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quinta-feira, 17 de junho de 2010

Do nome do blog

Agora, o que me apetece é partilhar convosco a parte I do Tríptico de Herberto Helder, o poeta que me inspirou para dar nome a este blog...

TRÍPTICO

I

Transforma-se o amador na coisa amada
com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.

Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.

Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do amador.
Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.

E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimentam
o imprevisto silêncio do mundo
e do amor.


HELDER, Herberto, Ou o poema contínuo, Lisboa, Assírio & Alvim 2004.

1 comentário:

  1. Houve um dia em que me cruzei também com este lindíssimo poema. Estive para comprar então a sobra completa de Herbert... tive apenas um problema... não tinha dinheiro de papel ne cartão de plástico! Contudo, este foi sem dúvida um dos que fixei, até porque "Transforma-se o amador da cousa amada" pertence a Camões e eu musiquei esse soneto num aniversário do Pe. Nuno amador...

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