos para curar doentes de amor

se eu fujo é do amor

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

coprolalia

as mãos que fazem jarras,
pratos em forma de couve,
lagartos e sapateiras,
velhos em bancos de jardim,
einsteins e saramagos e mários soares,
estudantes, futebolistas,
são as mesmas que esculpem caralhos.
se elas falassem cuspiam asneiras
como à noite a boca do oleiro
cospe escarras verdes.

sábado, 23 de novembro de 2013

esperança média de vida

Para o Rui

ainda espero que a vida traga
aquele melhor poema
(o que ainda está por escrever)

por isso vou errando muitas vezes
errar bonito é o princípio da poesia
errar feio às vezes também

«Esperança média de vida é o tempo em que as crianças, adultos e idosos morrem ao longo de um ano civil»

a solidão não me assusta

a solidão não me dói
quando percorro a casa em ruínas

os pratos ainda na mesa
a cama de casal desfeita
o papel de parede do quarto das crianças
isso é que me dói

aquela vida podia ter sido a nossa

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

sintetizador

neste mundo tantos pedidos complicados
malas de mão caríssimas
um príncipe encantado
automóveis topo de gama
uma casa com vista para o mar
menos vento nas frestas das portas
alguém para amar

o encanto do teu desejo simples
e a minha resposta rápida
não morro sem te levar a um baile

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

resumo breve de uma vida deprimente

à falta de uma mulher
que te mude a vida

dorme com dois livros de poemas

homem invisível

num saco preto do lixo
cortado às postas
o homem passeia pela cidade
sem que o vejam

já ninguém o via
quando se sentava nos bancos de jardim
a ver os carros passar
e a cravar tabaco

a cidade está cheia de gente que ninguém vê

terça-feira, 19 de novembro de 2013

ecce tu pulchra oculi tui columbarum

Como são lindos os teus olhos de pomba
Ct 1, 15

como são lindos os teus olhos de pomba
quase fazem belos também os meus

como é lindo o teu andar de gazela
quase faz belo o meu passo de touro doente

como é lindo o teu coração de carne
quase dá vida ao meu coração de pedra

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

génesis 4, 1-16

se me perguntarem pela família
ou por um amigo mais ou menos íntimo
salta-me a pergunta de Caim a Deus
«Sou eu porventura o guarda do meu irmão?»

perguntem-me antes pelos milhafres
que repousam no cimo dos postes
ou pelos ratos que brincam nas linhas do metro
sempre me poupam do desterro e de uma marca na cabeça

vento norte frio leva a áugó rio

velhas em camionetas da carreira
falam em aldeias enterradas em água
e em séries de tv que mudam nomes a terras
eu rio-me deste meu mundo tão só meu
deste sotaque tão gritado
tão variável de concelho para concelho
que nos faz mais ocultos que todos
os alentejanos os algarvios os beirões os durienses
se gritássemos menos a falar
talvez houvesse lugar para um mundo menos meu
assim só há provérbios populares
«a oeste nada de novo»

domingo, 17 de novembro de 2013

missing things

as saudades que tenho
dos beijos que não vamos dar
dos passeios de mão dada que não vão acontecer
dos tempos parvos a olhar para o teu riso e os teus olhos
que nunca vão chegar

são as mesmas das salve reginas que já cantei
e das horas da liturgia
e dos retiros de silêncio

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

não voltemos aqui

«dão tanto gosto a fazer e tanto trabalho a criar», dizia, enquanto pegava ao colo num dos sete filhos, que se tinha ido enfiar num molho de silvas, e o levava para a mesa. «mulher, traz o comer, tenho direito ao meu terço de carapau cozido e a duas batatas», berrava o marido a cheirar a dois litros de vinho e de rosto gasto pelo sol. saíra de manhã cedo para a fazenda alugada, onde passou o dia a cavar e alimentado a pão, vinho, terra, pó e sol. era por isso que se sentia no direito de exigir comida na mesa, filhos obedientes e uma mulher sempre disposta a deitar-se com ele na cama. «não há carapaus, só pão duro com água de cozer o toucinho de domingo e pêros ainda verdes. o augusto ainda não é padre e as raparigas ainda são novas para criadas de servir», lamentava-se a mulher. o homem limitou-se a suspirar porque era agosto e, assim, nem umas batatas doces havia para a sobremesa.

