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sábado, 20 de abril de 2013

da minha irritação com a auto-ajuda

arrancarei do vosso peito o coração de pedra 
e vos darei um coração de carne (Ez 36, 26)

Gostava que partíssemos do princípio de simpatia de que todos temos irritações particulares. Isto para garantir que ninguém lerá isto como um ataque particular, nem como uma manifestação particular de solidariedade. Gostava de partir do princípio de que a amizade também se pode construir no confronto e na troca de pontos de vista e não necessariamente no relativismo de ideias e no medo de assumir pensamentos que poderão melindrar os outros (escrevo isto, sobretudo, para me defender de eventuais "revoltas" de amigos que, ao longo da vida, terão encontrado propostas de caminhos nas obras dos Kunderas ou dos paulos coelhos do mundo). Prefiro partir do princípio, de que falava D. José Policarpo nas cartas que trocou com Eduardo Prado Coelho, de que dois homens de bem podem sempre encontrar-se.
Uma das minhas maiores irritações é, sem dúvida, em relação a todo o fenómeno da auto-ajuda (confesso que esta se agudizou com o crescimento da importância das redes sociais enquanto espaço de partilha do íntimo das pessoas). É-o por várias razões, e é sobre essas várias razões que gostava de falar.
Em primeiro lugar, a auto-ajuda irrita-me porque traz consigo uma visão redutora e simplista da vida. A verdade é que uma óptica a partir da qual a vida se realiza no seu expoente máximo com o cumprimento dos nossos sonhos, onde o auge de um projecto de vida é ir até onde nos leva o coração é, no mínimo, bastante limitada. Em primeiro, porque podemos sonhar com uma série de coisas irrealizáveis (fisicamente irrealizáveis), depois porque muitas vezes, porque o Homem é um animal social, para irmos onde nos leva o coração precisamos de um outro e ele pode não estar para aí virado. Esta visão sonhadora da vida ignora ainda as muitas dificuldades e sofrimentos que são próprios do viver humano e que muitas vezes estão lá apenas como isso mesmo, dificuldades e sofrimentos próprios da vida de um ser finito e limitado, e não propriamente para se tornarem na coroa de glória de um caminho até à vitória final.
Depois, irrita-me que uma certa forma de catolicismo se tenha reduzido à auto-ajuda. É muito deprimente que, numa qualquer feira do livro, as editoras protestantes se centrem na Bíblia e as editoras católicas tenham os livros teológicos escondidos atrás de um batalhão de "literatura" de auto-ajuda (sobretudo porque não é bonito ver que é dentro do próprio catolicismo que se justifica a frase, de Michel de Certeau, «dans sa misère, la théologie regarde vers la porte»). Mais do que isso, uma religião que se constrói na pessoa de Jesus e a partir de uma tradição como é a bíblica não se pode assumir como auto-ajuda. Não há auto-ajuda nenhuma no texto de Caim e de Abel, em que somos mais vezes Caim do que Abel, nem no texto de Ezequiel em que Deus nos diz que transformará o nosso coração de pedra num coração de carne, nem na parábola do fariseu e do publicano, em que mais vezes nos identificaremos com o primeiro que com o segundo, nem no facto de sermos nós os réus da morte de Jesus. Há, de facto, uma salvação gratuita que nos é dada a acolher, mas chegar lá exige trabalho e esforço, ascese e dedicação, e não um mero seguir dos sonhos, ouvir uma voz interior, ir onde nos leva o coração contra tudo e contra todos, buscar um conforto individual e descomprometido nessa salvação que nos é oferecida, usar os escolhos do caminho como coroas pessoais de glória. Quem põe no topo das prioridades seguir os seus sonhos ficará sempre longe da identificação total com Cristo, morto e ressuscitado, que é condição de salvação.
Depois, e por último, irrita-me também a atitude relativista e pouco honesta intelectualmente da auto-ajuda. Para as pessoas que se socorrem destas soluções "motivacionais" tudo está no mesmo saco: Jesus, Kurt Cobain, Jim Morrison, Che Guevara, Dalai Lama, Buda, Ghandi, Charlie Chaplin, Fernando Pessoa, paulo coelho, Bob Marley, o budismo como entidade mais ou menos etérea, e depois toda uma série de gurus do hinduísmo, do espiritismo e da new age, sendo que dentro deste grupo de indianos e brasileiros poderão até haver alguns nomes de pessoas que nem sequer existem. Ora, isto não tem lógica nenhuma: a relevância do discurso de Jesus ou do Dalai Lama sobre o sentido da vida, mesmo para um não crente, não terá o mesmo valor que uma afirmação de Bob Marley ou Jim Morrison. Depois, estes autores são escolhidos aleatoriamente e mais como figuras que garantem uma certa autoridade à frase escolhida (a frase deixa de ser anónima e permite à pessoa situar-se em termos ideológicos - se for mais "espiritual" citará mais líderes religiosos, se for mais de esquerda irá para os revolucionários, se for um espírito livre citará muito Bob Marley e Jim Morrison, se for depressivo muito Kurt Cobain e [o suposto] Fernando Pessoa e por aí adiante) do que como efectivos criadores de tais pensamentos (aqui poderíamos entrar pelo desinteresse generalizado pela leitura e, até, pelo do mau gosto entre os que até lêem, mas não me apetece mesmo ir por aí). Acho que as pessoas nem chegam a pensar quando partilham estas frases, nem devem chegar a lê-las com a atenção suficiente para as levar a desconfiar que a autoria de tal pérola de sabedoria possa não ser da pessoa que assina a frase. Ainda dentro deste fenómeno irrita-me que depois se confunda a partilha destas frases com a partilha de obras de arte (poesia, escultura, pintura, música, fotografia) por aqueles que o fazem como forma de expressar a sua capacidade de espanto com a beleza da criação artística (dito de forma mais simples, irrita-me que se confunda quem partilha uma frase de Dostoiévski porque nela encontrou um confortozinho interior com quem partilha uma frase dele porque comunga do pensamento de que é a beleza que salvará o mundo). Irrita-me que o auto-conforto e a auto-ajuda se deixem confundir, e sejam postos ao mesmo nível, da estética e da ética (ou de uma inevitável estética ética, ou vice-versa, no sentido da ética teológica de von Balthasar).
Dito isto, volto ao início do texto. Não quero, mesmo, melindrar ninguém. Só quero que possamos, todos, estender o nosso olhar um pouco para além do nosso umbigo. Que sejamos capazes de ver para lá dos nossos próprios sonhos. Que nunca nos esqueçamos, sobretudo, que dois homens de bem podem sempre encontrar-se.

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