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quarta-feira, 7 de março de 2012

de manhã os homens riem

i

sete da manhã na cidade grande. os transportes públicos já fervilham de gente e preparam-se para receber mais aventureiros. o homem passa os torniquetes e encontra gente de todo o tipo. bonitos e feios, lavados e sujos, ricos e pobres, sãos e loucos. os segundos despertam-lhe sempre um sorriso. não porque ele seja pessoa de fazer pouco dos menos capacitados. a questão é outra. o homem encontrou o amor e isso mudou-lhe o olhar. fê-lo conseguir ver mais além. fê-lo ver o que os outros não vêem. mostrou-lhe que naquilo que parece frágil pode haver uma coisa mais para adorar. e isso fá-lo, todas as manhãs, rir para aqueles a quem já ninguém ri.

ii

«ganhei o euromilhões», gritava ele pelas ruas, enquanto deixava o café do bairro depois do pequeno-almoço. «a minha vida vai mudar», dizia a um amigo que encontrou na rua, a caminho do emprego. nunca acreditara que o dinheiro pudesse trazer felicidade e mudar a vida das pessoas, mas tanto dinheiro ia mesmo fazer diferença. o amigo perguntou-lhe se, com o prémio, não ia fugir dali, que a vida está difícil e isto não presta. mas o homem respondeu que não, que tinha de ficar por cá. o dinheiro só lhe podia mudar a vida se não fosse embora. o que ele queria era usar o dinheiro para lhe dar tempo para as pessoas. afinal, o que a falta de dinheiro lhe roubava eram as pessoas, a mulher e os filhos e aqueles amigos a sério. o euromilhões tinha-lhe devolvido as pessoas e era por isso que ele agora ria como nunca.

iii

sou só mais uma mulher comum. não me queixo de ser gorda nem tenho ciúmes das que são mais magras do que eu. não prendo o meu homem a mim só por ir para a cama com ele. não tenho filhos. pago os impostos e não me queixo de não ser rica. não pinto as unhas, mas já tenho de pintar o cabelo, que a genética tem destas coisas. trabalho das nove às cinco numa repartição pública onde sou feliz. saio sexta à noite com as amigas, naquelas saídas só de mulheres. vou ao teatro com o meu marido e fico a pensar que já tenho idade e estatuto para ter um amante. afinal, até nem sou feia. tenho uns dentes bonitos e uns olhos, ui, os meus olhos. quando de manhã me olho ao espelho rio-me, porque sou só uma mulher comum. que não quer ser mais do que isso.

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