blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

são joão da ribeira, mil novecentos e trinta e três

regras básicas para perpetuar um poeta:
ouvir o último disco do manuel fúria
com headphones e repetir dez vezes
aqueles versos sobre a saudade plena da alegria;
ler aquele grande rio eufrates de uma assentada
frente ao tejo numa tarde de sol;
recordar o toque do sino da aldeia
e as brincadeiras frente à torre mourisca,
mesmo sem ter vivido essas experiências;
chamar uma mulher para dançar comigo
e para se sentar aqui mesmo, à beira do poema,
conter o medo de que a mulher não venha
e me deixe a experimentar a solidão dos vencidos;
passear com a família na feira de rio maior,
comparar os preços das cebolas
e parar frente ao pavilhão grande
a ler os versos que lhe ocupam a escadaria
pensando na sorte de nascer depois da guerra;
fazer de cada palavra uma espada afiada
para o combate entre os militantes da beleza
e os que a querem destruir.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

os quarenta dias

não é possível chegar ao oásis
que o centro do deserto esconde
sem a coragem de caminhar
despojado de todos os atavios
de que nos munimos
para fugir da sede, do desconforto
e da dor que é sentir

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

amores imperfeitos

somos humanos, vulneráveis,
incapazes sempre do dom imenso
do amor, inúteis para o dizer tal como é,
e caminhamos como cegos pela vida
encontrando uma vezes e fugindo tantas outras
do perdão, que talvez seja o acto humano,
vulnerável, que mais nos aproxima do amor
tal como é em estado puro

tenho sempre tanto perdão a pedir a tanta gente
e cada vez menos a dizer do amor,
senti-lo, certos dias sentir a sua ausência,
já é trabalho para uma vida inteira

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

secretaria de estado dos pássaros

nem os pássaros se adaptam
aos aeroportos que invadem
os seus habitats
nem nós nos adaptamos
às dores lancinantes do mundo

era óptimo, para os políticos
e para os pobres homens sofredores,
que ambos se adaptassem por decreto

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

sobre o desamor popular (aforismo)

Tudo o que há a dizer sobre o desamor
e o desencanto que sofremos
está nas canções do Luís Filipe Reis
e talvez também nos seus cabelos

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

lindos versos de amor

como ondas a magoar as rochas,
como um lírio a despontar no deserto,
como o silêncio do mosteiro,
como a nuvem conduzida pelo vento,
como a viagem de carro de regresso a casa,
como rodar a chave ao entrar na casa,
como o salto do cão para o colo do dono
assim é um coração deixado à distância
como estes versos que não são de amor
mas que no fundo o são sempre

um fogo interior

aperto a pedra contra as mãos
esperando que ela se transforme em fogo
e eu definitivamente em pedra

sábado, 15 de fevereiro de 2020

ponto morto

Para o João Paulo

a lembrança dos amigos
vem nos momentos mais fúteis:
numa descida em ponto morto
rumo ao nevoeiro que habita em mim

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

'sometimes it hurts', tindersticks

fugimos do amor
da palavra amor
e atribuímos-lhe sentidos pervertidos,
os gregos não, os gregos diziam
eros, filia e agapé,
porque o amor dói
como a solidão dos vencidos
e rejeitamos as dores do mundo,
vivemos de risos fingidos
como de comprimidos de iboprufeno
guardados no bolso esquerdo para um sos,
e os sorrisos ainda assim tão lindos,
essa ficção ainda assim tão bela,
ainda assim uma coragem inevitável
de não morrer, mas viver de amor,
a filia que é mais fácil e aconchega como abraços muitos,
o agapé de que somos tantas vezes incapazes,
e o eros de que andamos a fugir, mas nos prende,
como a rosa do pequeno príncipe

thanátos

aceitar a vulnerabilidade da vida
um desafio tão grande
quanto para a cerejeira
acolher a beleza das suas flores frágeis

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

o ludo

em vez de absesso
dizer obsesso

uma obsessão

bocas

caminho rebuscado
o de transformar um texto sobre solidão
ausência sentimento de inutilidade partida
numa coisa sobre amor
e em seguida transformar o amor
numa parvoíce qualquer epidérmica
própria dos garotos de doze anos
como se tudo se esgotasse em elogios inócuos
e nos estivéssemos a proteger do amor puro
um amor tão puro em que não havemos de tocar
e a ferrugem estragará tanto quanto estragaria o uso

com isto cheguei a duas conclusões:
do amor quero sempre outra coisa que isso
e não se ama quem não consegue ler duas linhas

regresso agora à minha solidão
esse lugar de onde vai sendo preciso
pedir a pessoas que vão embora
porque aqui dói muitas vezes

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

vibrafone

antes que tocasse o despertador
já tinha na cabeça o som de uma orquestra inteira
que toca as canções de amor
que me invadem quando penso em ti

e levantei-me disposto a viver de amor
um exercício mais difícil
que o de morrer