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segunda-feira, 17 de maio de 2010

Pequenas histórias teológicas (4) (média-grande)

«Se o sal se torna insosso

A sabedoria é para o insensato como uma casa arruinada;
a ciência do insensato reduz-se a palavras inocentes.
Sir 21, 18

O COMISSÁRIO (bem-intencionado): Camarada cristão, podeis, de uma vez por todas, dizer-me claramente o que sois vós, cristãos? Em boa verdade, que é que ainda pretendeis no nosso mundo? Onde reside o vosso direito à existência? Qual o vosso mandato?
O CRISTÃO: Antes de mais, somos homens como todos os outros, que colaboram na obra de construção do futuro.
O COMISSÁRIO: Quanto à primeira coisa, acredito; quanto à segunda, bem gostaria de esperar.
O CRISTÃO: Desde há algum tempo estamos, de facto, «abertos ao mundo», e alguns de nós até, de forma séria, «se converteram ao mundo».
O COMISSÁRIO: Isso parece-me um suspeito palavrório de padre. Seria, na realidade, ainda mais bonito se vós, «homens como os outros», vos tivésseis já convertido a uma existência digna de homens. Mas venhamos aos factos. Porque ainda sois cristãos?
O CRISTÃO: Hoje, somos cristãos amadurecidos, pensamos e agimos com responsabilidade moral.
O COMISSÁRIO: Bem o quero esperar, já que vos apresentais como homens. Mas acreditais em algo de particular?
O CRISTÃO: Isso não é muito importante; o que importa é a palavra epocal; o acento, hoje, recai sobre o amor ao próximo. Quem ama o próximo ama Deus.
O COMISSÁRIO: No caso de Ele existir. Mas, como não existe, não o amais.
O CRISTÃO: Amamo-lo implicitamente, de modo não objectivo.
O COMISSÁRIO: Ah, a vossa fé não tem, pois, nenhum objecto. Avancemos. A coisa está a ficar clara.
O CRISTÃO: Não é assim tão simples. Cremos em Cristo.
O COMISSÁRIO: Já dele ouvi falar. Mas, do ponto de vista histórico, parece que pouco se sabe, infelizmente, a seu respeito.
O CRISTÃO: Concordo. Praticamente nada. Por isso, acreditamos menos no Jesus histórico do que no Cristo do
kerygma.
O COMISSÁRIO: Que género de palavra é essa? Chinês?
O CRISTÃO: Grego. Significa a pregação da mensagem. Sentimo-nos tocados pelo acontecimento linguístico da mensagem da fé.
O COMISSÁRIO: E que há nessa mensagem?
O CRISTÃO: O importante é modo como por ela se é afectado. A um pode prometer o perdão dos pecados. Esta era, em todo o caso, a experiência da comunidade primitiva. Terá sido induzida a isso pelos acontecimentos relativos ao Jesus histórico, do qual verdadeiramente não sabemos bastante para estarmos certos de que ele...
O COMISSÁRIO: E chamais a isso a vossa conversão ao mundo. Sois os obscurantistas de sempre. E é com esse palavreado difuso que quereis colaborar na construção do mundo!
O CRISTÃO (
joga o seu último trunfo): Temos Teilhard de Chardin! Ele causou grande impressão na Polónia!
O COMISSÁRIO: Também já nós a causámos. Não precisamos, para isso, de a receber de vós. Mas é bom que também tenhais chegado, por fim, a tal ponto; simplesmente, acabai de vez com a tralha mística, que nada tem a ver com a ciência, e então poderemos discutir, entre nós, acerca da evolução. Nas outras histórias não me meto. Se delas vós próprios sabeis tão pouco, já não constituís um perigo. Assim poupais-nos uma bala. Temos na Sibéria campos muito úteis, onde podereis demonstrar o vosso amor pelos homens e colaborar, de uma forma válida, na evolução. Lá lucrar-se-á mais do que nas vossas cátedras alemãs.
O CRISTÃO (
algo desiludido): Subvalorizais a dinâmica escatológica do cristianismo. Nós preparamos o futuro reino de Deus. Somos a verdadeira revolução mundial. Égailté, liberté, fraternité: eis a nossa tarefa originária.
O COMISSÁRIO: É pena que outros tenham tido de lutar por vós. Depois, não é difícil estar presente. O vosso cristianismo não vale um caracol.
O CRISTÃO: Vós estais
connosco! Sei quem sois. Pensais de forma honesta, sois um cristão anónimo.
O COMISSÁRIO: Nada de insolências, rapazola. Também agora já sei que chegue. Vós próprios vos liquidastes e, assim, poupastes-nos a perseguição. Desandai!»


VON BALTHASAR, Hans Urs, Córdula ou o momento decisivo, Lisboa, Assírio & Alvim 2009, 126 p.

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