blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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terça-feira, 12 de dezembro de 2017

sequência

a mulher que limpa a casa
não pode varrer os problemas
para debaixo do tapete

o homem ganha a vida
a partir paredes à marretada
desfaz-se em mimos com os filhos

os putos passam o dia
a brincar na rua
não pensam no número de contribuinte
que lhes deram ao nascer

fazemo-nos velhos nisto
a jogar à malha e à bisca lambida
para esquecer as aflições

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

as noites frias

quando chega o outono
deito-me num banco de pedra branca
e olho as estrelas do céu
uma memória dócil do meu avô
uma possibilidade ainda aqui
de contemplar o passado
o som das corujas
o cantar dos pavões
e o comboio que já não passa
só os carros rápidos
que seguem na auto-estrada

terça-feira, 31 de outubro de 2017

fim do mês

pouco ágil para tudo isto,
sou frágil demais, assumo,
é o fim do mês e tenho a conta a zeros,
quase a zeros, na verdade,
gostava que isso me preocupasse mais,
não me rala quase nada,
dói-me mesmo é a tua ausência,
sim, a tua, sempre a tua,
saber que podias mas não queres,
nunca quiseste, já to disse mil vezes,
estar aqui. comigo, aqui.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

haiku #986

verdadeiro e
único lugar
o silêncio

canto sexto

desencantados com tudo,
desiludidos com as ideologias
que não nos levaram a lado nenhum,
vamos provando a nossa fé no crisol da dúvida
e partimos

ao fundo da estrada existe uma flor
capaz de abrir com violência
as pedras e pó e teias de aranha
que cobrem os nossos corações

já nos falta a coragem
para ter um coração

sábado, 21 de outubro de 2017

o globo

alguns sábados à noite
assisto a filmes brasileiros
e tenho inveja das bandas sonoras
e de filmes de hoje filmados hoje
e das histórias de amor contemporâneas
pensadas por cabeças actuais
com menos prepotência
mais ar a correr pelas cabeças
mais coragem de não dar ao público o que quer
mais tempo para registar a violência
da mão que esmurra a mesa de um boteco
enquanto o casal atravessa a avenida em silêncio
mais tempo para o silêncio

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

alter ego

outro dia
outro tempo
outro amor
outra face
outra fé
outra casa
outro caminho
outro mar
outra gente
outro vazio

sábado, 26 de agosto de 2017

sábado, 19 de agosto de 2017

illi volent sanguinis

recebem-te já com a faca na mão
e não esperam dialogar contigo.
estás cá para ser humilhado,
destratado, cuspido, vilipendiado,
ninguém disse que ia ser fácil,
o Senhor avisou que ias receber
em perseguições, açoites e desprezo.
limparás o pó das sandálias
e seguirás para a cidade seguinte
para encontrar mais facas,
ser escarrado, considerado um doente,
limpar o pó das sandálias,
arrumar as ferramentas no bornal
e seguir para a cidade seguinte.
continuar a não ser daqui
e anunciar outra coisa
de que já ninguém quer saber.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

coros

precisamos do silêncio
de uma outra rota
que nos afaste do carreiro
sobrelotado das indignações

nos caminhos que ligavam
a antiga metrópole às aldeias em volta
as pessoas eram obrigadas
a andar sozinhas

homens e mulheres sós
com bornal e cajado
para afastar os salteadores
e ritmar o silêncio ao som dos passos

domingo, 13 de agosto de 2017

lágrimas ao piano

não estávamos bêbados,
naquele dia não,
e a conversa levou um outro sentido,
perguntavas-me a partir de onde
começamos a viver,
e eu não sabia,
a partir de quando talvez soubesse,
de onde não era capaz de saber.
e apontavas-me o dedo
e gritavas «cobarde!»,
«tu sabes».
«é a partir da dúvida,
de quando começas a duvidar».
enquanto não abandonares a torre
nem abraçares a dúvida
nenhuma vida corre rumo à fonte.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

revival

há o perigo de ficarmos lá,
quando tudo era a sério,
a música que passava
dizia algo sobre a nossa vida,
pedíamos perdão quando era de pedir,
perguntávamos o que, afinal, nos separava
uns dos outros e de nós mesmos,
acreditávamos numa luz ainda
que continua acesa
no meio da noite,
perdíamos tempo a ouvir o silêncio
e nos construíamos em volta das canções
quando a província e os gira-discos deixavam.