[este texto foi escrito ao som de Bailarico Saloio, na voz de Gisela João]

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

rabeta

sem o teu casaquinho pelas costas
o teu cachecol engravatado
os teus sapatos castanhos de engraxar
as tuas calças de cantor sertanejo de goiânia
a camisola de alças justa
e o bigode mal nascido às vezes
com a barba impecavelmente feita
eras só um rapaz normal da bulgária
chamavas-te lazar rabeta
e passeavas no parque com a tua namorada ekaterina
em vez de andares na baixa com o teu alfredo
e a tua pochete louis vuitton

pária

brâmanes
cxátrias
vaixias
sudras
eu sou um pária
não tenho nada
não mando em nada
não sou nada
podia bem nem existir
valho menos que uma vaca
e um deus com cabeça de elefante

terça-feira, 12 de novembro de 2013

tanta coisa para limpar

preciso de tirar o teu sorriso do meu coração esses passos que se aproximam como que a procurar um abraço que te proteja do frio que faz à noite nesta terra com vento os teus olhos que entram pelos meus adentro os lábios que me fazem lembrar uma actriz de novelas a actriz de novelas a cantora de fado que não sei porquê me lembram de ti porque és linda tão bonita e eu indigno de ti sou o esterco do mundo e a escória do universo preciso de me limpar de mim tanta coisa para limpar em tão pouco tempo de vida passado em caminhos que me consomem

os pretos são todos parecidos

à noite as luzes amarelas
são sinal da tua fuga
nem as luzes brancas no interior das casas
te valem
já não queres cá estar

amanhã nasce o sol em bizâncio
e o que queres
para te iluminar o coração
é contemplar as maravilhas do mundo
em cidades declaradas perdidas

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

sou um monge sem mosteiro

todos os dias me deparo com pessoas que acho que mais ninguém vê. hoje vi um homem com uma placa ao peito a dizer que dezassete anos de honestidade já lhe chegam e que está farto. hoje vi um velho de muletas a cravar tabaco. hoje vi vários sem-abrigo de barbas sujas. todos os dias vejo gente desta. outro dia estava a conversar com uma amiga quando um louco parou para me desejar boa tarde. talvez ela fosse demasiado linda para ele se lhe dirigir. talvez eu lhe seja demasiado igual para ele se me dirigir. talvez ele só se tenha dirigido a mim porque se calhar só eu os vejo. sou um monge branco no mosteiro do mundo e a minha missão é rezar por estes que só eu vejo, por estes que ninguém vê.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

porta da escola

sozinho no meu carro
espero o sinal sonoro
para levar os meus sonhos no banco de trás

(esqueço-me que os sonhos não são meus)

útero

o bisturi é perigoso
porque me pode fechar a porta
da obra criadora de Deus

que eu possa ser mais
ao trazer mais gente ao mundo

pretório de pilatos

ao sair da casa de banho
lavo sempre as minhas mãos
para me descartar
de responsabilidades sobre o meu corpo

nanismo

«de ti, ó meu Deus, preciso como de pão»
Rainer Maria Rilke

somos como anões aos ombros de gigantes
mas já não há gigantes

somos como filhos ao colo da mãe
mas crescemos demais
para que nos peguem ao colo

somos um grão de mostarda
no tempo do ketchup

somos peregrinos sem bordão
que não sabem para onde ir

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

love of my life

às vezes penso que a vida é demasiado comprida para se ter só um amor. às vezes penso que ela deve ser demasiado curta para se ter só um amor. às vezes penso em que raio de amor estarão, afinal, a falar. o do primeiro mandamento? o amor por uma mulher que me faça estremecer por dentro? talvez ainda não saiba porque ainda não encontrei alguém para amar, como na canção d'os golpes. talvez ainda não saiba porque preciso de roubar as palavras dos outros para dizer que ainda espero o amor, um amor que grite como um cordeiro abraçado à minha canção.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

inês

os teus olhos de cordeiro pelo retrovisor
Agnus Dei qui tollis peccata mundi

os teus olhos a olhar para mim numa mesa de café
Agnus Dei, miserere nobis

os teus olhos a brilhar (o milagre do amor)
Agnus Dei, dona nobis pacem