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sábado, 17 de março de 2012

à tarde os homens traçam a perna

i

este sabes que é por tua causa

era hora do lanche e ele, como sempre, foi até ao café, porque ao menos havia pessoas diferentes e gente a passar. sentou-se na esplanada, por causa da lei do tabaco, e traçou a perna, como tanto gostava de fazer. pôs-se na sua condição de observador. divertiu-se a ouvir as conversas dos outros, sobre férias de verão em viseu, o drama da pele seca e os comportamentos dos alunos de hoje em dia, enquanto comia o croissant duro de três dias, mas vendido ao preço de um fio de ouro acabadinho de fazer. uns colegas ainda se sentaram com ele, mas as conversas foram só de ocasião, e eles estavam com pressa e foram embora. de repente, quando já não esperava, viu passar uns indivíduos de colete para dentro do café. não percebeu bem quem eram, mas aquela sua atracção natural pelo abismo, que dizem ser sinal de maturidade dos homens, fê-lo ir atrás deles. eram uns senhores de um serviço do estado, que tinham ouvido dizer que uns aparelhos do estabelecimento não andavam a trabalhar bem e aquilo tinha de ser encerrado. o homem do café desatou a chorar, enquanto a mulher tentava subornar os senhores de colete. os homens disseram que as leis são para cumprir e que pelo que eles viam havia umas arcas que já não trabalhavam faz tempo. puseram toda a gente na rua e deixaram um papel na porta. «avaria no equipamento». ele adorou toda a situação, mas depois ficou triste. já não tinha onde ir lanchar e pensar em como é bom subir as dunas de salir no verão, não ter a pele seca e saber que os alunos de hoje em dia são como os de antigamente, e são filhos dos amigos dele. já não tinha onde poder traçar a perna e ver pessoas.

ii

com um excerto de um poema de Luís Filipe Parrado

- olha lá, andas aí com as mãos e depois vais metê-las no folhado?
- então, hoje está frio, que a noite cai, e quando traço a perna cria-se ali calor naquele sítio e meto lá a mão para aquecer.
- já te expliquei que não se come sem lavar essas mãos.
- mas... eu lavei as mãos!
- pois, para depois andares com elas aí nas virilhas e depois as levares à boca.
- pai, não me chateies, eu até tenho estas calças novas e lavadinhas e tudo, também.
- não quê? meu filho, um homem quer-se de mãos lavadas. não há nada que as mulheres mais gostem que um homem de mãos lavadas. escreve o que eu te digo.
- pai?
- escreve o que eu te digo.
- pai!!!
- sim?
- não quero ser médico. quero escrever.
- à mão?
- quero ser escritor. daqueles a sério, que escrevem romances que mudam a vida das pessoas.
- ah, então isso é sério.
- sim, pai, já fiz chorar uma pessoa. já fiz rir muitas pessoas. como médico, nunca me senti verdadeiramente a salvar ninguém.
- meu filho, 
«Antes
de te sentares
à mesa
lava bem
essas mãos»

 iii

quando traço a perna ao pôr-do-sol ele diz-me que fico linda. quando uso rabo de cavalo ele diz-me que fico linda. quando ponho aquele batom ele diz-me que estou linda. quando uso aquele eyeliner diz-me que estou linda. quando trago aquela blusa e a saia creme diz-me que estou linda. quando uso saltos altos diz-me que estou linda. de inverno, diz-me que estou linda. de verão, diz-me que estou linda. até no outono me diz que estou linda. na primavera, então, estou tão linda. quando me rio, diz-me que estou linda, diz-me que o meu sorriso é lindo e que nem a chorar deixo de ser linda. digo que o quero, digo que o amo. e ele não me diz nada. cabrão.

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