não podemos ficar lá.
isto às vezes não é a sério,
os dj só passam porcaria
e até na rádio aquilo não nos diz nada,
sobre a nossa vida nem sobre a vida de ninguém,
parece que todas as luzes se apagam
e nem temos do que nos separar,
não há mais silêncios,
não há mais paragens possíveis
perante a velocidade do mundo,
mas podemo-nos construir hoje,
temos de nos construir hoje,
sobre uma canção qualquer
nem que venha trazida do tempo
de que temos tantas saudades.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Sarai ri

a rapariga linda
está a ler um livro,
de vez em quando levanta-o
e eu espreito a ver que livro é
e se ela valerá a pena.
o nome do autor aparece
em letras garrafais,
demasiado grandes, até,
mas não consigo perceber
o título do livro,
só que está a itálico.
volto a centrar-me no rosto da actriz,
sardento e luminoso,
nos cabelos apanhados com dois totós
(acho que é totós que se diz),
nos olhos castanhos grandes.
depois a voz doce e meiga,
capaz de nos fazer encantar
até pela lista telefónica da alta extremadura.
desviei os meus olhos da actriz
e veio, por fim, o texto.
a fazer sentido, ou a fazer mais sentido,
agora as palavras entrando pelos ouvidos
e juntando-se cá dentro
à memória da imagem da rapariga linda,
no fim sempre as palavras
a coser o sentido de tudo isto.

terça-feira, 11 de julho de 2017

subiaco

aqui e agora
o tempo de escolher
construir isto de um modo novo
agarrando-o com as próprias mãos
e oferecendo-o ao Outro

aplicações

não estou à espera
de encontrar
o amor por aí

e teimas em deixar-me
sem resposta

quinta-feira, 29 de junho de 2017

terceira fila junto à janela

quando eu tinha catorze anos
passava despercebido.
nas aulas sentava-me na terceira fila,
junto à janela, e olhava para a rua
o tempo todo. suspirava.
as raparigas da turma
não me ligavam nenhuma,
eu gostava de uma rapariga da turma
que não me ligava nenhuma,
felizmente ainda não eram os tempos
de as raparigas gostarem de mim
só como amigo
quando não gosto delas
só como amigo,
na verdade acho que hoje não gosto
de ninguém como mais do que amigo.
os professores faziam-me perguntas
e eu dava as respostas certas,
às vezes, ou errava e ficava vermelho.
nunca punha o dedo no ar
para responder a perguntas postas à turma.

há uns meses estava numa sala
com seiscentas e tal pessoas
e um amigo disse o meu nome
e apontou para mim.
as pessoas olharam todas
na minha direcção
e bateram palmas
e eu encostei-me a uma coluna
a querer esconder-me e a ficar vermelho.
não sei se agradeço ao meu amigo,
sei que de repente o coração bateu mais,
caí de novo nos catorze anos
e na terceira fila a olhar para a rua
e a suspirar por não sei quê.

sábado, 24 de junho de 2017

ornatos

vinte e três e cinquenta e sete:
passa um filme escuro
filmado em coimbra.
a banda sonora transporta-me:
o meu corpo já está cá
mas deixei o coração
nos discos que faziam sucesso
em dois mil e um.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

ana

não tinha nada a dizer
mas continuavam a querer ouvir
as minhas palavras
enquanto mãe e médica

quinta-feira, 8 de junho de 2017

lanceta

foi hoje que quase fui capaz
de voltar a escrever o teu nome

ainda não sou capaz de escrever o teu nome
e de assumir que demasiadas porcarias que escrevo
são ainda a pensar em ti

segunda-feira, 5 de junho de 2017

solitudine

doutor, não sei
como se chora um filho único,
nem marido tive,
ouço sons pela casa à noite,
às vezes carrego no botão
de um aparelhinho
que me deixaram da central de alarmes,
os seguranças vêm e não é ninguém,
só um sarafano a passear na cozinha
ou o exaustor da casa de banho
que ficou esquecido.
peço-lhe uns comprimidos,
um chá, não sei, uma forma
de chorar esse filho inexistente,
a vida que nunca cheguei a ter

eufemismos de boné

quando digo que os teus olhos verdes são lindos
é mesmo dos teus olhos verdes que falo

notas para escrita de cinema

num bom filme policial
o autor não consegue identificar o criminoso.

