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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O guarda palhaço

Na carreira sete da vimeca, no banco à minha frente, um senhor ia a ler essa pérola da literatura que é O Último Segredo, de José Rodrigues dos Santos. Aconteceu-me espreitar para as páginas abertas e chamou-me a atenção, entre diálogos cheios de clichés, escritos para chamar burro ao leitor, num registo quase cómico, um diálogo em que o personagem principal do livro chama palhaços aos guardas suíços. Note-se que não se tratava propriamente de uma ofensa pessoal à Guarda Suíça, antes uma comparação entre as vestes dos palhaços e os fatos garridos dos guardas.
Se pensam que o que me chamou a atenção foi a novidade ou a estranheza de tal afirmação, desenganem-se. Muito pelo contrário. O que me despertou curiosidade nessa sentença foi o facto de me revelar o que já sabia sobre o livro, que é uma repetição de ideias feitas e que houve uma enorme falta de rigor científico na sua preparação (isto, admitindo que no romance se reflecte acerca da cultura cristã, e, como não me canso de repetir, que a teologia ainda tem um lugar na «casa da ciência»).
Se para uma pessoa comum a comparação entre guardas suíços e palhaços [a mesma comparação podia ser feita, mantendo os palhaços, com Bispos, padres ou diáconos durante uma celebração litúrgica] pode surgir ainda como uma novidade ou uma espécie de revelação, para um teólogo, ou um simples aprendiz de teologia, como eu, não há nela nada de novo.
Lembro-me de, numa das aulas do curso, um professor falar na afirmação de um teólogo francês que dizia que, hoje em dia, um Bispo numa celebração litúrgica, com a sua mitra, o seu báculo, o seu anel e os restantes paramentos, surge aos olhos das pessoas como um chefe índio da Amazónia.
Basicamente, este facto tem a ver, mais do que com a distância do comum das pessoas em relação à Igreja e aos seus ritos, com a perda da capacidade de olhar para o valor simbólico das coisas. E a incapacidade de reconhecer esse valor simbólico tem a ver com uma tendência, revelada sobretudo na sociedade ocidental, para esquecer a História. Às vezes dá ideia de que o progresso tecnológico e as facilidades que ele veio trazer ao nosso dia-a-dia fazem com que possamos ser pessoas sem passado, que se interessam apenas com o momento actual. Temos tudo quanto precisamos, por isso não interessa muito lembrarmo-nos do que fomos, nem tão pouco pensar naquilo em que nos podemos tornar. É por isto que surgem, sempre que a crise económica se agudiza, portugueses a implorar por uma ditadura, esquecendo-se que não saímos de uma há tanto tempo, e que esses foram tempos de fome e sem liberdade de pensamento e de expressão. É por isso que chamamos palhaços aos guardas suíços, ignorando que eles se vestem assim porque as suas roupas foram desenhadas por Miguel Ângelo. É por isso que comparamos os Bispos aos chefes índios, porque não percebemos que os símbolos que transportam pretendem remeter para o que eles são e fazem.
Esta ignorância bacoca faz-me ver como é preciso, de facto, voltar a trazer a teologia para o espaço público. É preciso mostrar que a teologia é algo encarnado (não se tivesse Deus feito Homem), fundado na História e implicado nela. É preciso mostrar que a teologia quer ser, ainda, para o mundo, uma proposta de sentido com sentido.

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