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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

à noite os homens choram

i

durante o dia, ele era um homem bastante forte. carregava sacas de batatas às costas e grandes quantidades de sacos do supermercado ao mesmo tempo. aproveitava-se da sua condição de patrão e maltratava os empregados e até os clientes. no fundo, queria mostrar tudo o que lhe tinham ensinado nos anos que passou na tropa, que a vida não se compadece dos fracos e que não se pode ser manso e educado com as pessoas senão elas amolecem. a verdade é que por causa das suas atitudes já ninguém gostava dele, nem sequer a mulher, que só mantinha aquela relação porque havia filhos, e esses tinham mais a ganhar com uma família estável, mesmo que infeliz. o homem andava com problemas - para se ser tão malcriado só se pode ter grandes problemas - mas com apenas um a afligi-lo a sério (que não, não era o facto de ninguém gostar dele por ser mal educado; essa atitude ele achava-a necessária e certa). o problema dele, o que o preocupava mesmo, manifestava-se à noite, quando a mulher ficava a tratar de papéis da contabilidade e ele recolhia sozinho à cama. deitava-se, abraçava-se à almofada e chorava amargamente. o seu verdadeiro problema era não haver ninguém que o amasse. nenhum homem bonito e atraente e jovem. todos os carnavais ele se mascarava de mulher, com uma cabeleira loira e uns saltos altos, para ficar como na verdade se queria e a ver se despertava a atenção de alguém, de algum homem que lhe quisesse dar amor. mas nunca chamava a atenção de ninguém, só se tornava cada vez mais ridículo. e isso doía-lhe como mil mortes. chorava, gemia, mas tinha de limpar as lágrimas antes de ter companhia, porque os homens são fortes. a mulher não o podia ver chorar - os homens são fortes. no dia seguinte, acordava cedo, e voltava à sua vida de carregar batatas ao ombro e tratar mal as pessoas, porque os homens são fortes.

ii

quando fechava a porta e entrava no quarto, abria-se em pranto. todos os dias, sabia que ela tinha outro. isso, em si, não o fazia chorar, porque ele sabia que ela até era feliz. o que o fazia chorar era a dúvida. será que o outro também saberia daquele brilho nos olhos dela? saberia ele daquele sorriso? saberia dizer-lhe poemas de cor, daqueles que falam do amor verdadeiro? quereria ele levá-la à praia e passear de mão dada à beira-mar ou seria antes dos que preferem passear em centros comerciais, a tirar fotografias e a entrar em lojas onde fingem não estar enfadados? será que ele vestia fato de treino aos domingos para ficar sentado no sofá a ver comédias românticas e a beber cerveja? isto, sim, amargurava o homem, porque apesar de tudo ele pensava que podia ser melhor. afinal, ele conhecia aqueles olhos, aquele sorriso, aquelas mãos, não começava logo a olhar-lhe para as mamas. nunca viu nela uma máquina de sexo. depois de se pôr não sei quanto tempo a pensar nisto, enxugava as lágrimas, porque os homens não podem ser piegas. voltava-se e adormecia.

iii

os ataques de tosse só lhe davam à noite, e faziam-no chorar. durante o dia não podia estar doente, porque os homens são rijos e fortes e não têm dores de cabeça nem tosse nem febre nem expectoração. substituía os remédios por mezinhas porque ir ao médico não é de homem e os nossos avós é que sabiam da vida. a tosse vai-se tornando cada vez mais forte, contrariando o efeito dos limões com mel e açúcar. começa a vir acompanhada de muita expectoração e começa a fazer falta um escarrador, como se usava no tempo dos nossos avós que nunca andaram na escola e a sabiam toda. o homem cada vez chora mais. tanta tosse já faz suar. mas há que ser forte. rezar. pensar noutras coisas. ser um homem. amanhã vai estar tudo bem. amanhã está tudo bem.

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