o bom thriller
é aquele em que o desejo do mau da fita
se concretiza da forma mais escabrosa possível.

filmes de comédia
devem ter cenas de lucha libre
e canções dos balcãs.

não pode haver filmes românticos
sem passeios de mão dada,
um beijo à chuva com o throwing my arms around paris em fundo,
um disco dos tindersticks como banda sonora.

a minha autobiografia
tem meia hora de estática
e um homem com as patilhas do stuart staples,
os olhos de bowie e a voz de mark sandman
a ler poemas de ruy belo
numa taberna da província.

terça-feira, 30 de maio de 2017

fora de tempo

não vou ao cinema há mais de dez anos.
actores e actrizes, artistas de todo o mundo
conquistam lisboa aos lisboetas
e só conheço a madonna.
triste, demasiado triste ficar lá atrás,
ao mesmo tempo uma alegria
ou desconforto, só, a natureza
de ser na margem despovoada.
poucos dos meus amigos
conhecem a carta aos coríntios
de clemente de roma
e nunca leram os poemas
de juan de yepes, um homem silencioso.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

ensaio sobre a luz

Para o Manuel

era uma cegueira qualquer, isto,
uma vida feita na noite,
a esta hora custa menos
pensar na vida e ver que
em quarenta e dois anos
não tenho nada a que me agarrar,
uma mulher emprego filhos
um cão uma casa gado de criação
um quintal onde guardar o meu opel
uma companhia que me ouça chorar,
isto, está escuro, antes assim,
disfarça a minha tristeza,
não é bem tristeza, isto,
é uma solidão qualquer e dói,
dói muito e choro sozinho a noite toda.
quando os primeiros raios de sol
rasgam por entre os buraquinhos do estore
sento-me na cama e, apesar de tudo,
isto, sorrio. há-de haver um futuro qualquer,
uma luz, um dia iluminado,
para um pobre sozinho como eu.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

tom cinzento

amanhã chove,
troveja,
uma fábrica fecha
e mil pessoas perdem o emprego,
um velho espera companhia
num banco de jardim,
o poeta abandona as palavras,
acaba um amor.
era o nosso.

quinta-feira, 30 de março de 2017

alegria

ao alto o amor
no chão o temor

escrever é favela

nenhum escritor do lado de lá do mar
tem na capa dos seus livros
o símbolo da petrobrás
que inunda as camisolas
dos desportistas desse país

quinta-feira, 23 de março de 2017

a faca em chamas

queria um outro objecto
que fosse capaz de cortar o fogo,
rasgar as entranhas,
queimar o negro que há em mim.
pedia, em silêncio, uma maneira nova
de dizer paraíso,
a capacidade de calar a solidão
a que me voto no acto de escrever.

domingo, 19 de março de 2017

desencanto

nada de extraordinário
na vida do poeta:
debaixo da pedra polida
há larvas e terra húmida

domingo, 5 de fevereiro de 2017

aniversário

para a Carla

era tudo muito mais fácil
quando não precisávamos
de nos preocupar com as contas,
a renda da casa, o passe intermodal,
e cada ano a passar era 
apenas uma celebração,
uma ocasião para estrear os ténis novos
e comer meio bolo de chocolate
sem o sentimento de culpa
que agora teima em aparecer.
não é fácil, já, envelhecer,
mas tem piada a festa de anos,
a família, minha, à volta da mesa,
o bolo e os ténis novos
que teimo em oferecer-me
para ser, ao menos uma vez ao ano,
aquela pequenina outra vez.